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Processo n.º 561/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., S.A., impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições de Trabalho que lhe aplicou uma coima de €3.360,00, em processo de contra-ordenação, por violação do artigo 245.º, n.º 1, da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, ao não realizar exame de saúde a uma trabalhadora ao seu serviço.
Por sentença de 18 de Maio de 2009, o Tribunal Judicial de Setúbal concedeu provimento parcial à impugnação. Para chegar a tal resultado, depois de qualificar os factos provados – não ter a trabalhadora sido submetida a exame de saúde antes do início da prestação de trabalho ou nos 15 dias posteriores – como violação da regra contida no artigo 245.º, n.ºs 1 e 2 alínea a) da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho (Regulamento do Código do Trabalho), infracção essa punida como contra-ordenação grave pelo artigo 484.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, a sentença ponderou o seguinte:
“(…)
Do art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o Novo CTrabalho, da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Marco, e das questões de constitucionalidade:
Está imputada a violação do art. 245.º n.ºs 1 e 2 al. a) da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, o que constitui contra-ordenação grave, nos termos do art. 484.º n.º 2 do mesmo diploma.
O art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, sob a epígrafe “norma revogatória”, prevê, no n.º 1 al. b), a revogação da referida Lei 35/2004, mas no n.º 6 prevê diversas excepções, mas entre elas não se conta o citado art. 484.º n.º 2.
Na Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março, declara-se que a citada Lei 7/2009 saiu com diversas inexactidões, que se declarou rectificar, entre elas a al. m) do n.º 6 do art. 12.º, de tal modo que, onde se lê “m) Artigos 212° a 280°, sobre segurança e saúde no trabalho,” deve ler-se “m) Artigos 212° a 280°, 484° e 485°, este na parte referente àqueles artigos, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho;” .
Vem sendo afirmado que tal Declaração de Rectificação é nula, pelas seguintes razões: -
- dispõe o art. 5.º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro (sobre a publicação, a identificação e formulário de diplomas), na versão republicada no anexo à Lei 42/2007, de 24 de Agosto, que «As rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma publicado na 1ª série do Diário da República e são feitas mediante declaração do mesmo órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma série»;
- a indicação do art. 212.º a 280.º e a omissão do art. 484.º não decorre de lapso gramatical, ortográfico, de cálculo ou de natureza análoga;
- nem decorre de erro material proveniente de divergências entre o texto original e o texto publicado na 1ª série do Diário da República. Com efeito, do confronto do texto original com o publicado no dia 12 de Fevereiro de 2009, não resulta qualquer divergência, no que concerne à citada al. m) do n.º 6 do art. 12.º da Lei 7/2009;
- para chegar a tal conclusão, basta consultar o Decreto da Assembleia da República n.º 262/X, publicado no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 61/X/4, de 26 de Janeiro de 2009;
- texto final que decorre, aliás, de um processo de alteração, após veto e reapreciação, da versão publicada por Decreto da Assembleia da República n.º 255/X, publicada no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 34/X/4, de 28 de Novembro de 2008;
- não pode haver qualquer dúvida sobre o que se considera texto original (o do citado Decreto da Assembleia da República n.º 262/X);
- nos termos do art. 156.º n.º 1 do Regimento da Assembleia da República, «A redacção final dos projectos e propostas de lei incumbe à comissão parlamentar competente», sendo certo que «concluída a elaboração do texto este é publicado no Diário [da Assembleia da República]»;
- até três dias úteis após a publicação no Diário da Assembleia da República, os deputados podem reclamar das inexactidões, tendo o Presidente de decidir em vinte e quatro horas, existindo ainda a possibilidade de recurso para o Plenário ou para a Comissão Permanente (art. 157.º do Regimento), determinando o art. 158.° do Regimento que «considera-se definitivo o texto sobre o qual tenham recaído reclamações ou aquele a que se chegou depois de decididas as reclamações apresentadas»;
- é esta versão final dos Decretos da Assembleia da República que é enviada ao Presidente da República para promulgação (art. 159.º do Regimento);
- sendo certo que nem o Presidente da República, em sede de promulgação, nem o Governo, em sede de referenda, têm poderes para alterar o texto;
- o que significa que a única possibilidade de o texto original ser distinto do que surge no Diário da Assembleia da República de 26 de Janeiro de 2009 (II série A) é ter ocorrido alguma reclamação que levasse a alterar o texto remetido para o Presidente da República. Mas, o que resulta da cronologia do diploma que se encontra no “site” da Assembleia da República é que tal não sucedeu;
- logo, a Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março, não cumpre o disposto no art. 5º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro, sendo, por isso, ilegal;
- a tanto acresce que esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: a coberto de uma rectificação está, efectivamente, a alterar-se a lei, violando, assim, o disposto no art. 161.º al. c) da Constituição; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29.º n.º 4, da Constituição da República;
- como escreve o Professor Figueiredo Dias, «esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (in Direito Penal Português, Tomo 1, 2 Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 180).
Estamos de acordo com este raciocínio – tanto mais que é para nós evidente que a Declaração de Rectificação 21/2009 inova, passando a punir como contra-ordenação certo comportamento, que entretanto deixara de ser punido pelo art. 12.º da Lei 7/2009, tal como esta veio publicada no DR de 12.02.2009 e tal como esta foi aprovada pela Assembleia da República. Está, pois, em causa um autêntico acto legislativo, que deveria assumir a forma de lei – arts. 112.º n.º 1, 161.º al. c) e 166.º n.º 3 da Constituição – após os competentes debates e votações – art. 168.º n.ºs 1 e 2 da Constituição.
Mas, na nossa perspectiva, a discussão não pode – nem deve – terminar por aqui.
Se para nós é patente que a punição como contra-ordenação da conduta dos autos surge revogada no art. 12.º n.º 1 al. b) da Lei 7/2009, tal como esta foi publicada no dia 12.02.2009 e foi efectivamente aprovada após discussão e votação na Assembleia da República, pensamos que outra questão se deverá colocar: será constitucional a despenalização de tal conduta-
Note-se que o art. 59.º n.º 1 al. c) da Constituição afirma que todos os trabalhadores têm direito à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, enquanto que o n.º 2 exige ao Estado o dever de assegurar tais condições de trabalho a que os trabalhadores têm direito. Ou seja, o art. 59.º n.º 2 exige um comportamento interventor do Estado nesta matéria, estabelecendo as medidas adequadas a assegurar tais condições de trabalho e sancionando os comportamentos que, por algum modo, violem tais direitos. Assim, quando o legislador pune comportamentos violadores das condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, está a cumprir uma obrigação constitucional, dirigida aos próprios poderes públicos.
Ora, se no âmbito da Lei 35/2004, de 29 de Julho, existia uma estrutura sancionatória que efectivamente pretendia garantir o dever do Estado em assegurar essas condições de trabalho, no Novo CTrabalho, aprovado pela Lei 7/2009, no que respeita à higiene, segurança e saúde no trabalho, temos apenas alguns princípios gerais – arts. 281.º a 283.º – remetendo-se para regulamentação, ainda não aprovada. Assim, de uma estrutura sancionatória assegurando o efectivo cumprimento pelo Estado da obrigação imposta pelo art. 59.º n.º 2 da Constituição, passou-se para o vazio legislativo.
Talvez de forma inadvertida, mas mesmo assim, violando aquela injunção constitucional.
A propósito, cita-se Gomes Canotilho e Vital Moreira que, na sua Constituição Anotada, Vol. I, 4ª ed., 2007, pág. 771, sobre o referido art. 59.º, afirmam o seguinte:
«O segundo problema conexiona-se com a extensão do regime dos direitos, liberdades e garantias dos direitos económicos, sociais e culturais, quando estes tenham obtido um determinado grau de concretização (direitos fundamentais derivados). Trata-se, por um lado, de impedir que a exequibilidade dada a uma norma constitucional lhe seja depois retirada. Desta forma, todos os direitos constantes deste artigo beneficiam de garantia nos aspectos materiais já legalmente concretizados (ex.: o estabelecimento do salário mínimo), os quais não podem ser anulados ou restringidos (...) De resto, isto não é mais do que a aplicação concreta do regime de protecção dos direitos de origem legal (...) às concretizações legislativas dos direitos constitucionais.»
Mais adiante, sobre o art. 59.º n.º 1 al. c) da Constituição, a págs. 773, organizam o seguinte comentário:
«A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde (n.º 1/c) é, simultaneamente, um direito dos trabalhadores e uma imposição constitucional dirigida aos poderes públicos (e aos empregadores), no sentido de estes fixarem os pressupostos e assegurarem o controlo das condições de higiene, segurança e saúde. Neste sentido, compete ao Estado editar regulamentos de segurança, higiene e saúde e tomar efectivas medidas de controlo da aplicação destes regulamentos. Muitos dos aspectos relacionados com a higiene e segurança estão regulamentados em convenções internacionais da OIT que vinculam o Estado Português. Note-se que a LC n.º 1/97 introduziu a indispensabilidade de a prestação de trabalho ocorrer com condições de saúde, para além das condições de higiene e segurança. Procura-se dar abertura constitucional a algumas directivas laborais europeias referentes à segurança e saúde, hoje transpostas em larga medida para o plano interno (cfr. L 35/2004, arts. 2.º, 41.º e ss).»
Finalmente, continuam os mesmos autores, na pág. 775, quanto ao n.º 2 do art. 59.º da Constituição:
«Enquanto o n.º 1 deste artigo reconhece direitos imediatamente dirigidos contra as entidades empregadoras e o Estado, o n.º 2 estabelece um conjunto de tarefas (incumbências) dirigidas ao Estado (desde logo ao legislador), no sentido de realizar os primeiros (cfr. o caput do n.º 2). Trata-se, portanto, de direitos positivos dos trabalhadores, aos quais correspondem obrigações de concretização (através de leis e outras medidas) do Estado (e não dos empregadores), sob pena de inconstitucionalidade por omissão e, eventualmente, de responsabilidade civil do Estado pelos danos causados por essa omissão (cfr. art. 22.º).»
Finalmente, há a recordar que a Lei 35/2004, ao estabelecer um sistema de controlo de saúde dos trabalhadores, com o objectivo de verificar a sua aptidão física e psíquica para o exercício da actividade laboral, limitou-se a cumprir as obrigações impostas pela Directiva 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de Junho. A qual, note-se, no respectivo art. 14.º n.º 1, impôs a necessidade de serem tomadas medidas destinadas a assegurar a vigilância adequada da saúde dos trabalhadores em função dos riscos para a sua segurança e saúde no local de trabalho, mais exigindo o art. 4.º n.º 2 que os Estados-Membros adoptassem um controlo e uma fiscalização adequadas ao cumprimento das disposições constantes dessa Directiva.
Logo, quando o Estado impôs a necessidade de serem realizados controlos eficazes da saúde dos trabalhadores e da sua aptidão para o exercício das suas tarefas profissionais, e estabeleceu um regime sancionatório, fê-lo não só porque havia que cumprir aquela Directiva 89/391/CEE, mas ainda porque o art. 59.º n.º 1 al. c) e n.º 2 da Constituição impunha uma obrigação de concretização pelo Estado daqueles direitos positivos dos trabalhadores, tanto mais que estamos em face de direitos fundamentais derivados, que já não podem ser anulados ou restringidos.
Repete-se, estando em causa a concretização de normas constitucionais, em que o poder público tem o dever de proteger, de forma activa e interventiva, os direitos dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, estabelecendo um sistema adequado de controlo e fiscalização do cumprimento desses direitos, a substituição do regime sancionatório constante da Lei 35/2004, por um vazio legal – mesmo que, eventualmente, inadvertido – não é constitucionalmente admissível.
Assim, respeitando opinião diversa, mas pensando que a questão merece ser discutida sob esta perspectiva, decide-se:
- recusar a aplicação da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março, na parte em que rectificou a al m) do n.º 6 do art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na medida em que se trata de um autêntico acto legislativo, o qual deveria assumir a forma de lei, após os competentes debates e votações, assim tendo sido violados os arts. 112.º n.º 1, 161.º al. c), 166.º n.º 3 e 168.º n.ºs 1 e 2 da Constituição;
- mas recusar, também, a aplicação do art. 12.º n.º 1 al b) da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o art. 484.º da Lei 35/2004, de 29 de Julho, por violação do art. 59.º n.º 1 al. c) e n.º 2 da Constituição.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação da (in)constitucionalidade das “normas” cuja aplicação foi recusada.
Tendo o recurso prosseguido para alegações, só o Ministério Público alegou, tendo concluído nos seguintes termos:
“34º
1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente a tal quadro jurídico está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação nº 21/2009, ao proceder às “correcções” nos termos em que o fez, “recuperando” matéria contra-ordenacional que deixara de vigorar no ordenamento jurídico por força da versão inicial da Lei nº 7/2009, viola os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da segurança jurídica e da igualdade, decorrentes da Constituição da República Portuguesa – artigos 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4.
4. Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea m), do nº 6, do artigo 12º do Código do Trabalho, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, mantendo-se o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, com as consequências legais.
5. Não se crê, porém, de concordar com o digno magistrado a quo quanto invocada inconstitucionalidade decorrente do facto de o art. 12 da Lei 7/2009 ter vindo criar “um vazio legal” – por contraposição com a anterior legislação (Lei 35/2004, de 29 de Julho) -, o que, no entender do mesmo magistrado, violaria o art.º 59º da Constituição.
6. Desde logo, não se crê estar perante uma verdadeira omissão legislativa, pelo menos voluntária. Com efeito, a Lei 7/2009 (cfr. o proémio do nº 6 do art. 12) previa, na sua versão inicial, a necessidade de uma regulamentação ulterior para diversas das suas disposições, apenas não tendo incluído uma referência aos arts. 484 e 485 da Lei 35/2004 (cfr. versão inicial do art. 12 nº 6, al. m), da Lei 7/2009) por aparente esquecimento do legislador, que procurou corrigir tal esquecimento – embora mal – através da Declaração de Rectificação 21/2009.
7. Ou seja, é pelo facto de o digno magistrado a quo ter previamente considerado – e bem, como se viu – que a Declaração de Rectificação 21/2009 era inconstitucional – solução essa, naturalmente, não pretendida pelo legislador – que a omissão legislativa ocorre, não se crendo de punir o legislador por um facto – omissão de um conduta – que, em rigor, não quis cometer.
8. Termos em que, nesta parte, não deve o Tribunal Constitucional aceitar esta parte da argumentação do digno magistrado.”
II – Fundamentação
3. O relator suscitou a questão do não conhecimento parcial do objecto do recurso, de acordo com a doutrina do acórdão n.º 584/2009, ouvindo sobre isso o Ministério Público e a recorrida.
Só o Ministério Público se pronunciou, fazendo-o no sentido da improcedência dessa questão, sustentando-se, aliás, na doutrina das declarações de voto apostas àquele acórdão.
É por esta questão que cumpre começar.
O presente recurso, como resulta do relato que antecede, tem como objecto a apreciação de constitucionalidade de duas “normas”:
- A “Declaração de Rectificação” n.º 21/2009, de 18 de Março, na parte em que rectificou a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro;
- O artigo 12.º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o n.º 2 do artigo 484.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, quanto à infracção ao disposto no artigo 245.º desta mesma Lei.
Quanto à primeira dessas normas entende-se não dever conhecer-se do recurso pelas razões que fundamentaram igual decisão no acórdão n.º 584/2009, em que a decisão recorrida era, nesta parte e no essencial da sua fundamentação e estrutura, idêntica à sentença que é objecto do presente recurso.
Como nesse acórdão, embora com dois votos discordantes, se ponderou:
“É indubitável que a decisão recorrida recusa validade à Declaração de Rectificação n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 18 de Março de 2009, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque “não cumpre o disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, na versão actualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal”. Em segundo lugar (“ a tanto acresce”), por entender que “esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma rectificação, se está a alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da Constituição da República; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República”.
Verifica-se, pois, que a decisão assenta em fundamentos alternativos, isto é, que a sentença recusou aplicar o conteúdo normativo de que a Declaração de Rectificação pretendeu dotar a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com dois fundamentos, um dos quais estranho ao objecto do presente recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida.
Ora, o Tribunal tem entendido, face à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, que não deve conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte fundamentos alternativos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e suficiente para suportar o sentido da decisão. É certo que tais situações surgem, na grande maioria dos casos, em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mas esse é também o entendimento dominante em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (Cfr., entre muitos, acórdãos n.º 216/2007, n.º 257/2008, n.º 397/2008, n.º 183/09 e n.º 228/2008, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação da sentença se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero obiter dictum, o presente recurso não teria utilidade processual, uma vez que, fosse qual fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, nunca o tribunal a quo admitiria decidir a causa por aplicação do conteúdo da Declaração de Rectificação, uma vez que considera que essa rectificação não se conteve nos limites que a lei consente a tal figura.
Aliás, no caso, a questão de constitucionalidade – ao menos na construção adoptada na sentença – só se coloca porque a questão da legalidade se resolveu em determinado sentido. Considera-se violado o disposto na alínea c) do artigo 161.º e no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição precisamente porque foi recuperado, por essa via, um ilícito contra-ordenacional que deixara de figurar no texto publicado, usando-se ilegalmente o mecanismo da rectificação. O juízo de ilegalidade da rectificação, que autonomamente se formulou, é aqui pressuposto necessário do juízo de inconstitucionalidade a que se chegou quanto à norma rectificada.
Afinal, o acto a que não se reconhece aptidão para produzir os efeitos jurídicos a que tende é a declaração de rectificação. A norma rectificada não se considera sequer existir no ordenamento com o conteúdo de que essa declaração a pretendia dotar, uma vez que o acto integrativo ou complementar (a rectificação) não chegou a projectar qualquer efeito no conteúdo da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, por não respeitar as regras (de direito ordinário) que regiam a sua emissão”.
É entendimento que se mantém, pelo que não se conhecerá do presente recurso no que toca à referida “declaração de rectificação”.
4. Cumpre apreciar a 2ª questão de inconstitucionalidade.
A sentença recorrida foi proferida num processo de impugnação de decisão proferida em processo de contra-ordenação em que a Administração aplicara uma coima à recorrida A. por violação do artigo 245.º da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho, ao não ter realizado, no prazo legalmente estipulado, exame de saúde a uma trabalhadora admitida ao seu serviço. O tribunal a quo entendeu que a punição da conduta como contra-ordenação foi revogada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, que aprovou o Código do Trabalho. Mas que tal “despenalização” é inconstitucional por violação do dever de protecção do direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, que incumbe ao Estado, nos termos das disposições conjugadas da alíneas c) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição.
Entendeu a sentença recorrida que, ao impor aos empregadores o dever de realização de controlos eficazes quanto à saúde dos trabalhadores e à sua aptidão para o exercício das respectivas tarefas profissionais e ao estabelecer um regime sancionatório para a inobservância desses deveres, o legislador cumpriu, não só obrigações comunitárias (maxime a Directiva n.º 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de Junho; no artigo 2.º da Lei n.º 35/2004 indicam-se os actos comunitários de que o diploma efectua a transposição, total ou parcial), mas também a imposição constitucional de protecção da segurança e saúde dos trabalhadores. Trata-se de direitos fundamentais dos trabalhadores que implicam deveres para a entidade empregadora e um sistema adequado de controlo e fiscalização por parte dos poderes públicos. Ao revogar a sanção para o incumprimento desses deveres da entidade patronal o legislador criou, diz a sentença, um “vazio legal” quanto ao nível de protecção anteriormente atingido e que já não podia ser anulado ou restringido.
5. Os “direitos dos trabalhadores” consagrados no artigo 59.º da Constituição não têm natureza homogénea. Alguns apresentam a estrutura de “direitos, liberdades e garantias” (p. ex. o direito à retribuição do trabalho; o direito ao repouso, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas). Outros, pela necessidade de prestações públicas ou da intervenção mediadora de poderes públicos e pela inexequibilidade directa pertencem à categoria dos “direitos económicos, sociais e culturais”. O direito à 'prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde', que é o que agora releva, é destes últimos (Cfr. Vital Moreira e Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., pág. 771).
Trata-se de um direito cuja realização prática implica estabelecer deveres de organização do local de trabalho e das condições de prestação deste e de observação ou vigilância de certos aspectos da aptidão psico-físico do trabalhador (medicina do trabalho, em benefício deste e não, directamente, da organização), deveres esses que hão-de principalmente incidir sobre o outro sujeito da relação laboral (embora, também neste campo, sejam concebíveis deveres secundários que incidam sobre o próprio trabalhador e colegas de trabalho). A cargo do Estado – não considerando aqui as relações de emprego público em que o Estado aparece na veste de sujeito da relação de trabalho e em que a sua vinculação emerge dessa qualidade e do bloco normativo derivado (Cfr., n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 35/2004) – a norma constitucional comporta, sobretudo, imposições legisferantes e de organização de serviços para estabelecer e tornar efectivo o regime instituído com tal objectivo constitucional.
Os deveres de realização normativa do direito ou garantia, consistem, em primeira linha, em editar um quadro jurídico adequado que não só imponha a organização do lugar e tempo de trabalho em condições socialmente dignificantes, como previna, evite, ou minore os efeitos da actividade profissional e das condições em que é prestada sobre a saúde física e psíquica do trabalhador.
Mas facilmente se concluirá que, neste domínio, não basta estabelecer um quadro normativo que imponha deveres a cargo da entidade patronal, deixando a sua realização prática ao jogo da autonomia privada nas relações entre empregadores e trabalhadores, apenas com eventual recurso à via judiciária por parte destes, em caso de incumprimento. Em primeiro lugar, a desigualdade fáctica na relação laboral, a verificação de que as condições económicas e sociais das partes na relação de trabalho fazem com que esta não seja, na realidade, uma relação paritária e que uma das partes, o trabalhador, surja como uma “parte mais fraca” a carecer de medidas de protecção pública, assume aqui uma particular evidência. Dificilmente cada trabalhador está em condições, no curso de uma relação laboral subsistente, de pugnar pela defesa individual da sua posição perante o incumprimento por parte da entidade patronal dos deveres destinados a assegurar a saúde no trabalho. Depois, e não menos importante, na generalidade dos casos, trata-se de assegurar a afectação da saúde dos trabalhadores perante factores de risco cujos efeitos não se produzem imediatamente ou não são imediatamente visíveis, pelo que tem de funcionar um princípio de prevenção ou pro-actividade que só uma defesa colectiva (sindical ou por organizações de trabalhadores no seio da empresa) ou comunitária (pública) pode eficazmente assegurar.
Deste modo, bem se compreende que o cumprimento dos deveres postos por lei a cargo das entidades patronais em ordem à promoção da segurança, higiene e saúde no trabalho seja tradicionalmente sujeito a fiscalização por parte de entidades públicas (v.gr. organismos de inspecção do trabalho) e que o incumprimento de tais deveres dos empregadores (ou de representantes seus e, porventura, dos próprios trabalhadores) seja objecto de sanção repressiva. Isto é, que o incumprimento de tais deveres não acarrete ou não acarrete somente ilicitude contratual, mas constitua ilícito de mera ordenação social e, em situações de maior gravidade, até ilícito penal.
6. A norma constitucional (artigo 59.º, n.º 1, alínea c) da CRP) protege o trabalhador em três aspectos: segurança, higiene e saúde no trabalho. No que se refere à saúde no trabalho, que é o domínio da norma infringida e deixada sem sanção contra-ordenacional, o artigo 245.º da Lei n.º 35/2004 dispunha o seguinte:
“Artigo 245.º
Exames de saúde
1 – O empregador deve promover a realização de exames de saúde, tendo em vista verificar a aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da actividade, bem como a repercussão desta e das condições em que é prestada na saúde do mesmo.
2 – Sem prejuízo do disposto em legislação especial, devem ser realizados os seguintes exames de saúde:
a) Exames de admissão, antes do início da prestação de trabalho ou, se a urgência da admissão o justificar, nos 15 dias seguintes;
b) Exames periódicos, anuais para os menores e para os trabalhadores com idade superior a 50anos, e de dois em dois anos para os restantes trabalhadores;
c) Exames ocasionais, sempre que haja alterações substanciais nos componentes materiais de trabalho que possam ter repercussão nociva na saúde do trabalhador, bem como no caso de regresso ao trabalho depois de uma ausência superior a 30 dias por motivo de doença ou acidente.
3 – Para completar a observação e formular uma opinião precisa sobre o estado de saúde do trabalhador, o médico do trabalho pode solicitar exames complementares ou pareceres médicos especializados.
4 – O médico do trabalho, face ao estado de saúde do trabalhador e aos resultados da prevenção dos riscos profissionais na empresa, pode reduzir ou aumentar a periodicidade dos exames, devendo, contudo, realizá-los dentro do período em que está estabelecida a obrigatoriedade de novo exame.
5 – O médico do trabalho deve ter em consideração o resultado de exames a que o trabalhador tenha sido submetido e que mantenham actualidade, devendo instituir-se a cooperação necessária com o médico assistente.”
A violação destes deveres constituía contra-ordenação grave (artigo 484.º, n.º 2 da mesma Lei). Esta qualificação foi “acidentalmente” revogada, deixando a infracção sem sanção repressiva. Considera a sentença recorrida que, nesta medida, o legislador, porventura contra o seu próprio plano, mas de modo que é insuperável por via interpretativa ou integrativa, criou uma situação de deficit de protecção constitucionalmente intolerável, porque o sistema regrediu relativamente ao grau de consagração anteriormente vigente.
Colocam-se, por esta via, dois problemas que, nos limites do 'caso' submetido, importa considerar. O de saber se (e em que medida) a Constituição consagra em matéria de direitos sociais o chamado princípio da proibição do retrocesso social e se, neste domínio, existem deveres constitucionais de configuração de determinadas condutas como ilícito de mera ordenação social.
7. Deve começar por notar-se que a norma em causa não tem por efeito diminuir o âmbito dos deveres do empregador no que se refere à protecção da saúde do trabalhador. A protecção prescrita, os deveres da entidade patronal, não sofreu modificações. O que da norma em causa resulta é o enfraquecimento do nível prático de efectividade mediante a supressão da tutela sancionatória ou repressiva. Isto compromete a viabilidade ou, pelo menos, o interesse de consideração do problema à luz do princípio da proibição do retrocesso social de modo autónomo relativamente ao segundo aspecto da questão, que é o de saber se existe dever de tutela pela via sancionatória do ilícito de mera ordenação social. Pelo que os dois aspectos serão objecto de apreciação conjunta. Ou seja, a questão que o tribunal tem para responder consiste em saber se o legislador pode, relativamente à violação de direitos fundamentais dos trabalhadores a que, em momento anterior, a ordem jurídica conferira o reforço de tutela da sanção contra-ordenacional, descaracterizar a respectiva violação como ilícito de mera ordenação social.
Acerca do referido princípio afirmou-se no acórdão n.º 509/2002, Diário da República, I Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003 (substituição do rendimento mínimo garantido pelo rendimento social de inserção), o seguinte:
“9 Embora com importantes e significativos matizes, pode-se afirmar que a generalidade da doutrina converge na necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador. E essa harmonização implica que se distingam as situações.
Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível «determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade» (cfr. Acórdão nº 474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão nº 39/84.
Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais.
Este Tribunal já teve, aliás, ocasião de se mostrar particularmente restritivo nesta matéria, pois que no Acórdão nº 101/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 389-390), parece ter considerado que só ocorreria retrocesso social constitucionalmente proibido quando fossem diminuídos ou afectados «direitos adquiridos», e isto «em termos de se gerar violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural», tendo em conta uma prévia subjectivação desses mesmos direitos. Ora, no caso vertente, é inteiramente de excluir que se possa lobrigar uma alteração redutora do direito violadora do princípio da protecção da confiança, no sentido apontado por aquele aresto, porquanto o artigo 39º do diploma em apreço procede a uma expressa ressalva dos direitos adquiridos.
Todavia, ainda que se não adopte posição tão restritiva, a proibição do retrocesso social operará tão-só quando, como refere J.J.Gomes Canotilho, se pretenda atingir «o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana», ou seja, quando «sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios», se pretenda proceder a uma «anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial». Ou, ainda, tal como sustenta José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da protecção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade. ”
Este entendimento foi reafirmado pelo Tribunal em várias ocasiões, designadamente nos acórdãos n.ºs 590/2004 e 188/09, Diário da República, II Série, de 3 de Dezembro de 2004, e 18 de Maio de 2009, respectivamente.
Recorde-se que no presente processo está em causa a violação do dever de submeter o trabalhador a exame de saúde antes do início da prestação de trabalho ou nos 15 dias posteriores, nos termos do artigo 245.º, n.ºs 1 e 2 alínea a) da Lei n.º 35/2004, de 29 de Julho. Ora, por um lado, de modo algum pode considerar-se que da Constituição resulte uma ordem de legislar, concreta e precisa, de forma a identificar a verificação da aptidão física e psíquica dos trabalhadores, mediante um exame da responsabilidade do empregador, como incluído no standard mínimo da prestação do trabalho em condições de saúde. Trata-se de uma medida preventiva ou de “despiste” de situações susceptíveis de comprometimento ou agravamento perante as exigências ou as condições da prestação do trabalho. Mas não pode afirmar-se que na falta de imposição desse dever à entidade patronal fique afectado o direito fundamental dos trabalhadores a prestar trabalho “em condições de higiene, segurança e saúde”. É uma obrigação indiscutivelmente acessória relativamente à exigência de que a prestação de trabalho decorra em condições de menor lesividade possível para a saúde dos trabalhadores. Pelo que, abstracção feita de vinculações internacionais ou de direito da União que não vem ao caso considerar, a sua consagração é opção que cabe na discricionariedade legislativa. Incumbe ao Estado concretizar “com grande latitude” o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição (Rui Medeiros in Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pág. 605). Deste modo, não podendo integrar-se a medida protectora no núcleo essencial da concretização do direito à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, também não poderia qualificar-se a revogação da tutela sancionatória para a violação desse dever, quando imposto pelo legislador, como aniquilando o conteúdo desse direito fundamental.
8. É certo que o direito consagrado nesta norma constitucional postula uma actuação do Estado, não só no sentido de editar normas relativas à higiene, segurança e protecção da saúde dos trabalhadores, mas também de tomar efectivas medidas de controlo da sua aplicação e repressão da respectiva violação. Incumbe ao Estado não só disciplinar a organização da prestação de trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, como dotar-se de serviços e adoptar procedimentos capazes de tornar aquelas medidas de protecção efectivas.
E também pode assentir-se que o direito de mera ordenação social é, no nosso ordenamento, o instrumento de eleição para assegurar a tutela repressiva da generalidade das infracções a comandos deste tipo. Mas só pode falar-se em deficit de protecção constitucionalmente censurável perante conteúdos de protecção constitucionalmente prescritos. Concluiu-se, portanto, que a revogação da tutela sancionatória contra-ordenacional para a infracção do dever em causa não poderia considerar-se violação do direito dos trabalhadores estabelecido na alínea c) do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição, mesmo que a norma que estabelece o dever de submeter o trabalhador a exame ficasse destituída de efectividade prática, porque não se trata de um conteúdo de protecção cuja omissão ou supressão comprometa o núcleo essencial desse direito. Aliás, não pode afirmar-se em absoluto que a falta de sanção contra-ordenacional para a infracção esvazie o dever de conteúdo prático porque sempre assistem aos interessados os meios comuns de defesa, embora sem esquecer que estes funcionam mais em situações de crise da relação laboral do que no seu normal decurso. (Deve notar-se que, independentemente dos meios sancionatórios contra-ordenacionais ou criminais, em matéria de protecção da segurança, higiene e saúde do trabalho, o Código de Processo de Trabalho regula um procedimento cautelar específico nos artigos 44.º e segs., que pode ser utilizado pelos trabalhadores individual ou colectivamente).
Por tudo o exposto, não pode considerar-se violado o direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, resultante da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro pela revogação do n.º 2 do artigo 484.º da Lei n.º 35/2004, na parte em que qualificava como contra-ordenação a violação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 245.º desta mesma Lei.
III. Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso na parte respeitante à recusa de aplicação da Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março;
b) Não julgar inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 484.º da Lei 35/2004, de 29 de Julho, enquanto qualificava como contra-ordenação a violação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 245.º desta mesma Lei, concedendo, nesta parte, provimento ao recurso;
c) Determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lx., 12/5/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral (vencido quanto ao conhecimento pelas razões constantes do meu voto no Acórdão n.º 584/09)
Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto ao conhecimento pelas razões constantes do meu voto no acórdão n.º 584/09)
Gil Galvão