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Processo nº 834/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da
decisão daquele Tribunal de 7 de Agosto de 2009.
2. O Ministério Público deduziu acusação contra A. e requereu a aplicação da
medida de coacção “obrigação de apresentação periódica”. Por despacho de 28 de
Abril de 2009, o juiz de instrução indeferiu o requerido.
O Ministério Público recorreu deste despacho para o Tribunal da Relação de
Coimbra, mas o recurso não foi admitido por despacho de 15 de Junho de 2009. O
Ministério Público reclamou então para o presidente daquele Tribunal.
3. Em 7 de Agosto de 2009, foi proferida decisão de indeferimento da reclamação,
por “inadmissibilidade do recurso”, com os seguintes fundamentos:
«Pese embora o direito ao recurso, considerado em abstracto, faça parte do rol
dos direitos constitucionais de defesa no âmbito do direito criminal (art.º
32.º, n.º 1, da CRP), o legislador estabeleceu a irrecorribilidade de
determinadas decisões, sendo certo que apesar disso consideramos que não foram
descuidados os direitos do arguido e muito menos foi violado o princípio da
legalidade e da igualdade bem como a função constitucional do Mº Pº de defensor
da legalidade democrática.
Senão vejamos:
O princípio da legalidade implica não só um dever para os agentes da sua
aplicação, como igualmente, e é o que está ora em causa, para o legislador no
sentido de se abster de criar formas processuais ad hoc, extrínsecas à estrutura
do Código (…).
Terá o legislador criado normas ou formas processuais desenquadradas da
estrutura processual penal vigente ou em manifesto desrespeito pelos direitos
dos intervenientes processuais-
Parece-nos que não.
Na verdade a regra de irrecorribilidade das decisões judiciais tem, face ao
art.º 399º do C.P.P., natureza claramente excepcional, não sendo assim passível
de aplicação analógica.
Por outro lado «a Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas
normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os
processos das diferentes espécies. E certo que a Constituição garante a todos “o
acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios
económicos” (art.º 20º, n.º 1) e, em matéria penal, afirma que “o processo
criminal assegurará todas as garantias de defesa” (art.º 32º, n.º 1). Destas
normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de
que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões
proferidas em processo penal. (...) A garantia do duplo grau de jurisdição
existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais
respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou
de quaisquer outros direitos fundamentais. Sendo embora a faculdade de recorrer
em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa, a verdade é
que, como se escreveu no Acórdão 31/87 do mesmo Tribunal, “se há-de admitir que
essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do
processo (...).”»(Ac. do TC nº 265/94)
(…)
No caso em apreço Ministério Público entende que o recurso deve ser admitido por
a norma que se extrai do art. 219º-1 e 3, do CPP, padecer de
inconstitucionalidade, suportando a sua tese em virtude deste normativo violar o
princípio da legalidade das medidas de coacção (art.º 191º, nº 1 do CPP) que é
uma decorrência do princípio constitucional da legalidade do processo penal
(art.º 32º, conjugado com o art.º 165º, nº 1 al. c) da CRP), como violam o
princípio da igualdade (art.º 13º da CRP) e a função constitucional do Mº Pº de
defensor da legalidade democrática (art.º 219, nº 1 da CRP).
Prescreve o art. 219º-1 e 3, do CPP (na redacção dada pela Lei 48/2007, de
29/08) o seguinte:
(…)
Com a lei nova, art. 219º-1, do CPP, o legislador restringiu a intervenção do
Ministério Público em sede de interposição de recurso: só o pode fazer em
benefício do arguido (para salvaguarda dos interesses deste).
Por ter sido pedido um agravamento das medidas de coacção o arguido, por certo,
não terá interesse em recorrer.
Com relatamos supra foi o Ministério Público que requereu a aplicação da medida,
e quando o fez por certo que não agiu em benefício do arguido e, assim sendo,
não pode recorrer da decisão.
Ora o Código de Processo Penal contém um regime geral de recursos (artigos 399.º
e seguintes) e um regime especial para o recurso das decisões que apliquem ou
mantenham medidas de coacção (artigo 219.º).
No regime geral de recursos, cabe recurso de todas as decisões cuja
irrecorribilidade não estiver previsto na lei (artigo 399.º do CPP).
No regime especial de recurso das medidas de coacção, apenas cabe recurso das
decisões que apliquem ou mantenham medidas de coacção (artigo 219.º do CPP).
Deste modo consideramos que os invocados princípios da legalidade e igualdade
bem como a alegada função constitucional do Mº Pº de defensor da legalidade
democrática, não podem sobrepor-se à vontade expressa e inequívoca do
legislador».
4. O Ministério Público requereu então a este Tribunal a apreciação dos nºs 1 e
3 do artigo 219º do Código de Processo Penal, enquanto não admitem a
interposição de recurso por parte do Ministério Público de decisão que não
aplique medidas de coacção, por violação do princípio constitucional da
legalidade do processo penal, previsto nos artigos. 32º e 165º, nº 1, alínea c),
do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º, da função constitucional do
Ministério Público de defensor da legalidade democrática, estabelecida no artigo
219º, nº 1, e do princípio fundamental que tutela o acesso ao direito por parte
do Ministério Público, enquanto representante do Estado/Comunidade, resultante
do conjugadamente disposto nos artigos 2º, 20º e 219º, nº 1, todos da
Constituição da República.
5. Notificados o recorrente e o recorrido, alegou o Ministério Público,
sustentando, entre o mais, o seguinte:
«2. Apreciação do mérito do recurso
2.1.A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do recurso (embora
com formulações não totalmente coincidentes, contudo irrelevantes), já foi
trazida anteriormente a este Tribunal (Processo nºs 379/08, da 3ª Secção, 41/09,
da 2ª Secção e 228/09, da 1ª Secção).
Nesses processos decidiu-se não tomar conhecimento dos recursos.
Nas alegações então produzidas sustentou-se a inconstitucionalidade material das
normas em apreço, pelo que nos limitamos a transcrever, na parte pertinente, as
alegações então produzidas.
“3. Da questão de constitucionalidade suscitada.
Dispõe o nº 1 do artigo 219º do Código de Processo Penal que:
“Só o arguido e o Ministério Público em benefício do arguido podem interpor
recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no
presente título”.
Esta redacção inovadora foi introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto e
veio retirar ao Ministério Público legitimidade para recorrer, desde que o não
faça em benefício do arguido.
O retirar ao Ministério Público a possibilidade de recorrer em prejuízo do
arguido, em sede de medidas coactivas aplicadas em processo penal, colide com o
seu estatuto constitucionalmente consagrado, violando ainda, e designadamente,
princípios da Lei Fundamental como são o caso dos princípios da legalidade, do
acesso ao direito e do Estado de direito democrático.
O Ministério Público é concebido como uma magistratura autónoma (artigo 219º, nº
2 da Constituição), sendo o “dominus” do inquérito na primeira das fases
preliminares do processo penal e actuando sempre na pendência deste (seja no
inquérito, na instrução, no julgamento ou na fase do recurso) como um sujeito
isento e objectivo – cf., entre outros, os Acórdãos nºs 610/96 e 216/99 do
Tribunal Constitucional.
Compete-lhe nos termos do nº 1 do citado artigo 219º da Constituição e
titularidade do exercício da acção penal orientada pelo princípio da legalidade
e da defesa de legalidade democrática.
As medidas de coacção só podem ser aplicadas no âmbito de um concreto processo
penal instaurado contra um determinado arguido já constituído como tal, estando
sujeitas a um princípio da legalidade nos termos do artigo 191º do Código de
Processo Penal, que surge como uma das concretizações na legislação ordinária do
princípio constitucional de legalidade do processo penal, que se extrai do
artigo 32º conjugado com o artigo 165º, nº 1, alínea c) da Constituição.
Ao assinalado recorte constitucional do Ministério Público actuando, para o que
agora nos interesse no processo penal, não pode escapar o controlo da legalidade
da medida de coacção concretamente aplicada, como ocorreu no caso que é objecto
de recurso.
Uma das formas de exercer esse controlo não pode deixar de ser o recurso, sempre
que entenda que em função das exigências processuais de natureza cautelar
(artigo 191º, nº 1 do Código de Processo Penal e artigo 27º, nº 3 da
Constituição) que cumpra observar, não foi judicialmente aplicada a adequada e
correspondente medida de coacção que ao caso cabia.
Reputamos pertinente e perfeitamente adaptável ao objecto do presente recurso
citar, ainda que parcialmente, o teor da declaração de voto da Srª. Conselheira
Fernanda Palma, vencida no Acórdão nº 530/01 do Tribunal Constitucional quando
referiu:
“(…) Com efeito, o Ministério Público, no exercício das suas funções de titular
do exercício da acção penal e de defensor da legalidade democrática (artigo 219º
da Constituição) tem o poder e o dever de recorrer sempre que, em face dos
critérios legais, o considerar necessário. O recurso é essencial ao controlo das
decisões judiciais num estado de direito e quaisquer restrições injustificadas
afectam essa importantíssima função de controlo da correcta fundamentação das
sentenças bem como a inerente preservação da legalidade democrática; (…).
“(…)finalmente, não me parece aceitável que restrições da possibilidade de
recorrer desta ordem (em que são as condições lógicas da fundamentação do
recurso que são postas em causa) não sejam toleráveis na perspectiva das
garantias de defesa - que aqui não estarão em causa - e já o sejam para um
sentido colectivo de realização da justiça que cabe ao Ministério Público
prosseguir.
Também no caso em apreço e pela mesma ordem de razões o vedar a possibilidade de
recurso por parte do Ministério Público, contende com o seu estatuto (artigo
219º da Constituição) com o Estado de Direito (artigo 2º da Constituição), com o
acesso ao direito por parte do Ministério Público enquanto representante do
Estado – comunidade (artigo 20º, nº 1 da Constituição) e com o princípio da
legalidade (artigos 32º e 165º, nº 1, alínea c) da Constituição).
Numa perspectiva ainda mais critica à solução preconizada pelo artigo 219º, nº 1
do Código de Processo Penal, cite-se a propósito parte da anotação de Paulo
Pinto de Albuquerque no “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da
Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. pág.
580 e 581:
“A proibição do Ministério Público interpor recurso da decisão que modifique,
não aplique, revogue ou declare extinta medida de coação, ou interpor recurso em
prejuízo do arguido de decisão que aplique, mantenha ou substitua medida de
coacção ou de decisão que aplique medida menos gravosa do que a proposta pelo
Ministério Público, viola o princípio da legalidade das medidas de coacção
(artigo 191º, nº 1, do CPP), que é uma decorrência do princípio constitucional
da legalidade do processo penal (artigo 32º, conjugado com o artigo 165º, nº 1,
al. C), da CRP), como viola o princípio da igualdade (artigo 13º da CRP) e a
função constitucional do Ministério Público de defensor da legalidade
democrática (artigo 219º, nº 1, da CRP).
A decisão sobre medidas de coacção, seja no sentido favorável ao arguido seja no
sentido inverso, está subordinada ao princípio da legalidade e não da
discricionariedade. Os pressupostos de aplicação, revogação, alteração e
extinção das medidas de coacção estão contidos em lei, por força de imperativo
constitucional (artigo 165º, nº 1, al. C), da CRP). Por outro lado, a igualdade
de armas não é um benefício do arguido, mas uma característica estrutural do
processo penal Português, que beneficia quer o arguido quer os outros sujeitos
que nele intervêm. O mesmo se diga da função constitucional do MP: ela não visa
apenas a função do MP de defensor de legalidade quando exercida à decharge do
arguido, mas também aquela função quando exercida à charge do arguido.”
Surge, pois, a irrecorribilidade estabelecida no artigo 219º, nº 1 do Código de
Processo Penal, como materialmente inconstitucional, pelas razões apontadas.”
(…)
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1 - As das normas dos nºs 1 e 3 do artigo 219º do CPP, enquanto vedam ao
Ministério Público a possibilidade de recorrer, em prejuízo do arguido, de
decisão judicial que não aplicou a medida de coacção, por si requerida, são
materialmente inconstitucional, por violação dos arts 2º, 13º, 20º, nº 1, 32º, e
219º, e organicamente inconstitucionais por violação do artigo 165º, nº 1,
alínea c), todos da Constituição.
2 – Termos em que deve ser dado provimento ao recurso».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O Ministério Público requer a apreciação dos nºs 1 e 3 do artigo 219º do
Código de Processo Penal, enquanto não admitem a interposição de recurso por
parte do Ministério Público de decisão que não aplique medidas de coacção.
O artigo 219º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Penal (CPP) tem a seguinte
redacção:
«1 - Só o arguido e o Ministério Público em benefício do arguido podem interpor
recurso da decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas previstas no
presente título.
2 - (…)
3 - A decisão que indeferir a aplicação, revogar ou declarar extintas as medidas
previstas no presente título é irrecorrível.
4 - (…)».
Segundo o recorrente, a norma cuja apreciação requer viola três princípios
constitucionais – o da legalidade do processo penal (artigos 32º e 165º, nº 1,
alínea c)), o da igualdade (artigo 13º) e o que tutela o acesso ao direito por
parte do Ministério Público, enquanto representante do Estado/Comunidade
(resultante do disposto conjugadamente nos artigos 2º, 20º e 219º, nº 1) – e a
função constitucional do Ministério Público de defensor da legalidade
democrática (artigo 219º, nº 1). Por seu turno, a decisão recorrida concluiu
pela não inconstitucionalidade da norma, por referência a estes mesmos
parâmetros e ao direito ao recurso (artigo 32º, nº 1).
2. Face aos parâmetros que foram chamados para aferir da conformidade
constitucional da norma que cumpre apreciar, importa afirmar, desde logo, que os
artigos 32º, nº 1, enquanto garante o direito ao recurso, e 20º, nº 1, na medida
em que consagra o direito de acesso ao direito, não são sequer invocáveis.
Reiterando jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdão nº 530/2001, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), entende-se que o artigo 32º, nº 1, da
Constituição da República Portuguesa (CRP) inclui o recurso nas garantias de
defesa do arguido, pelo que é invocável, relativamente a recurso interposto pelo
Ministério Público, apenas quando este seja interposto no exclusivo interesse da
defesa (artigo 53º, nº 2, alínea d), do CPP). Já não é, pois, invocável quando
esteja em causa um recurso interposto pelo Ministério Público do qual possa vir
a resultar uma decisão menos favorável para o arguido
Entende-se também que:
«(…) não se pode invocar o direito fundamental que é o “direito de acesso à
justiça e aos tribunais” para defender a admissão de recursos interpostos pelo
Ministério Público no exercício da acção penal, ou, pelo menos, dos quais pode
vir a resultar uma decisão menos favorável ao arguido.
Pode, desde logo, questionar-se se o direito de acesso à justiça e aos
tribunais, como direito fundamental dirigido contra o Estado, não deverá ser
considerado um direito que apenas sujeitos privados, e não o próprio Estado –
designadamente, entidades nas quais se encabeça o ius puniendi estatal (como é o
caso do Ministério Público) – , podem invocar.
Seja, porém, como for quanto a esta questão em geral, deve entender-se que o
exercício da acção penal pelo Estado (através do Ministério Público) não é
protegido pelo direito fundamental de acesso aos tribunais, previsto no artigo
20º da Constituição. É o que, se não logo de outros argumentos – como a previsão
do Ministério Público dentro do título V da parte III da Constituição, dedicado
aos “Tribunais”, a consagração da competência para exercício da acção nesse
mesmo contexto, ou o próprio sentido histórico e a função primordial dos
direitos fundamentais como “direitos de protecção” contra o Estado, e não
direitos reconhecidos a este ou aos seus órgãos –, resulta da própria letra do
artigo 20º, n.º 1, da Constituição, no qual se assegura o “acesso ao direito e
aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses e interesses legalmente
protegidos”, e não para o exercício da acção penal.
É certo que, por outro lado, que o artigo 219º comete ao Ministério Público
determinadas funções: “representar o Estado e defender os interesses que a lei
determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos
termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos
de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e
defender a legalidade democrática.” E não pode excluir-se que soluções
normativas das quais resulte uma limitação no acesso aos tribunais –
eventualmente apenas por preverem critérios restritivos para admissão de
recursos interpostos pelo Ministério Público – configurem ou impliquem uma
compressão inadmissível dessas funções constitucionalmente previstas, devendo,
portanto, tais soluções devam ser consideradas inconstitucionais por violação de
disposições da Lei Fundamental relativas às funções e competência do Ministério
Público enquanto instituição, previstas na respectiva divisão (parte III, título
V, capítulo IV). Não se tratará, ainda nesse caso, porém, de
inconstitucionalidade por lesão de um alegado direito fundamental do Ministério
Público».
3. Segundo o recorrente a norma em apreciação viola o princípio da legalidade do
processo penal, contido nos artigos 32º e 165º, nº 1, alínea c), da CRP, do qual
decorreria o princípio da legalidade das medidas de coacção, estabelecido no
artigo 191º, nº 1, do CPP (cf. reclamação do despacho de não admissão do
recurso, fl. 136 e ss., e alegações, supra ponto 5. do Relatório).
Sobre isto, há que dizer, em primeiro lugar, que o princípio da legalidade das
medidas de coacção justifica-se por apelo ao princípio da presunção de inocência
até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, consagrado no artigo 32º,
nº 2, primeira parte, da CRP, e face à reserva de lei restritiva do direito à
liberdade que a todos é reconhecido, decorrente dos artigos 27º, nº 1, e 18º,
nºs 2 e 3, da CRP (sobre o reflexo deste princípio no estatuto processual do
arguido enquanto objecto de medidas de coacção, Figueiredo Dias, “Sobre os
sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito
Processual Penal. O novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 27; no
sentido defendido, também Ana Luísa Pinto, “Aplicação de medidas de coacção e
correspondente forma de reacção. Restrições ao exercício das funções do
Ministério Público”, O Direito, Ano 140.º (2008) IV, p. 860 e ss.
Diferentemente, Pinto Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz
da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, Universidade Católica, 2009, comentário ao artigo 219º, ponto 3., autor
citado na reclamação do despacho de não admissão do recurso e nas alegações).
O princípio segundo o qual a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total
ou parcialmente (em função de exigências processuais de natureza cautelar) pelas
medidas de coacção previstas na lei (artigo 191º, nº 1, do CPP),
constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência do arguido e
no direito à liberdade, exige que sejam recorríveis decisões que apliquem ou
mantenham medidas de coacção não previstas na lei ou decisões que as substituam
por outras não previstas na lei (neste sentido, cf. “Decisão Sumária do Tribunal
da Relação de Évora, de 24-09-2009”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal,
2009, p. 317). Não propriamente decisões que não apliquem qualquer medida de
coacção. Caso em que o Ministério Público interporia o recurso sem ser no
exclusivo interesse da defesa, à margem da garantia de defesa do arguido
estabelecida na primeira parte do nº 2 do artigo 32º da CRP e do direito
fundamental que lhe é reconhecido no artigo 27º da CRP e dos quais decorre o
princípio da legalidade (tipicidade) das medidas de coacção.
Por outro lado, a norma em apreciação em nada contende com a reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República em matéria de processo
criminal (artigo 165º, nº 1, alínea c), da CRP), uma vez que a redacção vigente
do artigo 219º do CPP foi introduzida por lei deste órgão de soberania – Lei nº
48/2007, de 29 de Agosto. É de rejeitar, pois, o vício de inconstitucionalidade
orgânica que o Ministério Público imputa à norma que é objecto do presente
recurso.
4. O recorrente indica também o princípio da igualdade no requerimento de
interposição de recurso. Contudo, nas alegações refere o artigo 13º apenas
quando as conclui ao indicar os artigos da CRP que considera violados. Nesta
peça processual nada é alegado no sentido de a norma questionada violar o
princípio da igualdade. Na apreciação do mérito do recurso, por remissão para
alegações anteriormente produzidas, o Ministério Público sustenta a
inconstitucionalidade da norma do artigo 219º, nºs 1 e 3, do CPP, por violação
do estatuto constitucional desta magistratura (artigo 219º da CRP), do acesso ao
direito por parte do Ministério Público enquanto representante do
Estado-comunidade (artigo 20º, nº 1, da CRP) e do princípio da legalidade
(artigos 32º e 165º, nº 1, alínea c), da CRP). A referência que é feita ao
princípio da igualdade (artigo 13º da CRP) ocorre somente na transcrição de um
comentário de Pinto de Albuquerque ao artigo 219º do CPP, cuja perspectiva é
expressamente tida por mais crítica (mais crítica, dizemos nós, por abranger
também o princípio da igualdade).
Apesar de se poder concluir pelo “abandono” do princípio constitucionalmente
consagrado no artigo 13º, sempre se dirá o seguinte:
O princípio da igualdade que é invocável nos presentes autos só pode ser o
princípio da igualdade de armas (entre acusação e defesa), que a doutrina e a
jurisprudência foram retirando do artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem e que, entretanto, ganhou expressão no artigo 20º, nº 4, CRP,
por via da densificação do princípio do processo equitativo (assim, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I,
2007, anotação ao artigo 20º, ponto XI.).
Não faz propriamente sentido invocar o princípio da igualdade de armas entre a
acusação e a defesa relativamente a uma conformação processual concreta – como é
a subjacente aos presentes autos – em que o Ministério Público (a acusação)
requer a aplicação de uma medida de coacção e o juiz decide sobre o requerido no
papel de “juiz das liberdades”. A esta conformação é estranha, logo à partida,
uma qualquer ideia de armas processuais iguais perante um Tribunal (assim,
Damião da Cunha, “Breves notas acerca do regime de impugnação de decisões sobre
medidas de coacção. Comentário à decisão do Tribunal da Relação de Évora, de
24-09-2009”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2009, pp. 320 e 325 e s.).
Por outro lado, o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa
“perde a nitidez, no próprio direito ordinário, por o modelo de processo penal
não assumir (…) uma estrutura acusatória pura, num sentido formal” (artigos 53º
e 409º, nº 1, do CPP), de harmonia com a incumbência constitucional no sentido
de o Ministério Público, magistratura que goza de autonomia, exercer a acção
penal orientada pelo princípio da legalidade (artigo 219º, nºs 1 e 2),
tornando-se assim “evidente que a reclamada «igualdade» de armas processuais (…)
só pode ser entendida com um mínimo aceitável de correcção quando lançada no
contexto mais amplo da estrutura lógico-material global da acusação e da defesa
e da sua dialéctica” (cf., respectivamente, Fernanda Palma, “Direito penal e
processual penal (o papel da jurisprudência constitucional no desenvolvimento
dos princípios no caso português e um primeiro confronto com a jurisprudência
espanhola)”, La Constittución Española en el Contexto Constitucional Europeo,
Madrid, 2003, p. 1742, nota 13, e Figueiredo Dias, loc. cit., p. 30).
Entendimento que tem sido acolhido na jurisprudência do Tribunal Constitucional
(cf. Acórdãos nºs 38/89, 356/91 e 538/2007, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
5. O recorrente sustenta, ainda, que a norma questionada viola o artigo 219º, nº
1, da CRP, enquanto comete ao Ministério Público a função de defender a
legalidade democrática.
Nesta função inclui-se, indiscutivelmente, a faculdade de recorrer, já que o
recurso é essencial ao controlo das decisões judiciais num estado de direito
(cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 538/2007), pelo que normas que
estabelecem a irrecorribilidade de determinadas decisões judiciais (ou as que
não dão legitimidade ao Ministério Público para delas recorrer) podem configurar
ou implicar uma compressão inadmissível daquela função constitucionalmente
prevista, caso em que devem ser consideradas inconstitucionais por violação das
disposições da CRP relativas às funções e competência do Ministério Público
enquanto instituição (cf., supra, ponto 2., Acórdão do Tribunal Constitucional
nº 530/2001).
Nos presentes autos, a norma que é objecto do recurso de constitucionalidade
contém-se nos nºs 1 e 3 do artigo 219º do CPP, enquanto não admitem a
interposição de recurso por parte do Ministério Público de decisão que não
aplique medidas de coacção. Trata-se de decisão em matéria de medidas de
coacção, no sentido de não limitar parcialmente a liberdade do arguido, tomada
já depois de ter sido proferido despacho de acusação. Não se justifica, por
isso, qualquer intervenção processual penal do Ministério Público para defesa da
legalidade democrática ou para cumprimento de qualquer outra função que lhe
esteja constitucionalmente cometida. Designadamente a de exercer a acção penal
na fase de inquérito, investigando a notícia do crime e decidindo sobre a
submissão ou não do arguido a julgamento (artigos 32º, nº 5, e 219º da CRP).
Caso em que importaria sempre decidir se a impossibilidade de o Ministério
Público recorrer da decisão que não aplique medida de coacção configura ou
implica uma compressão inadmissível desta função.
Em matéria de medidas de coacção, a função de defesa da legalidade democrática
exerce-se garantindo o arguido, presumido inocente, contra privações ilegais e
injustificadas da liberdade, motivadas por razões de natureza estritamente
processual. O Ministério Público exerce esta função garantindo a observância da
lei em matéria de condições e princípios relativos à sujeição do arguido a
medidas de coacção (artigos 58º, nº 1, alínea b), 61º, nº 3, alínea d), 191º e
ss. e 268º, nº 1, alínea b), do CPP), o que manifestamente não está em causa
quando a decisão judicial é de não aplicação da medida de coacção requerida
(assim, Ana Luísa Pinto, loc. cit., p. 867 e ss.).
6. Ainda que assim não se entenda, seria sempre de concluir no sentido de não
haver uma compressão inadmissível daquela função. A função de defesa da
legalidade democrática poderá sempre ser exercida através de requerimento em que
o Ministério Público renove o pedido de aplicação de medida de coação, sem
prejuízo de o juiz a poder impor oficiosamente (artigo 194º, nº 1, do CPP), com
a vantagem de aquele requerimento e esta imposição se fundarem nas exigências
processuais de natureza cautelar que, no momento, se verifiquem (artigos 204º e
212º, nº 1, alínea b), do CPP). Diferentemente do que sucederia em sede de
recurso, caso em que o juízo sobre a verificação daquelas exigências seria
necessariamente reportado a momento anterior (assim, Damião da Cunha, loc. cit.,
p. 323 e s.).
7. Há que concluir, por conseguinte, que os nºs 1 e 3 do artigo 219º do Código
de Processo Penal, enquanto não admitem a interposição de recurso por parte do
Ministério Público de decisão que não aplique medidas de coacção, não violam os
princípios constitucionais do acesso ao direito por parte do Ministério Público,
da legalidade do processo penal e da igualdade, bem como a função constitucional
do Ministério Público de defensor da legalidade democrática.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Abril de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de
voto junta
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Discordei da presente decisão, dos fundamentos em que assenta e da
interpretação que nela é veiculada da jurisprudência deste Tribunal. Cumpre
agora enunciar brevemente as razões da minha dissidência.
2. Está em causa a norma extraída da aplicação conjugada dos nºs.
1 e 3 do artigo 219º do Código de Processo Penal na medida em que não admite a
interposição de recurso por parte do Ministério Público da decisão que não
aplique medidas de coacção.
3. Confrontado com a alegação, por parte do requerente, da
desconformidade da solução normativa em análise com o direito fundamental de
acesso à justiça e aos tribunais, o acórdão considera ininvocável este parâmetro
“para defender a admissão de recursos interpostos pelo Ministério Público (…)
dos quais possa a vir a resultar uma (…) decisão menos favorável ao arguido”. E
escuda-se, para o efeito, na circunstância de, como se refere no acórdão nº
530/01, dever entender-se que “o exercício da acção penal pelo Estado (através
do Ministério Público) não é protegido pelo direito fundamental de acesso aos
tribunais previsto no artigo 20º da Constituição”. Tal afirmação arranca da
ideia de que este direito fundamental se ajusta “à tutela de posições
subjectivadas, radicadas na esfera dos titulares de interesses particulares que,
no quadro do ordenamento jurídico, reclamam do Estado reconhecimento e
efectivação” (acórdão nº 538/2007).
É por se partir da ideia de que aquele direito se dirige “contra o
Estado e os seus órgãos de administração da justiça” que se entende que, por
estar “dentro do aparelho estadual que desempenha esta função, o Ministério
Público não pode ser visto como titular activo de um direito exercitável, nesta
dimensão, contra os órgãos do poder judicial com os quais colabora” (acórdão nº
538/2007).
Simplesmente, esta versão organicista ou estrutural não esgota toda
a dimensão problemática que a questão encerra. O que é desde logo assimilado
pela jurisprudência deste Tribunal, que reconheceu no artigo 20º da Constituição
uma “norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático”.
Nestes termos, “o acesso à justiça, corporizado, em matéria de recursos, na
efectiva disponibilidade (…) de meios processuais indispensáveis ao adequado
controlo da conformidade ao direito das decisões tomadas em juízo, é um valor
tutelável em si mesmo (…). Por detrás do direito fundamental de acesso à
justiça, está o mesmo princípio geral da realização do direito actuado pelos
órgãos estaduais com competência nesta matéria. É em função da plena
observância deste princípio e do valor que ele encerra que o Ministério Público
tem o poder-dever de interpor recurso, quando entende que uma decisão judicial
não assegura a sua realização” (acórdão nº 538/2007).
Uma conclusão que não pode deixar de valer de forma acrescida num
sistema onde a protecção preventiva de determinadas posições alegadamente
carecidas de tutela, designadamente através da imposição de medidas de coacção,
não pode deixar de ser efectuada tão só pela intervenção do Ministério Público,
uma vez que a ele é limitada a possibilidade de projectar no interior do
processo tais posições (por exemplo, e em particular, a da vítima de condutas
indiciariamente constitutivas de infracções penais).
Num sistema assim concebido, a concepção estrutural que vê no
Ministério Público uma parte do aparelho estadual, que portanto não poderia
exercer direitos contra este último, há-de ceder a uma visão que, atendendo à
circunstância de a ele estar confiada em exclusivo aquela projecção, não pode
deixar de, para a proteger e fazer valer, o destacar daquele.
O que nos conduz directamente ao resultado oposto ao do acórdão. Os
padrões valorativos que inspiram o artigo 20º da Constituição, eles próprios
expressão de uma exigência geral de realização e preservação do princípio do
Estado de Direito, não podem deixar de ser convocados pura e simplesmente por
estar em causa uma posição processual do Ministério Público. Decisivo para a
convocação dos princípios a que aquele preceito dá expressão não é o estatuto
subjectivo daquele que os faz valer, mas a densidade das posições que acedem ao
direito, no processo penal, através da intervenção do Ministério Público.
4. Assente a invocabilidade, no presente caso, do artigo 20º da
Constituição na medida em que a ele há que reconduzir os princípios
estruturantes do processo num Estado de Direito, importa ainda repudiar, por
unilateral e redutora, a concepção do princípio da legalidade que, em matéria de
medidas de coacção, apenas o constrói em função de um dos sentidos possíveis da
decisão em causa.
Num Estado de Direito democrático, a legalidade das medidas de
coacção, como de quaisquer outras, há-de aferir-se pelo respeito dos
pressupostos legais de que o ordenamento faz depender a sua mobilização em ordem
à protecção dos valores e situações jurídicas a cuja tutela se destinam. Os
princípios que fundam a recorribilidade de medidas ou decisões contrárias à lei
ou nela não previstas não podem excluir a recorribilidade de decisões que, em
objectiva violação da lei, recusem a aplicação de medidas de coacção. Não
existe qualquer princípio constitucional que funde o recurso das decisões que
recaiam sobre a promoção de tais medidas no exclusivo interesse dos que delas
são destinatários.
A mesma concepção unilateral e reducionista é perfilhada pelo
acórdão quando parece recusar a aplicação ao processo de aplicação de medidas
de coacção vigente entre nós do leit-motiv do processo equitativo (explicitado
no art. 6º, nº 1 da CEDH) e dos corolários que a jurisprudência do TEDH dele tem
retirado. Que uma determinada conceptualização mecânica de igualdade dos
sujeitos processuais não seja prestável face ao nosso modelo processual penal,
como a jurisprudência deste Tribunal o tem considerado, não implica a
ininvocabilidade da ideia mestra do processo equitativo de que o princípio da
igualdade de armas constitui uma das expressões. E daquela parece resultar que,
num sistema em que determinadas decisões são recorríveis, não é
constitucionalmente admissível, face à estruturação do processo num Estado de
Direito, que o direito ao recurso seja regulado a partir do resultado das
decisões que dele são objecto, admitindo-se a formação automática de caso
julgado apenas por dele beneficiar um determinado sujeito, ainda que esse
sujeito seja o arguido.
5. Considerando agora o parâmetro da defesa da legalidade
democrática, que o artigo 219º, nº 1 da Constituição põe a cargo do Ministério
Público, não divergirmos do acórdão quando afirma que em tal função se inclui a
faculdade de recorrer, já que o recurso é essencial ao controlo das decisões
judiciais num Estado de Direito, pelo que as normas que retiram a legitimidade
ao Ministério Público para recorrer devem ser tidas por inconstitucionais, por
violação daquele preceito constitucional, quando impliquem uma compressão
inadmissível daquela função (acórdãos nº 530/2001 e, sobretudo, 538/2007).
Mas já discordamos fundamentalmente do acórdão quando exclui a
relevância da intervenção do Ministério Público, em defesa da legalidade, face a
decisões que não apliquem medidas de coacção em momento posterior à prolação do
despacho de acusação. Não se vê em que é que este marco temporal, face à
definição legal dos pressupostos da determinação das medidas de coacção, possa
excluir que o recurso das decisões daquele tipo se possa incluir na defesa da
legalidade e na efectiva tutela dos interesses a que o Ministério Público está
legalmente adstrito, assim justificando a sua intervenção em via recursória.
Pela mesma razão, não vemos como a defesa da legalidade, no universo da
determinação das medidas de coacção, apenas possa ter lugar, como pretende o
acórdão, sempre e em todas as circunstâncias, a favor do arguido. Em face do
que entendemos que a total privação do direito ao recurso num domínio em que
pode estar em causa o controlo de legalidade de decisões que apenas pode ser
levado a cabo pelo Ministério Público não pode deixar de ser considerada uma
compressão inadmissível da função que constitucionalmente lhe é assinalada.
Note-se que este Tribunal decidiu já que uma tal compressão existia em situações
– acórdão nº 538/2007 – em que um direito ao recurso não era retirado ao
Ministério Público, apenas a sua utilização tendo ficado sujeita a um
determinado ónus cuja não satisfação acarretava que pudesse ficar por controlar,
como imposto pela defesa da legalidade, a conformidade de certas decisões aos
parâmetros normativos aplicáveis. E saliente-se que, no presente caso, uma tal
possibilidade de controlo está de todo precludida, uma vez que a solução legal
não importa a imposição de um qualquer ónus mas a total privação da
possibilidade de recorrer.
6. Por último, acrescente-se que não deixa de existir compressão
inadmissível da função de defesa da legalidade democrática pelo facto de,
ocorrendo ou tornando-se conhecidas outras circunstâncias, o Ministério Público
poder renovar o pedido de aplicação de medidas de coacção. A indefesa da
legalidade a que numa dada configuração se é conduzido não deixa de o ser pela
circunstância de, num outro e diferente contexto, não ser inviabilizada ao
Ministério Público a promoção da medida requerida ou de qualquer outra (sendo
certo que, em caso de indeferimento, esta decisão continuará a não poder ser
sindicada por via de recurso).
7. Pelo exposto, votaria a inconstitucionalidade da norma em
apreciação por violação dos princípios constitucionais consagrados nos artigos
20º (nºs. 1 e 4) e 219º, nº 1 da CRP.
Rui Manuel Moura Ramos