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Processo n.º 197/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. A., Lda, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez nos termos e com os fundamentos seguintes:
«Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator
Nos autos supra referenciados, em que é recorrido B. ,a recorrente, A., Lda, notificada do Acórdão produzido por esse Supremo Tribunal que decidiu não admitir a revista excepcional interposta, bem como do novo Acórdão que desatendeu a arguição da nulidade do primeiro e, conjuntamente com esta a inconstitucionalidade das normas jurídicas aplicadas, tributando o incidente com 5 U.C.s de taxa de justiça, em resultado de o pedido ser “manifestamente infundado e dirigido contra uma decisão que lei considera inequivocamente definitiva, e onde não se discute o mérito da causa”.
Uma vez que se encontram esgotados os meios recursórios ordinários, vem dessas decisões interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Termos em que requer seja recebido o recurso, seguindo-se os demais termos».
2. O recorrente, notificado da interposição de recurso, veio pugnar pela sua não admissão.
3. O recurso, apresentado junto do Supremo Tribunal de Justiça, não foi por este tribunal admitido, constando do texto do despacho de indeferimento o seguinte:
«Não admito o recurso para o Tribunal Constitucional, já que a recorrente não procedeu, como lhe impõe o artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e (Lei nº28/82, de 15 de Novembro), à indicação das normas cuja inconstitucionalidade suscitou durante o processo e que tenham, por efectivamente aplicadas, sido determinantes para a decisão final. Aliás, deixou-se dito no Acórdão de 9 do corrente – ora recorrido, e que indeferiu a nulidade assacada ao aresto de 12 de Janeiro – como advertência sobre a dogmática deste recurso, o seguinte:
“Desde logo duas perplexidades: o pugnar pela não aplicação de normas (sem especificar quais) que reconhece serem inconstitucionais (“…ou que deveriam ter sido” aplicadas) (MU; de outra banda arguir de inconstitucional uma norma, seu segmento ou sua interpretação, quando efectivamente aplicadas – ou determinantes – do decidido.
Ademais, a simples invocação dos artigos 202.º e 205.º da Constituição da República, o primeiro reportado à função jurisdicional e o segundo à dogmática das decisões dos tribunais é um mero apelo a conceitos programáticos não reportados a quaisquer segmentos do Acórdão ora questionado.
Irrelevante, em consequência, o aceno de eventuais violações de preceitos da lei fundamental.”».
4. A., Lda, reclamou, então, para o Tribunal Constitucional do despacho proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu o recurso de constitucionalidade que pretendera interpor para o Tribunal Constitucional, o que fez nos termos e com os fundamentos seguintes:
«A. LDA, com os sinais nos autos, notificada do douto despacho que não admitiu o recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional, vem desse despacho, nos termos do artigo 76º n.º 4 da Lei 28/82 de 15 de Novembro, RECLAMAR para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, o que faz nos termos e com os seguintes
FUNDAMENTOS
1º
Interposto recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão produzido pelo Supremo Tribunal de Justiça, da autoria da “formação” a que se refere o nº3 do art.721º-A do Código de Processo Civil,- que decidiu não admitir o Recurso de Revista Excepcional para aí interposto, bem como do acórdão que desatendeu a arguição de nulidade do anterior e a inconstitucionalidade das normas jurídicas aplicadas, tributando o incidente com 5 UCS de taxas de justiça sancionatória, por o pedido ser “manifestamente infundado e dirigido contra uma decisão que a lei considera inequivocamente e definitiva, e onde não se discute o mérito da causa”, veio a ser produzido o despacho sob censura.
2º
Conforme esse despacho, não foi admitido o recurso para o Tribunal Constitucional porque a Recorrente não procedeu, nos termos do prescrito pelo art.70º da Lei nº28/82 de 15 de Novembro, à indicação das normas cuja inconstitucionalidade suscitou durante o processo, e que tenham sido determinantes para a decisão final, por efectivamente aplicadas.
3º
Louva-se ainda tal despacho no facto de, para além dessa omissão, ou eventualmente por causa dela, a Recorrente já ter sido advertida, no acórdão de 9 de Fevereiro, sobre a dogmática do recurso, porque pugnou pela não aplicação de normas sem especificar quais, dizendo que as mesmas são inconstitucionais, e porque arguiu de inconstitucional uma decisão, quando tal vício só pode ser assacado a uma norma.
4º
O despacho sob reclamação desrespeitou e ignorou duplamente a lei: primeiro, no que aliás foi fiel ao entendimento anterior, por fazer tábua rasa do disposto no art. 75º nº5 da Lei nº28/82 de 15 de Novembro, que inequivocamente determina que “se o requerimento de interposição de recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o Requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias”,
sendo certo que, conforme o nº2 do mesmo artigo a referência feita no nº5 refere-se ao recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do nº1 do art.70º.
5º
Significa o vindo de dizer que se a Lei tivesse sido respeitada, a Reclamante teria sido convidada para corrigir a sua omissão.
6º
Errou, porém, por outro modo, o despacho reclamado, ao recusar a admissão do recurso, invocando, embora “a latere” ou “ex abundante”, razões que se prendem com o fundo da questão, ou seja, pretendendo julgar de novo a acção, inviabilizando o recurso através de uma suposta sacralização da decisão recorrida, o que é obviamente inadmissível.
7º
Essa outra vertente do despacho recorrido, permite, contudo, desde já, esclarecer que nem sequer por tal motivo esse despacho tem qualquer razão atendível.
8º
Com efeito, não é verdade que não tenham sido citadas as normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se suscitou (apesar de, atenta a omissão do acórdão recorrido, poder ser suscitada a questão da inconstitucionalidade, mesmo em relação a normas que implicitamente foram aplicadas, como se decidiu nos acórdãos 13/83 e 16/96).
9º
Do mesmo passo também não é verdade que se tenha arguido de inconstitucional uma decisão, quando tal vício só pode ser assacado a uma norma, pese embora a delicadeza doutrinária da distinção entre norma e decisão, sobretudo desde o exame crítico a que Kelsen sujeitou o sistema de conceitos usado pela teoria do direito, questão que, com muita modéstia mas muito maior brilhantismo, foi abordada no acórdão 413/94 do Tribunal Constitucional).
10.º
Sem prejuízo de essa questão, por respeitar ao fundo da questão, não ter interesse directo para a questão formal da admissibilidade do recurso, importa, por causa dessa justificação avançada pelo despacho recorrido dizer ainda o seguinte.
11.º
Primeiro: O acórdão sob censura, relativo à interposição de um recurso de revista excepcional, decidiu que é legalmente cumprivel uma promessa de transmissão e destaque de prédio rústico em parcelas não previamente autonomizadas, em violação frontal do disposto nos arts.1376º e 1379º do Código Civil.
12º
A interpretação dada a essa norma (no sentido de que está na disponibilidade das partes obedecer-lhe ou não) constitui, ao ver da recorrente, violação do princípio da legalidade, plasmado nos arts.202ºnº2 e 205ºnº1 da Constituição da República Portuguesa (mas se erradamente se indicou a norma constitucional violada, nem assim o recurso podia ser rejeitado ou improceder, como se decidiu, por exemplo, no acórdão 33/96 do Tribunal Constitucional).
13.º
Segundo: O acórdão sob censura entendeu que funciona regularmente um tribunal arbitral composto por 3 juízes, mesmo que na decisão apenas participem 2, na ausência do terceiro que não compareceu nem se sabe se foi convocado, em violação flagrante do disposto na lei nº31/96 de 29 de Agosto.
14º
Tal interpretação (no sentido de que desde que se formasse maioria era irrelevante participarem na decisão ou não todos os juízes que formavam o tribunal) entendeu a Recorrente que constituía flagrante violação do art.209ºnº2 da Constituição da República Portuguesa (sem prejuízo de tribunal de recurso poder, como se disse, integrar esse vício em violação de outra norma).
15º
Terceiro: o acórdão recorrido recusou a admissibilidade do recurso de revista excepcional, por entender que as duas questões anteriormente suscitadas não tinham “a relevância exigível”, nem era necessária qualquer pronúncia sobre as mesmas para melhor aplicação do direito, sem compreender nem avaliar a premência do interesse social que levou a lei a proibir a pulverização da propriedade, nem a gravidade das consequências dessas decisões, e sem previamente convidar o recorrente a aperfeiçoar as suas alegações, nos termos que se entendiam adequados, bem como sem convidar a recorrente a juntar os documentos tidos por precisos, na óptica dos decisores.
16º
A interpretação dada à norma do art. 721º-A nº1 a) do Código de Processo Civil, (segundo a qual é da competência da “formação” aí aludida, e sem possibilidade de recurso, a definição prévia do que são questões com “relevância jurídica”, ou cuja apreciação seja “claramente necessária” para uma “melhor aplicação do direito”), é contrária ao principio da certeza e estabilidade jurídicas, que tem assento nos arts.2º e 282ºnº4 da Constituição da República Portuguesa.
17.º
Por outro lado, o próprio texto do art.721º-A do Código de Processo Civil, fazendo apelo a conceitos indeterminados, em questões como a do direito de recorrer, é ele próprio inconstitucional, independentemente da interpretação que se lhe dê, por violar os mesmos princípios da certeza e estabilidade.
18º
Quarto: a decisão recorrida, por fim, permitiu-se, por considerar que os documentos juntos pela recorrente não obedeciam à forma legal, decidir sem notificar a parte para os juntar, na forma entendida como legal, em violação flagrante do disposto no art.266ºnº1 do Código de Processo Civil, por motivo inexplicados, mas eventualmente por entender que essa norma é de aplicação discricionária, e, por isso, também em violação, do disposto nos arts. 2º e 282 nº4 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, na integral procedência da reclamação, deve ser revogado o despacho recorrido, para ser substituído por outro que passe a receber o recurso, ou, a não se entender desde já assim, determine o convite à recorrente para cumprir o disposto no art.75º-A da Lei 28/82 de 15.11, em cumprimento do estabelecido no nº5 do mesmo normativo.
Para tanto, deve a presente reclamação ser recebida, seguindo-se os demais termos, com remessa dos autos para o Tribunal Constitucional.
Para se fazer JUSTIÇA!»
5. O Ministério Público (MP), notificado da presente reclamação, pronunciou-se no sentido do seu indeferimento, porque:
«1. A recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu a revista excepcional e daquele que indeferiu a arguição de nulidade.
2. Esse requerimento de interposição do recurso, não contém nenhum dos elementos exigidos pela LTC: i) ao abrigo de que alínea do n.° 1, do artigo 70.º é interposto; ii) a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada; iii) os princípios constitucionais que se consideram violados; iv) onde suscitou a questão.
3. Dada a ausência total de elementos, poderia mesmo questionar-se se ainda seria aplicável o disposto no artigo 75°-A, n° 5, da LTC. De qualquer forma, a notificação da recorrente, nos termos daquela disposição, para suprir tais deficiências formais, revelar-se-ia uma diligência inútil, face à inverificação dos requisitos materiais de admissibilidade do recurso.
4. Efectivamente, mesmo partindo do princípio que a questão que a recorrente pretende que o Tribunal aprecie, tem a ver com o artigo 721 .°-A, n.° 1, alínea a) e c) e 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, porque só em relação a tal preceito se cita a Constituição (os artigos 202.° e 205.°), o recurso não seria de admitir.
5. Na verdade, a peça processual onde está levantada a questão é na arguição de nulidade, constatando-se que aí, apesar de se falar da Constituição, não se enuncia qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
6. Por outro lado, a arguição de nulidade já não é o meio idóneo e atempado para suscitar a questão (v.g. Acórdãos n°s 646/2009 e 27/20 10).
7. O momento processual indicado para tal, eram as alegações apresentadas no recurso de revista excepcional, não tendo aí sido feita qualquer referência a preceitos ou princípios constitucionais.
8. A recorrente só está dispensada do ónus da suscitação prévia, se a interpretação acolhida na decisão recorrida for insólita, inesperada ou imprevisível, o que não se verifica nos presentes autos.
9. Por outro lado, para a recorrente poder beneficiar desse regime excepcional, teria ela própria, não só de o invocar, como adiantar as razões porque entende que lhe deve ser aplicado (acórdão n° 213/2004), o que não fez quando interpôs o recurso, nem quando reclamou para esta Tribunal da decisão que não lho admitiu.
10. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
6. Notificada a reclamante do parecer do Ministério Público, por nele se sustentar que, para além dos fundamentos apresentados pelo despacho que rejeitou a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional, outros não invocados no despacho reclamado justificariam a não admissão do recurso, veio, nomeadamente, dizer o seguinte:
«I
Na esteira do que não passa de uma posição conhecida costumeira e de rotina, que não facilita nem promove a mais correcta aplicação do direito, vem o Ministério Público, em seu parecer, pugnar pela rejeição liminar do recurso, mesmo antes do cumprimento do disposto no art°. 75-A n° 5 da LCT (!) por incumprimento do n° 1 do art°. 70°, porque, embora a questão que se pretende ver apreciada “tenha a ver” com o modo como o STJ interpretou e aplicou o art°. 721°-A n° 1 alínea a) e c) e n°s 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, “o recurso não seria de admitir” (sic) pois “a peça processual onde está levantada a questão é na arguição de nulidade” que “já não é o mais idóneo e atempado para suscitar a questão” porque o momento azado para o efeito “eram as alegações apresentadas no recurso de revista excepcional”, o que não foi feito não sendo a decisão “insólita, inesperada e imprevisível”.
Sem prejuízo de a decisão ser, pelo contrário, nova, “insólita, inesperada e imprevisível”, certo é que não tem o M.P. qualquer razão pelos motivos que sumariamente se vão referir:
1.º- Ao defender-se, como se defende, que não deve ser admitida um recurso porque o recorrente não tem razão, confundem-se razões “de forma” com razões “de fundo”, o que não devia fazer-se: se há razões de fundo para que o recurso venha a ser julgado improcedente, oportunamente as mesmas serão sopesadas, averiguadas e expressas; do que se trata, por ora, é de analisar a questão noutro plano, não substancial - e nesse o M. P. devia, a bem do direito, e da Justiça, defender o inverso do que defende: receba-se o recurso, pois está em condições de ser recebido, como está.
2°- A questão suscitada pela recorrente não se relaciona, não “tem a ver” (sic) com o art°. 721-A n° 1, alínea a) e i) e 2 e 3 do Código de Processo Civil: é exactamente a da interpretação que pelo Supremo ou, melhor, por um número restrito de juízes do Supremo, foi dada a esse normativo.
A arguição de inconstitucionalidade dessa interpretação podia fazer-se antes de se saber que ela (a interpretação) existia, ou seja, logo nas alegações, como o M.P. pretende-
É claro que não podia, a não ser que por um juízo de prognose se adivinhasse que tão grande violação da lei era susceptível de ser defendida por um órgão responsável, colocado no topo dos órgãos jurisdicionais.
Juízos de prognose o signatário não sabe fazê-lo nem neste domínio nem em qualquer outro. Provavelmente, o M. P. também não.
3°- Mesmo um sistema, como o nosso, tão pouco respeitador do princípio da legalidade numa sociedade livre, o Tribunal Constitucional tem honrosamente sustentado que
a) Quer a recusa expressa quer a implícita de aplicação de normas pode ser sindicada em sede de recurso de inconstitucionalidade (Ac. Trib. Constitucional n° 62 1/84, relatado pelo Cons. Jorge Campinos in www.dgsi .pt)
b) Quer a norma em si quer o modo como é interpretada podem ser sindicados em sede de recurso de constitucionalidade (Ac. 114/89 in www.dgsi.pt)
c) A exigência de ter sido suscitada a questão durante o processo deve ser tomada “não no sentido formal, mas em sentido funcional”, pelo que fica preenchida se o tribunal que aplicou a norma arguida da inconstitucionalidade tiver oportunidade de emitir um juízo sobre essa inconstitucionalidade (Ac. n° 94/88 relatado pelo Cons. Cardoso da Costa in www.dgsi .pt)
d) É admissível o recurso em relação a decisões-surpresa ou em que não era exigível prever ou antever a possibilidade da interpretação censurada (Ac. 136/85 in www.dgsi.pt).
No caso sub judice há, sem dúvida, uma decisão surpresa - para mais, sem referência ou menção a qualquer norma que o leitor tem de, apenas, supôr ou intuir - que é manifestamente contrária à Constituição em domínios particularmente delicados e sensíveis (numa parte relativa ao fraccionamento de prédios rústicos, noutra parte relativa às regras da existência e funcionamento dos tribunais) e a “formação” de juízes do Supremo chamada a sindicar essas questões não as decidiu por entender que não têm “suficiente relevância”!
Eis as questões que interessam ao recurso, que, salvo o devido respeito, foi correctamente instruído e informado, pari passu com a lei.
Vejamos.
(…)
V
Duas palavras ainda parecem necessárias, reforçando o já afirmado.
- Não é verdadeira a afirmação segundo a qual não foram citadas as normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se suscitou, o que seria irrelevante, aliás, pois a decisão posta em crise também as não cita e, face a tal questão da inconstitucionalidade podia pôr-se mesmo em relação a normas que só implicitamente foram aplicadas (corno se decidiu nos acórdãos 13/83 e 16/96);
- Não é verdadeiro que se tenha arguido de inconstitucional uma decisão, quando tal vício só pode ser assacado a uma norma, pois:
a) O acórdão da formação do STJ sob censura, relativo à interposição de um recurso de revista excepcional, decidiu que é legalmente cumprivel urna promessa de transmissão e destaque de prédio rústico em parcelas não previamente autonomizadas, em violação frontal do disposto nos arts.1376° e 1379° do Código Civil, e tal interpretação (no sentido de que está na disponibilidade das partes obedecer-lhe ou não) constitui, ao ver da recorrente, violação do princípio da legalidade, plasmado nos arts.202°n°2 e 205°n°1 da Constituição da República Portuguesa (mas se erradamente se indicou a norma constitucional violada, nem assim o recurso podia ser rejeitado ou improceder, como se decidiu, por exemplo, no acórdão 3 3/96 do Tribunal Constitucional);
b) O acórdão do STJ sob censura entendeu que funciona regularmente um tribunal arbitral composto por 3 juízes, mesmo que na decisão apenas participem 2, na ausência do terceiro que não compareceu nem se sabe se foi convocado, em violação flagrante do disposto na lei n°31/96 de 29 de A2osto, arguindo a recorrente a interpretação (assim afirmada: desde que se forme maioria é irrelevante participarem na decisão ou não todos os juízes que formavam o tribunal) de violar flagrantemente o art.209°n°2 da Constituição da República Portuguesa (sem prejuízo de tribunal de recurso poder, como se disse, integrar esse vício em violação de outra norma).
c) O acórdão do STJ recusou a admissibilidade do recurso de revista excepcional, por entender que as duas questões anteriormente suscitadas não tinham “a relevância exigível”, nem era necessária qualquer pronúncia sobre as mesmas para melhor aplicação do direito, sem compreender nem avaliar a premência do interesse social que levou a lei a proibir a pulverização da propriedade, nem a gravidade das consequências dessas decisões, e sem previamente convidar o recorrente a aperfeiçoar as suas alegações, nos termos que, embora mal, se entendiam adequados, bem corno sem convidar a recorrente a juntar os documentos tidos por precisos, na óptica dos decisores, e tal interpretação dada à norma do art. 721°-A n°1 a) do Código de Processo Civil, (segundo a qual é da competência da “formação” aí aludida, e sem possibilidade de recurso, a definição prévia do que são questões com “relevância jurídica”, ou cuja apreciação seja “claramente necessária” para uma “melhor aplicação do direito”), é contrária ao princípio da certeza e estabilidade jurídicas, que tem assento nos arts.2° e 282°n°4 da Constituição da República Portuguesa.
d) De resto, que o próprio texto do art.721°-A do Código de Processo Civil, fazendo apelo a conceitos indeterminados, em questões como a do direito de recorrer, é ele próprio inconstitucional, independentemente da interpretação que se lhe dê, por violar os mesmos princípios da certeza e estabilidade.
e) O acórdão do STJ, permitiu-se, por considerar que os documentos juntos pela recorrente não obedeciam à forma legal, decidir sem notificar a parte para os juntar, na forma entendida como legal, em violação flagrante do disposto no art.266°n°l do Código de Processo Civil, por motivo inexplicados, mas eventualmente por entender que essa norma é de aplicação discricionária, e, por isso, também em violação, do disposto nos arts. 2° e 282 n°4 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que o parecer do MP nem é aceitável, nem tão pouco esgota as questões sobre que importaria que se pronunciasse, devendo ser desatendido, por mal fundado.».
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
7. A requerente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu a revista excepcional, bem como daquele que indeferiu a arguição de nulidade.
O Tribunal a quo indeferiu o pedido sustentando que a requerente não indicou «as normas cuja inconstitucionalidade suscitou durante o processo e que tenham, por efectivamente aplicadas, sido determinantes para a decisão final» (fls. 372).
8. Resulta da análise dos autos que a então recorrente não indicou, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresentado junto do tribunal a quo, os elementos exigidos pelos números 1 e 2 do artigo 75.º-A, da LTC: Não enunciou a norma ou dimensão normativa cuja inconstitucionalidade pretenderia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, não indicou a alínea ao abrigo da qual o recurso seria interposto, não indicou a norma ou o princípio constitucional que considerou violado, nem a peça na qual teria suscitado a questão de constitucionalidade normativa, havendo indicado ainda que recorria de duas decisões (do Acórdão de não admissão da revista excepcional e do que indeferiu a arguição de nulidade).
Na reclamação, a reclamante defende que deve, no Tribunal Constitucional, ter lugar o convite ao aperfeiçoamento previsto no artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC, por este não lhe ter sido dirigido pelo tribunal a quo, após a interposição do recurso de constitucionalidade.
Contudo, não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar a não utilização, pelo tribunal reclamado, da faculdade de convidar o requerente a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso que lhe é dada pelo artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC, quando o reclamante não haja sido convidado no tribunal reclamado a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso (cfr., v.g., os Acórdãos n.º 534/2007, e n.º 209/2010, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). O Tribunal tem entendido que, nestas situações, «fica o reclamante com o ónus de tomar a iniciativa de vir espontaneamente satisfazer os requisitos formais em falta na reclamação apresentada, sob pena do seu indeferimento (vide, neste sentido, Lopes do Rego, em “Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional” pág. 216, da ed. de 2010, da Almedina, e os acórdãos do Tribunal Constitucional aí citados). Não tendo cumprido esse ónus, deve a reclamação ser indeferida» (Acórdão n.º 209/2010).
Ora, a reclamante veio, na reclamação, por sua iniciativa, indicar parte destes requisitos formais.
Ainda assim, não supriu a falta da indicação da alínea do artigo 70.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, ao abrigo do qual interpusera o recurso, nem da peça onde teria já sido suscitada a questão de inconstitucionalidade durante o processo.
A reclamante veio, na reclamação, indicar como objecto do recurso de constitucionalidade, genericamente, o artigo 721.º-A do Código Processo Penal (fls. 384), e, a dado passo, também, especificamente, a norma constante do n.º 1, da alínea a), do mesmo artigo, na interpretação «segundo a qual é da competência da “formação” aí aludida, e sem possibilidade de recurso, a definição prévia do que são questões com “relevância jurídica”, ou cuja apreciação seja “claramente necessária” para uma “melhor aplicação do direito”» (fls. 383), por violação do artigo 2.º e o artigo 282.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) (explicitando que nestes têm assento o princípio da certeza e estabilidade jurídicas – fls. 384).
Refere também que «o acórdão sob censura entendeu que funciona regularmente um tribunal composto por 3 juízes, mesmo que na decisão apenas participem 2, na ausência do terceiro que não compareceu nem se sabe se foi convocado, em violação flagrante do disposto na Lei nº 31/96, de 29 de Agosto», e que «tal interpretação (no sentido de que desde que se formasse maioria era irrelevante participarem na decisão ou não todos os juízes que formavam o tribunal) viola o artigo 209.º n.º 2 da CRP. (entende-se haver um lapso manifesto de escrita, e querer o reclamante referir-se à Lei n.º 31/86, sem, aliás, precisar o artigo).
Indica ainda os artigos 202.º, n.º 2 e 205.º, n.º 1 da CRP como havendo sido violados pelo disposto nos artigos 1376.º e 1379.º, do Código Civil (CC), na «interpretação dada a essa norma (no sentido de que está na disponibilidade das partes obedecer-lhe ou não)».
Todavia, mesmo tendo existido, no momento da reclamação do acórdão que indeferiu o recurso de constitucionalidade, a indicação daquele que o agora reclamante entende ser o objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, por sua iniciativa, o Tribunal entende que subsiste o problema da falta de suscitação durante o processo.
É que, no caso, não se trata apenas de o objecto do recurso não ter sido devidamente identificado no requerimento de interposição de recurso. Também o não foi anteriormente, em momento que pudesse, para efeitos de recurso de constitucionalidade, ser considerado processualmente adequado.
As questões de constitucionalidade normativa sempre deveriam ter sido apresentadas junto do tribunal a quo, que só assim ficaria constituído no dever de sobre elas se pronunciar.
O que nos leva ao ponto seguinte.
9. De facto, nos autos, não são apenas os requisitos formais do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que permanecem em falta, mas também requisitos materiais, insupríveis no momento da apresentação da reclamação (ou, na maioria dos casos, no momento da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional).
Verifica-se, dos elementos constantes dos autos, que a reclamante não suscitou qualquer questão de conformidade normativa na interposição do recurso de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional apresentado junto do tribunal a quo, (o que, aliás, seria extemporâneo), mas também o não fez durante o processo, em momento ainda processualmente relevante.
Independentemente de se aferir do acerto da identificação de uma norma que tenha sido ratio decidendi do processo, e da clareza da sua delimitação, sempre se dirá que a reclamante não logrou demonstrar ter invocado tais interpretações em momento processualmente adequado.
Como atrás salientado, quanto ao artigo 1376.º (mas não chega a ocorrer com o artigo 1379.º do CC – fls. 344), quanto ao artigo 721.º-A (fls. 343 e 346/7), bem como quanto ao artigo 6.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 31/86) (fls. 344), a questão de constitucionalidade é apenas suscitada na peça processual relativa à arguição de nulidades. E, mesmo que se considerasse haver sido apresentada ao tribunal a quo uma questão de constitucionalidade normativa – o que não foi o caso – sempre se entenderia que o momento da sua suscitação não seria já adequado.
Para solucionar esta falta, que lhe é apontada no Parecer do Ministério Público, a reclamante, na resposta ao Parecer – e só aí – vem invocar que o tribunal a quo teria procedido a uma interpretação-surpresa do artigo 721.º-A, n.º 3 do Código Processo Penal (CPP) (e apenas quanto a este). Fá-lo somente quando confrontada com a posição do MP, que sustenta que a aplicação de uma norma retirada do 721.º-A, do CPP, não só não podia ser considerada uma aplicação surpresa para efeitos de se prescindir da suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo (afinal, a agora reclamante pedia, então, revista extraordinária, precisamente ao abrigo de tal artigo do Código de Processo Civil), como, ainda que o tivesse invocado, teria sempre de o fundamentar. E tem razão o MP quando sustenta que a reclamante o não fez.
No caso, o tribunal a quo não interpretou de modo insólito ou imprevisível o artigo 721.º-A, do CPP, pelo que a então recorrente estaria em condições de antecipar a questão de constitucionalidade normativa, que tardiamente invoca, cumprindo, desse modo, o dever de litigância diligente e prudência técnica na antevisão das possibilidades interpretativas da norma que, previsivelmente, seriam adoptadas no Acórdão que decide, no caso, não admitir a revista excepcional (cfr., a este propósito, o Acórdão n.º 634/04 do Tribunal Constitucional, disponível in www.tribunalconstitucional.pt).
Consequentemente, o momento processual adequado ao cumprimento do ónus da suscitação prévia – imposto pelo artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e pelos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, ambos da LTC,- era, afinal, o da apresentação das alegações no recurso de revista excepcional. E a agora reclamante não o utilizou, assim inviabilizando a admissão do recurso para o Tribunal Constitucional.
Ainda no que se refere ao objecto de recurso apresentado na Reclamação, o reclamante refere:
«a decisão recorrida, por fim, permitiu-se, por considerar que os documentos juntos pela recorrente não obedeciam à forma legal, decidir sem notificar a parte para os juntar, na forma entendida como legal, em violação flagrante do disposto no art.266ºnº1 do Código de Processo Civil, por motivo inexplicados, mas eventualmente por entender que essa norma é de aplicação discricionária, e, por isso, também em violação, do disposto nos arts. 2º e 282 nº4 da Constituição da República Portuguesa».
Mas resulta de forma clara que o reclamante impugna uma decisão judicial, e não norma.
Note-se, por isso, que o não preenchimento dos requisitos materiais teria, de todo modo, tornado inútil o convite para suprir a falta dos requisitos formais exigidos pelos artigos 75.º-A da LTC.
Assim sendo, importa julgar improcedente a reclamação apresentada.
III - Decisão
10. Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A., Lda, da decisão que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, proferida nestes autos em 24 de Fevereiro de 2010.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 14 de Julho de 2010. - Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos