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Processo n.º 201/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA 1ª SECÇÃO
DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. A. e B. recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º n.º 1 alínea b) da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro), do acórdão proferido na Relação do Porto em 23 de Setembro de 2009, pretendendo ver apreciada «a inconstitucionalidade do artigo 412.º, n.º 4 do C.P.P quando interpretado no sentido de que mesmo tendo o recorrente transcrito na fundamentação do recurso as declarações das testemunhas que fundamentam uma decisão diversa da recorrida, tem o recorrente que indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, quando na acta não se deu cumprimento ao estatuído no artigo 364.º, n.º 2 do C.P.P.». No entendimento das recorrentes, assim interpretada a norma viola o artigo 32.º n.º 1 da Constituição e «o princípio do duplo grau de jurisdição».
2. Todavia, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
[...] O recurso sustenta-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC norma que, em processo de fiscalização concreta, permite recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo; tais recursos só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer – artigo 72º n.º 2 da citada LTC.
Tem-se entendido que a adequada suscitação de questão de inconstitucionalidade normativa impõe que, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, o recorrente tenha identificado claramente uma determinada norma jurídica que, em determinado sentido, não pode ser aplicada no processo por ser desconforme com a constituição.
Acontece que as recorrentes nunca suscitaram, nestes moldes, perante a Relação do Porto, qualquer inconstitucionalidade quanto à norma do n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, e só essa é aqui relevante.
Nestes termos, o Tribunal não pode conhecer do objecto do recurso. [...]
3. Inconformadas, A. e B., reclamam para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A, da citada LTC, nos termos e com os seguintes fundamentos:
[...] 3.º
As recorrentes alegaram que a interpretação do artigo 412.º, n.º 3 e 4 do C.P.P, nos termos em que foi feita pelo Tribunal recorrido era inconstitucional porque violadora dos artigos 32.º, n.º 1 da CRP e o principio do duplo grau de jurisdição.
4.º
Aliás, diga-se, desde já, que a inconstitucionalidade foi cometida pelo Tribunal recorrido, que não admitiu o recurso, porque fez uma interpretação da norma do artigo 412.º, n.º 3 e 4 do C.P.P, que no entender das recorrentes é inconstitucional.
5.º
Pelo que, assim sendo, entende-se que foi dado cumprimento o artigo 70.º, n.º 1, al. b) da LTC segundo a qual “é permitido o recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”. Sem prescindir:
6.º
A admissibilidade de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
7.º
As recorrentes entendem que alegaram a inconstitucionalidade ao longo do processo, quando a questão poderia ser suscitada e conforme poderia ter sido suscitada.
8.º
De qualquer forma, mesmo que assim não se entenda, o caso sub judice enquadra-se nas situações em que é dispensável a suscitação da questão de inconstitucionalidade.
9.º
Isto porque, estamos perante uma situação excepcional em que as recorrentes não tiveram oportunidade de proceder à prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade do critério normativo aplicado na decisão recorrida, por esta aplicação ser inesperada, constituindo uma «decisão-surpresa». Senão, vejamos:
10.º
No douto parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação não foi posto em causa o critério normativo aqui em questão – artigo 412.º, n.º 3 e 4 do C.P.P, nos moldes em que as recorrentes consideram a norma constitucional.
11.º
Só na prolação da decisão recorrida é que, os Srs. Juízes Desembargadores aplicaram o critério normativo, nos termos em que as recorrentes o consideram inconstitucional, tendo apenas na arguição da nulidade do acórdão por omissão de pronuncia, as recorrentes alegado que a interpretação feita pelo Tribunal da Relação nesses termos era violadora de direitos consignados na CRP (artigos 32.º, n.º 1 da CRP e o principio do duplo grau de jurisdição), mas já depois de proferida a decisão recorrida.
12.º
As recorrentes entendem que alegaram a inconstitucionalidade ao longo do processo, quando a questão poderia ser suscitada e conforme poderia ter sido suscitada.
13.º
O Tribunal Constitucional, ao não admitir um recurso devido ao facto de não ter sido antes suscitada uma questão que também antes não poderia ser suscitada nos termos em que aquele Tribunal pretendia, está a cometer, salvo o devido respeito, uma denegação do direito à justiça, e a violar, ele próprio, o art. 20.º -1 da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, vêm as recorrentes requerer a V. Exas. que a presente reclamação seja atendida e, em consequência se tome conhecimento do objecto do presente recurso.
3. O representante do Ministério Público neste Tribunal, notificado da reclamação deduzida no processo, respondeu-lhe da seguinte forma:
1º
Pela Decisão Sumária de fls. 688 e 689, não se tomou conhecimento do recurso porque as recorrentes não tinham previamente suscitado a questão da inconstitucionalidade das normas que pretendiam ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional.
2.º
Sendo claro que na motivação do recurso para a Relação a questão não foi suscitada, haverá que saber se estão as recorrentes dispensadas do ónus da suscitação prévia, por a interpretação acolhida, na decisão recorrida, ser surpreendente, inesperada, imprevisível ou insólita, de tal forma que não era exigível que aquelas pudessem antecipar essa interpretação.
3.º
A Relação do Porto não conheceu do recurso quanto à matéria de facto porque as recorrentes não tinham cumprido as especificações dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, uma vez que não tinham referido as concretas provas que impunham decisão diversa e as provas que deveriam ser renovadas por referência aos supostos técnicos consignados na acta, não o havendo feito nem nas conclusões, nem na motivação do recurso, apenas tendo procedido a transcrição de partes da gravação da prova produzida em audiência, uma iniciativa sem cobertura legal, segundo a decisão.
4.º
Dada a natureza e a profundidade do incumprimento, as deficiências não eram supríveis, pelo que se não justificava um convite para esse efeito.
5.º
Parece-nos claro que esta interpretação nada tem de surpreendente ou imprevisível, bem pelo contrário é a que imediatamente decorre da simples leitura do preceito.
6.º
As próprias recorrentes, implicitamente, acabam por aceitar que não cumpriram os ónus atrás referidos, entendem é que estavam dispensadas do seu cumprimento porque tinham procedido à transcrição das partes da gravação, tarefa que, como se viu, a Relação veio a entender que não tinha cobertura legal.
7.º
Assim, se as recorrentes entendiam que, neste caso, estavam dispensadas de cumprir o estabelecido no artigo n.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, e que a interpretação da norma que as não considerasse dispensadas, era inconstitucional, poderiam e deveriam tê-lo dito na motivação do recurso.
8.º
Quanto à inconstitucionalidade residir na falta de notificação para suprir as deficiências, as recorrentes apenas referem tal dimensão normativa, na reclamação da Decisão Sumária.
9.º
Ora, é no requerimento de interposição do recurso que se fixa o seu objecto, não podendo, numa reclamação de Decisão Sumária, esse objecto ser alargado a outras e novas dimensões normativas.
10.º
Quanto ao não cumprimento do estatuído no artigo 364.º, n.º 2 do CPP, a Relação confirmou que se poderia estar perante uma irregularidade, já sanada, porque não atempadamente arguida.
11.º
Não tendo sido questionada nem a qualificação daquele vício como “irregularidade” (artigo 123.º, do CPP), nem a consequente sanação, o Tribunal Constitucional só pode aceitar tal conclusão, não se podendo, daí, retirar quaisquer consequências, como fazem as recorrentes quando, no requerimento de interposição do recurso, enunciam a norma objecto do recurso.
12.º
Assim, poderemos mesmo afirmar que a dimensão normativa que ali vem referida, não corresponde à efectivamente aplicada
13.º
Diremos, por último, que tendo as recorrentes recorrido para a Relação, também e essencialmente na qualidade de assistentes, não faz muito sentido invocarem o princípio das garantias de defesa que, obviamente, se dirige exclusivamente ao arguido.
14.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.
4. Cumpre decidir. Como já se deixou escrito, as recorrentes pretendem, ao abrigo do artigo 70.º n.º 1 alínea b) da LTC, ver apreciada a inconstitucionalidade do artigo 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que «mesmo tendo o recorrente transcrito na fundamentação do recurso as declarações das testemunhas que fundamentam uma decisão diversa da recorrida, tem o recorrente que indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na acta, quando na acta não se deu cumprimento ao estatuído no artigo 364.º, n.º 2 do Código de Processo Penal», norma que terá sido aplicada na decisão recorrida, o acórdão proferido na Relação do Porto em 23 de Setembro de 2009.
Por decisão sumária proferida no processo, entendeu-se que o recurso não podia ser recebido em virtude de não ter sido suscitada, perante a Relação do Porto, qualquer questão de inconstitucionalidade quanto à citada norma do n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
Na sua reclamação as reclamantes apresentam, para contrariar tal fundamento, dois argumentos que, salvo o devido respeito, se afiguram mutuamente excludentes e contraditórios, pois, não deixando de afirmar, inicialmente, que «alegaram a inconstitucionalidade ao longo do processo, quando a questão poderia ser suscitada e conforme poderia ter sido suscitada», acabam, afinal, por invocar estarem perante uma «situação excepcional em que as recorrentes não tiveram oportunidade de proceder à prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade do critério normativo aplicado na decisão recorrida, por esta aplicação ser inesperada, constituindo uma 'decisão-surpresa'».
Ora, a verdade é que a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º e o n.º 2 do artigo 72º, ambos da LTC, exigem que o interessado haja previamente suscitado, perante o tribunal recorrido, a questão de inconstitucionalidade que é objecto do recurso, «de modo processualmente adequado, em termos de este estar obrigado a dela conhecer», o que revela que a suscitação da questão deve ocorrer antes de o tribunal recorrido proferir a sua decisão, e ver, consequentemente, esgotada a competência para conhecer de questões novas. Tal significa que o dever de suscitar, com oportunidade, a questão de inconstitucionalidade obriga o recorrente a invocar essa matéria quando, com probabilidade, o tribunal irá incluir, na ratio decidendi da sua decisão, a norma afectada de inconstitucionalidade.
No caso em presença, as recorrentes ora reclamantes foram alertadas para a probabilidade séria da aplicação da norma alegadamente inconstitucional, na iminente decisão da Relação do Porto, quando foram notificadas do parecer do Ministério Público proferido nesse tribunal, peça em que se invocava precisamente a doutrina do artigo 412.º n.º 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal como fundamento do não conhecimento do recurso, em virtude de as recorrentes «não haverem feito indicação dos concretos factos e das concretas provas» que determinariam a pedida revisão da matéria de facto. As reclamantes responderam ao parecer do Ministério Público, pugnando pelo conhecimento do recurso. Mas na resposta, nada invocaram que possa ser entendido como uma imputação de desconformidade constitucional à mencionada norma do Código de Processo Penal. Aliás, o que sustentaram, então, é que deram cumprimento ao ónus imposto no referido preceito legal, o que revela que, na essência da sua pretensão, a inconstitucionalidade arguida proviria de um errado cumprimento do dito artigo 412.º do Código de Processo Penal, vício que obviamente afecta a decisão tomada e não a norma aplicada.
Deve, pois, concluir-se que as reclamantes não suscitaram, oportunamente, a questão de inconstitucionalidade, quando é manifesto que poderiam tê-lo feito; razão pela qual é totalmente infundada a alegação de que, não admitindo o recurso, o Tribunal estaria a denegar, com violação do artigo 20.º n.º 1 da Constituição, o direito de acesso à justiça.
5. Termos em que se decide indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelas reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 25 de Maio de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão