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Processo n.º 285/2010
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional.
O despacho reclamado tem o seguinte teor:
Continuando o recorrente a pretender mover-se fora do contexto do restrito objecto do recurso, como logo de início se observou, a fls. 4816, na Relação de Lisboa e persistindo, por outro lado, considerados os despachos antecedentes, de fls. 4905 e 4914, sem identificar, em qualquer caso, expressamente, qual a figurada desconformidade de entendimento normativo, indefiro o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a fls. 4870.
2. Na reclamação apresentada junto deste Tribunal, o reclamante veio dizer o seguinte:
A., arguido recorrente nos autos à margem identificados, inconformado com o teor do Douto despacho de fls., vem dele reclamar para o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 77 da LTC, nos termos e com os fundamentos seguintes:
Como facilmente se constata dos diversos requerimentos apresentados pelo ora recorrente, as inconstitucionalidades foram suscitadas, quer nas motivações de recurso apresentado do Acórdão de 1ª Instância, quer nos requerimentos apresentados junto do Tribunal da Relação de Lisboa, quer nos requerimentos apresentados perante o STJ.
Nas referidas peças, foram identificadas, quer as normas da lei ordinária, quer os preceitos constitucionais violados e bem assim, o sentido atribuído às normas reputadas de inconstitucionais.
Remetendo, na íntegra, para as ditas peças, requer o recorrente se profira Despacho que admita o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Termos em que deve ser proferido Despacho que admita o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
3. O recurso de constitucionalidade tem o seguinte teor.
II) Quando assim se não entenda, declara também aqui, o recorrente pretender interpor Recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos e com os fundamentos seguintes:
– O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do art 70 da LTC (Lei 28/82 de 15.11),
– Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos, abaixo identificados, nos termos e com os fundamentos: A fls. 2031, MP na Acusação (pág. 55), protestou juntar os exames de ADN de Miguel Silva e José Pereira. Certo é que, o resultado de tais exames é inconclusivo (fls. 3146 e seguintes), pelo que, apesar da ausência dos prova, o Tribunal recorrido optou por considerar que os factos foram praticados por A., condenando o recorrente Como se alcança da perícia de fls. 1084, as sapatilhas apreendidas têm o n.° 44, sendo manifesto que de tal relatório não se conclui (com certeza), que tais sapatilhas foram utilizadas no .. do Lourel e muito menos pelo recorrente A.. De acordo com o depoimento da Testemunha B. em audiência (sessão de 28.03.2007, CD minuto 1:04:06 a 1:31:43) “(...) o A.calça o 41 e nunca calçou o nº. 44 (...) no caso da .. da Oura, foi decisiva a vigilância montada ao motociclo ulilizado (…) (pag. 43 do Acórdão recorrido). Esquece-se o Tribunal recorrido que, quem foi encontrado com objectos no Algarve foi apenas o arguido Carrilho. Ninguém afirmou em audiência ter visto o recorrente A. no Algarve, ligado directa ou indirectamente aos factos denunciados. Por outro lado, nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência referiu ter visto (nem mesmo com dúvidas) o recorrente A. participar nos factos constantes da pronúncia, pelo que não se vislumbra como é que o Tribunal recorrido pôde concluir pala sua participação nos assaltos ao .. do Lourel e à …da Oura. Não se vislumbra (e o Acórdão recorrido também não o explicou) como é que pode resultar provado que A. tenha utilizado o motociclo apreendido no Algarve. Quando se entenda o contrário, não se vislumbra como é que o Acórdão recorrido considerou que o eventual utilizador do motociclo sabia que a chapa de matrícula estava trocada. Pela prova produzida em audiência (onde é manifesto que ninguém reconheceu nenhum dos arguidos) e pe1o Acórdão recorrido, não se vislumbra como é que o Tribunal recorrido conseguiu concluir (atentas as regras da experiência comum) “quem fez, o quê, quando e como”. Pela prova produzida em audiência o Tribunal deveria ter dado como provado (art. 355 CPP) que o ora recorrente não participou em nenhum dos assaltos constantes da acusação. O Acórdão recorrido padece de falta de fundamentação em relação ao aqui recorrente já que não ousou demonstrar (em termos de lógica comunicacional) que medida é que, de acordo com a prova produzida, entendeu que o ora recorrente, cometeu os crimes por que foi condenado, para efeitos de preenchimento dos tipos de ilícito respectivos. O Acórdão recorrido errou manifesta e notoriamente na apreciação da prova, já que, pela prova produzida, não deveria ter dado como provado que o recorrente praticou os factos constantes da pronúncia. O Tribunal recorrido violou assim o artigo 355 do CPP, já que não valem em julgamento quaisquer provas que não tenham sido produzidas ou examinadas em audiência. Não tendo absolvido o arguido, o Tribunal recorrido violou o art 355 do CPP, tendo interpretado o aludido preceito em violação do P. In Dubio Pro Reo, enquanto corolário do P. da Presunção de Inocência do Arguido, consagrado no art 32 n.° 2 da Constituição da República.
– Tais normas – art. 355 do CPP, interpretadas no sentido de permitirem a condenação dum arguido quando não foi produzida em audiência, prova bastante, nas circunstâncias em que a lª e 3ª Instância o fizeram, violam o disposto no art. 32 n.° 2 da Constituição da República Portuguesa.
– Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade da norma dos art 355 do CPP por violação do disposto no art. 32 n.° da CRP, quando interpretadas no sentido de permitir que um arguido seja condenado, quando, da prova produzida, designadamente dos resultados de ADN, resulta precisamente o contrário.
– As questões de inconstitucionalidade, foram expressamente suscitadas, nas alegações/motivações de recurso, na primeira instância.
– O presente recurso subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Invoca o apoio judiciário concedido em primeira instância.
4. O Exmo. Conselheiro Relator no tribunal a quo proferiu então o seguinte despacho.
Convido o requerente a esclarecer se e quando suscitou, considerando o restrito objecto do recurso, a referenciada inconstitucionalidade normativa, bem assim, suposto, por hipótese, o cumprimento daquele requisito, e admitindo, também por hipótese, que a figurada desconformidade de entendimento normativo se reporta à própria norma, qual o sentido atribuído ao preceito legal que reputa inconstitucional e que pretende ver apreciado no recurso de fiscalização concreta.
5. A esse despacho, veio o recorrente, ora reclamante, responder do seguinte modo.
A., arguido-recorrente nos autos à margem identificados, vem esclarecer o seguinte:
As inconstitucionalidades foram suscitadas, quer nas motivações de recurso de fls... quer nos requerimentos apresentados perante o STJ.
Nas referidas peças, foram identificadas, quer as normas da lei ordinária, quer os preceitos Constitucionais violados e bem assim, o sentido atribuído às normas reputadas de inconstitucionais.
Remetendo, na íntegra, para as ditas peças, requer o recorrente se profira Despacho que se pronuncie expressamente em relação ao Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
6. Foi então proferido o seguinte despacho pelo Exmo. Conselheiro Relator no tribunal a quo.
Não satisfazendo o recorrente, ainda, do meu ponto de vista, com a imprescindível minúcia, o convite formulado, ao qual deve corresponder, ao menos, a indicação concreta de fls. de onde constarão os aludidos elementos, bem assim a especificação solicitada na parte final do despacho de fls. 4905, concede-se-lhe, excepcionalmente, o prazo suplementar de 5 dias.
7. A esse despacho, veio o recorrente, ora reclamante, responder do seguinte modo.
A., recorrente nos autos à margem identificados, vem juntar aos autos cópia dos requerimentos por si apresentados através de correio electrónico e através de fax, em 08.02.2009 e em 27.07.2009, onde claramente se suscita a questão da interpretação de diversas normas ordinárias em violação da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, requer se profira Despacho que se pronuncie expressamente em relação aos recursos interpostos pelo ora recorrente para o Tribunal Constitucional.
8. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal veio dizer o seguinte.
1. O arguido A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Julho de 2009, que negou provimento ao recurso interposto do acórdão do Tribunal de Júri.
2. Esse requerimento não obedece aos requisitos mínimos exigidos pelo artigo 75º, n°s 1 e 2 da LTC.
3. Desde logo, ali, não vem enunciada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
4. Ao recorrente foram dadas duas oportunidades para suprir as deficiências do requerimento, não o tendo, no entanto, conseguido.
5. Tal, seria suficiente para que a reclamação fosse indeferida.
6. Além disso, o objecto do recurso que ao Supremo Tribunal de Justiça competia apreciar e apreciou, era circunscrito à fundamentação da medida da pena única aplicada ao arguido.
7. Ora, o único preceito legal referido no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal – o artigo 355º do CPP – é completamente estranho ao objecto do recurso, tal como tinha sido delimitado.
8. Verifica-se, pois, que a norma cuja inconstitucionalidade viria questionada, não foi, nem podia ter sido, aplicada na decisão recorrida.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
9. Resulta do teor do despacho reclamado, conjugado com os dois despachos que o antecederam através dos quais o juiz convidara o requerente a suprir as insuficiências do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, que este último foi indeferido com fundamento em o mesmo ser omisso relativamente à explicitação do sentido atribuído ao preceito legal que se reputa inconstitucional e que se pretende ver apreciado no recurso de fiscalização concreta.
Afirma o reclamante que resulta dos diversos requerimentos apresentados que “[…] as inconstitucionalidades, foram suscitadas, quer nas motivações de recurso apresentado do Acórdão da 1ª Instância, quer nos requerimentos apresentados junto do Tribunal da Relação de Lisboa, quer nos requerimentos apresentados perante o STJ”. Vejamos.
O despacho reclamado não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento no facto de o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ser omisso relativamente à explicitação do sentido atribuído ao preceito legal que se reputa inconstitucional e que se pretende ver apreciado no recurso de fiscalização concreta, não obstante as sucessivas oportunidades dadas ao recorrente, ora reclamante, para suprir tal deficiência.
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, o recorrente, ora reclamante, identifica como questão de constitucionalidade a norma do artigo 355.º do Código de Processo Penal, “[…] quando interpretada no sentido de permitir que um arguido seja condenado, quando, da prova produzida, designadamente dos resultados de ADN, resulta precisamente o contrário”.
Entendeu o tribunal a quo não vir aí enunciado expressamente, e com a devida minúcia, o sentido atribuído ao preceito legal que se reputa inconstitucional e que se pretende ver apreciado pelo Tribunal Constitucional.
É de confirmar integralmente o despacho reclamado.
A delimitação da interpretação normativa dada ao preceito do artigo 355.º do Código de Processo Penal no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade não constitui objecto idóneo para efeitos de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, na medida em que não contém uma vocação de generalidade e abstracção na enunciação do critério normativo que lhe está subjacente, autonomizável da pura actividade subsuntiva, ligada irremediavelmente a particularidades específicas do caso concreto e, portanto, passível de controlo jurídico-constitucional.
Com efeito, não obstante, do ponto de vista formal, ter-se equacionado uma questão de constitucionalidade de “norma” – no sentido em que o recorrente, ora reclamante, se não limitou a impugnar directamente a própria decisão e tendo até, na sua aparência, indicado o sentido ou interpretação com que considera ter sido tomado e aplicado o preceito alegadamente violador da Constituição – a delimitação da “interpretação normativa” efectuada, configura, quando analisada na sua substância, um abusivo expediente consistente em forjar artificialmente uma “norma” para assim aceder à jurisdição constitucional.
Embora sob a capa da concreta aplicação da norma constante do artigo 355.º do Código de Processo Penal – preceito que estabelece o princípio da imediação, aí se exigindo que quaisquer provas sejam produzidas ou examinadas na audiência de julgamento – é manifesto que, in casu, o que o recorrente, ora reclamante, realmente pretende controverter é a concreta e casuística adequação e correcção do juízo de valoração da prova produzida em audiência.
Por outras palavras, o que o recorrente, ora reclamante, aí afirma, em rigor, é que aquele preceito foi violado, na medida em que o arguido foi condenado quando, da prova produzida, designadamente dos resultados de ADN, resultaria a sua inocência.
10. Independentemente do fundamento oferecido no despacho reclamado para a não admissão do presente recurso, que é de manter, compulsados os autos, verifica-se que em lugar algum o recorrente suscitou qualquer questão de constitucionalidade normativa, o que acarreta igualmente a inadmissibilidade do recurso.
Acresce, também, que se não verifica cumprido, in casu, o requisito de ter a norma – por mera hipótese, pois, como se viu, não se está sequer perante uma norma – cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada sido efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
Ora, em sede de fiscalização concreta, tratando-se de formular um juízo que tem por objecto norma aplicada a um caso, é pressuposto de conhecimento do recurso de constitucionalidade que a decisão que o Tribunal Constitucional venha a proferir sobre a questão suscitada seja susceptível de produzir algum efeito sobre a decisão de que se recorre, o que, in casu, atendendo à impossibilidade de o tribunal a quo reapreciar a matéria de facto, não sucederia.
III
Decisão
12. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando o despacho reclamado que não admitiu o recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2010
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão