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Processo n.º 985/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A., S.A., impugnou judicialmente a decisão da Autoridade para as Condições do Trabalho que lhe aplicou uma coima única de €6.720, em processo de contra-ordenação, por violação do artigo 273.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Trabalho de 2003 e do artigo 16.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro.
Por sentença de 22 de Julho de 2009, o Tribunal Judicial de Setúbal negou provimento à impugnação.
Para chegar a tal resultado, a sentença ponderou o seguinte:
“(…)
Do art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o Novo CTrabalho, da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Marco, e das questões de constitucionalidade:
Está imputada a violação do art. 273.º nºs. 1 e 2, als. a), b), d), f) e m) do CTrabalho de 2003, o que constitui contra-ordenação muito grave, nos termo do art. 671.º n.º 1 do mesmo diploma.
O art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, sob a epígrafe “norma revogatória”, prevê, no n.º 1 al. a), a revogação do CTrabalho de 2003, excepcionando, no n.º 3 al. a), entre outros, o citado art. 273.º. Mas certo é que esta alínea nada dizia à norma punitiva do art.º 671.º do CTrabalho de 2003, que assim se deu por revogada.
Na Declaração de Rectificação 2 1/2009, de 18 de Março, declara-se que a citada Lei 7/2009 saiu com diversas inexactidões, que se declarou rectificar, entre elas a al. a) do nº 3 do art. 12.º, de tal modo que, onde se lê “a) Artigos 272.º a 312.º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho…” deve ler-se “a) Artigos 272º a 280º e 671º, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho…”.
Vem sendo afirmado que tal Declaração de Rectificação é nula, pelas seguintes razões: -
- dispõe o art. 5.º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro (sobre a publicação, a identificação e formulário de diplomas), na versão republicada no anexo à Lei 42/2007, de 24 de Agosto, que «As rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga ou para correcção de erros materiais provenientes de divergências entre o texto original e o texto de qualquer diploma publicado na 1ª série do Diário da República e são feitas mediante declaração do mesmo órgão que aprovou o texto original, publicada na mesma série»;
- a indicação do art. 212.º a 280.º e a omissão do art. 671.º do CTrabalho não decorre de lapso gramatical, ortográfico, de cálculo ou de natureza análoga;
- nem decorre de erro material proveniente de divergências entre o texto original e o texto publicado na 1ª série do Diário da República. Com efeito, do confronto do texto original com o publicado no dia 12 de Fevereiro de 2009, não resulta qualquer divergência, no que concerne à citada al. m) do n.º 6 do art. 12.º da Lei 7/2009;
- para chegar a tal conclusão, basta consultar o Decreto da Assembleia da República n.º 262/X, publicado no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 61/X/4, de 26 de Janeiro de 2009;
- texto final que decorre, aliás, de um processo de alteração, após veto e reapreciação, da versão publicada por Decreto da Assembleia da República n.º 255/X, publicada no Diário da Assembleia da República, II série A, n.º 34/X/4, de 28 de Novembro de 2008;
- não pode haver qualquer dúvida sobre o que se considera texto original (o do citado Decreto da Assembleia da República n.º 262/X);
- nos termos do art. 156.º n.º 1 do Regimento da Assembleia da República, «A redacção final dos projectos e propostas de lei incumbe à comissão parlamentar competente», sendo certo que «concluída a elaboração do texto este é publicado no Diário [da Assembleia da República]»;
- até três dias úteis após a publicação no Diário da Assembleia da República, os deputados podem reclamar das inexactidões, tendo o Presidente de decidir em vinte e quatro horas, existindo ainda a possibilidade de recurso para o Plenário ou para a Comissão Permanente (art. 157.º do Regimento), determinando o art. 158.° do Regimento que «considera-se definitivo o texto sobre o qual tenham recaído reclamações ou aquele a que se chegou depois de decididas as reclamações apresentadas»;
- é esta versão final dos Decretos da Assembleia da República que é enviada ao Presidente da República para promulgação (art. 159.º do Regimento);
- sendo certo que nem o Presidente da República, em sede de promulgação, nem o Governo, em sede de referenda, têm poderes para alterar o texto;
- o que significa que a única possibilidade de o texto original ser distinto do que surge no Diário da Assembleia da República de 26 de Janeiro de 2009 (II série A) é ter ocorrido alguma reclamação que levasse a alterar o texto remetido para o Presidente da República. Mas, o que resulta da cronologia do diploma que se encontra no “site” da Assembleia da República é que tal não sucedeu;
- logo, a Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março, não cumpre o disposto no art. 5º n.º 1 da Lei 74/98, de 11 de Novembro, sendo, por isso, ilegal;
- a tanto acresce que esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: a coberto de uma rectificação está, efectivamente, a alterar-se a lei, violando, assim, o disposto no art. 161.º al. c) da Constituição; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29.º n.º 4, da Constituição da República;
- como escreve o Professor Figueiredo Dias, «esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam por isso sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma) abranger na punibilidade também certos (outros) comportamentos» (in Direito Penal Português, Tomo 1, 2 Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 180).
Estamos de acordo com este raciocínio – tanto mais que é para nós evidente que a Declaração de Rectificação 21/2009 inova, passando a punir como contra-ordenação certo comportamento, que entretanto deixara de ser punido pelo art. 12.º da Lei 7/2009, tal como esta veio publicada no DR de 12.02.2009 e tal como esta foi aprovada pela Assembleia da República. Está, pois, em causa um autêntico acto legislativo, que deveria assumir a forma de lei – arts. 112.º n.º 1, 161.º al. c) e 166.º n.º 3 da Constituição – após os competentes debates e votações – art. 168.º n.ºs 1 e 2 da Constituição.
Mas, na nossa perspectiva, a discussão não pode – nem deve – terminar por aqui.
Se para nós é patente que a punição como contra-ordenação da conduta dos autos surge revogada no art. 12.º n.º 1 al. a) da Lei 7/2009, tal como esta foi publicada no dia 12.02.2009 e foi efectivamente aprovada após discussão e votação na Assembleia da República, pensamos que outra questão se deverá colocar: será constitucional a despenalização de tal conduta-
Note-se que o art. 59.º n.º 1 al. c) da Constituição afirma que todos os trabalhadores têm direito à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, enquanto que o n.º 2 exige ao Estado o dever de assegurar tais condições de trabalho a que os trabalhadores têm direito. Ou seja, o art. 59.º n.º 2 exige um comportamento interventor do Estado nesta matéria, estabelecendo as medidas adequadas a assegurar tais condições de trabalho e sancionando os comportamentos que, por algum modo, violem tais direitos. Assim, quando o legislador pune comportamentos violadores das condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, está a cumprir uma obrigação constitucional, dirigida aos próprios poderes públicos.
Ora, se no âmbito do CTrabalho de 2003 existia uma estrutura sancionatória que efectivamente pretendia garantir o dever do Estado em assegurar essas condições de trabalho, no Novo CTrabalho, aprovado pela Lei 7/2009, no que respeita à higiene, segurança e saúde no trabalho, temos apenas alguns princípios gerais – arts. 281.º a 283.º – remetendo-se para regulamentação, ainda não aprovada. Assim, de uma estrutura sancionatória assegurando o efectivo cumprimento pelo Estado da obrigação imposta pelo art. 59.º n.º 2 da Constituição, passou-se para o vazio legislativo.
Talvez de forma inadvertida, mas mesmo assim, violando aquela injunção constitucional.
A propósito, cita-se Gomes Canotilho e Vital Moreira que, na sua Constituição Anotada, Vol. I, 4ª ed., 2007, pág. 771, sobre o referido art. 59.º, afirmam o seguinte:
«O segundo problema conexiona-se com a extensão do regime dos direitos, liberdades e garantias dos direitos económicos, sociais e culturais, quando estes tenham obtido um determinado grau de concretização (direitos fundamentais derivados). Trata-se, por um lado, de impedir que a exequibilidade dada a uma norma constitucional lhe seja depois retirada. Desta forma, todos os direitos constantes deste artigo beneficiam de garantia nos aspectos materiais já legalmente concretizados (ex.: o estabelecimento do salário mínimo), os quais não podem ser anulados ou restringidos (...) De resto, isto não é mais do que a aplicação concreta do regime de protecção dos direitos de origem legal (...) às concretizações legislativas dos direitos constitucionais.»
Mais adiante, sobre o art. 59.º n.º 1 al. c) da Constituição, a págs. 773, organizam o seguinte comentário:
«A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde (n.º 1/c) é, simultaneamente, um direito dos trabalhadores e uma imposição constitucional dirigida aos poderes públicos (e aos empregadores), no sentido de estes fixarem os pressupostos e assegurarem o controlo das condições de higiene, segurança e saúde. Neste sentido, compete ao Estado editar regulamentos de segurança, higiene e saúde e tomar efectivas medidas de controlo da aplicação destes regulamentos. Muitos dos aspectos relacionados com a higiene e segurança estão regulamentados em convenções internacionais da OIT que vinculam o Estado Português. Note-se que a LC n.º 1/97 introduziu a indispensabilidade de a prestação de trabalho ocorrer com condições de saúde, para além das condições de higiene e segurança. Procura-se dar abertura constitucional a algumas directivas laborais europeias referentes à segurança e saúde, hoje transpostas em larga medida para o plano interno (cfr. L 35/2004, arts. 2.º, 41.º e ss).»
Finalmente, continuam os mesmos autores, na pág. 775, quanto ao n.º 2 do art. 59.º da Constituição:
«Enquanto o n.º 1 deste artigo reconhece direitos imediatamente dirigidos contra as entidades empregadoras e o Estado, o n.º 2 estabelece um conjunto de tarefas (incumbências) dirigidas ao Estado (desde logo ao legislador), no sentido de realizar os primeiros (cfr. o caput do n.º 2). Trata-se, portanto, de direitos positivos dos trabalhadores, aos quais correspondem obrigações de concretização (através de leis e outras medidas) do Estado (e não dos empregadores), sob pena de inconstitucionalidade por omissão e, eventualmente, de responsabilidade civil do Estado pelos danos causados por essa omissão (cfr. art. 22.º).»
Logo, quando o Estado impôs a necessidade de serem realizados controlos eficazes da saúde dos trabalhadores e da sua aptidão para o exercício das suas tarefas profissionais, e estabeleceu um regime sancionatório, fê-lo não só porque havia que cumprir aquela Directiva 89/391/CEE, mas ainda porque o art. 59.º n.º 1 al. c) e n.º 2 da Constituição impunha uma obrigação de concretização pelo Estado daqueles direitos positivos dos trabalhadores, tanto mais que estamos em face de direitos fundamentais derivados, que já não podem ser anulados ou restringidos.
Repete-se, estando em causa a concretização de normas constitucionais, em que o poder público tem o dever de proteger, de forma activa e interventiva, os direitos dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, estabelecendo um sistema adequado de controlo e fiscalização do cumprimento desses direitos, a substituição do regime sancionatório constante do art. 671.º do CTrabalho de 2003, por um vazio legal – mesmo que, eventualmente, inadvertido – não é constitucionalmente admissível.
Assim, respeitando opinião diversa, mas pensando que a questão merece ser discutida sob esta perspectiva, decide-se:
- recusar a aplicação da Declaração de Rectificação 21/2009, de 18 de Março, na parte em que rectificou a al m) do n.º 6 do art. 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na medida em que se trata de um autêntico acto legislativo, o qual deveria assumir a forma de lei, após os competentes debates e votações, assim tendo sido violados os arts. 112.º n.º 1, 161.º al. c), 166.º n.º 3 e 168.º n.ºs 1 e 2 da Constituição;
- mas recusar, também, a aplicação do art. 12.º n.º 1 al a) da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o art. 671.º do CTrabalho de 2003, por violação do art. 59.º n.º 1 al. c) e n.º 2 da Constituição.”
2. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 3 do artigo 72.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), visando a apreciação da (in)constitucionalidade das “normas” cuja aplicação foi recusada.
Tendo o recurso prosseguido, o Ministério Público alegou de modo a sustentar as seguintes conclusões:
“66.°
1. A Lei nº 74/98, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 2/2005, de 24 de Janeiro, nº 26/2006, de 30 de Junho e nº 42/2007, de 24 de Agosto, define e circunscreve rigorosamente o âmbito em que podem ser feitas rectificações a diplomas legais.
2. Subjacente, a um tal quadro jurídico, está a preocupação de assegurar que se não alterem diplomas fora do quadro definido pelos requisitos constitucionais e legais que legitimem uma tal alteração.
3. A Declaração de Rectificação n.º 21/2009, ao proceder, nos termos em que o fez, a alterações substanciais no texto do diploma que, aparentemente, vinha rectificar (Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, que aprovou o novo Código do Trabalho), designadamente “recuperando” matéria contra-ordenacinal que deixara, entretanto, de vigorar no ordenamento jurídico, por força da versão inicial da referida Lei, viola, assim, os princípios da não retroactividade da lei penal (e contra-ordenacional), da segurança jurídica e da igualdade, decorrentes da Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9º, alinea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4).
4. Com efeito, relativamente ao presente recurso, havia certas contra-ordenações de natureza laboral, que se encontravam previstas na Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto (Código do Trabalho de 2003). Posteriormente, porém, nos termos do art. 12, nº 1, alínea a), da versão original da Lei 7/2009, a Lei 99/2003 foi revogada, não havendo, no elenco das excepções previstas no nº 3, alínea a), deste artigo, nenhuma referência ao art. 671º do mesmo diploma, que considerava a violação do art. 273º como contra-ordenação muito grave; a referência, ao art. 671º da Lei 99/2003, apenas foi introduzida, na citada Lei 7/2009, pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, não constando do texto inicial aprovado pela Assembleia da República.
5. Nestes termos, deve julgar-se inconstitucional a norma vertida na alínea a), do nº 3, do artigo 12º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na versão constante da Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, por violação dos arts. 112º, nº 1, 161º, alinea c), 166º, nº 3 e 168º, nºs 1 e 2 da Constituição.
6. Com efeito, a pretensa “rectificação”, com a vultuosa dimensão da que foi efectuada pela Declaração de Rectificação nº 21/2009, de 18 de Março de 2009, ultrapasse largamente o âmbito de aplicação que a Constituição autoriza e que a lei rigorosamente delimita para este efeito.
7. Nessa medida, nos presentes autos, uma tal actuação do legislador acaba por infringir, inapelável e negativamente, os princípios da não retroactividade da lei penal (e conta-ordenacional), da igualdade e da segurança jurídica, protegidos pela Constituição da República Portuguesa (cfr. artigos 9º, alínea b), 13º e 29º, nºs 1, 3 e 4 do texto constitucional).
8. Crê-se, pois, de manter o juízo de inconstitucionalidade feito pelo Tribunal a quo, quanto a esta parte da sua argumentação, com as consequências legais daí decorrentes.
9. Não se crê, todavia, de concordar com o digno magistrado a quo, quanto à invocada inconstitucionalidade decorrente do facto de o art. 12º da Lei 7/2009 ter vindo criar “um vazio legal”, despenalizando uma conduta - por contraposição com a anterior legislação (Lei 99/2003, de 27 de Agosto) -, o que, no entender do mesmo magistrado, violaria o art.º 59º da Constituição.
10. Desde logo, 4o se crê estar perante uma verdadeira omissão legislativa, pelo menos vo1urtária. Com efeito, a Lei 7/2009 (cfr. o proémio do nº 3 do art. 12) previa, n sua versão inicial, a necessidade de uma regulamentação ulterior para diversas das suas disposições, apenas não tendo incluído uma referência ao art. 671º da Lei 99/2003 (cfr. versão inicial do art. 12 nº 3, al. a), da Lei 7/2009) por aparente esquecimento do legislador, que procurou corrigir tal esquecimento – embora mal – através da Declaração de Rectificação 21/2009.
11. Ou seja, é pelo facto de o digno magistrado a quo ter previamente considerado – e bem, como se viu – que a Declaração de Rectificação 21/2009 era inconstitucional – solução essa, naturalmente, não pretendida pelo legislador – que a omissão legislativa ocorre, não se crendo de punir o legislador por um facto – omissão de um conduta – que, em rigor, não quis cometer.
12. Termos em que, nesta parte, não deve o Tribunal Constitucional aceitar esta parte da argumentação do digno magistrado.”
A recorrida contra-alegou, sustentando as seguintes conclusões:
“1ª - Tal como o entende o MP recorrente a Declaração de Rectificação, n.º 21/2009, de 18.03.12, que “rectificou” o n.º 3, a) do artigo 12º da Lei n.º 7/2009 é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 9º, b), 13º e 29º da CRP.
2ª - Tal como o entende o MP recorrente, o artigo 12º, n.º 3 da Lei nº 7/2009, que aprovou o Código do Trabalho, na versão constante da citada Declaração de Rectificação é materialmente inconstitucional por violação dos artigos 112º, n.º 1, 161º, c), 166º, n.º 3 e 168º, n.ºs 1 e 2 da CRP.
3.ª- Improcede a alegada [na decisão recorrida] inconstitucionalidade por omissão decorrente do vazio legislativo incriminatório gerado pelo artigo 12º citado, nomeadamente por suposta lesão do artigo 59º da CRP, pois que tal escapa aos poderes dos tribunais judiciais tanto no que se refere à arguição da questão como no que respeita à conformação da norma omitida mas devida.
Termos em que a decisão recorrida deve ser mantida na parte em que julgou inconstitucional a Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18.03 12, que rectificou o n.º 1, a) do artigo 12º da Lei n.º 7/2009, e deve ser revogada na parte em que julgou inconstitucional o artigo 12º, n.º 3, a) da citada Lei no segmento em que revogou o artigo 671º da Lei nº 35/2004, de 29.07 e considerou este preceito em vigor.”
3. O presente recurso, como resulta do relato que antecede, tem por objecto a apreciação de constitucionalidade de duas “normas”:
- A “Declaração de Rectificação” n.º 21/2009, de 18 de Março, na parte em que rectificou a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro;
- O artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 671.º do Código do Trabalho de 2003.
O relator suscitou a questão do não conhecimento do recurso quanto à primeira destas normas, de acordo com a doutrina do Acórdão n.º 584/09.
Só o Ministério Público se pronunciou expressamente sobre esta questão e no sentido da sua improcedência, acolhendo-se à doutrina das declarações de voto apostas àquele acórdão. Mas também a recorrida, na medida em que acompanha o Ministério Público na pretensão de confirmação do juízo de inconstitucionalidade da Declaração de Rectificação, parece ser do mesmo entendimento quanto ao conhecimento do objecto do recurso.
Como no referido acórdão, embora com dois votos discordantes, se ponderou:
“É indubitável que a decisão recorrida recusa validade à Declaração de Rectificação n.º 21/2009, publicada no Diário da República, I Série, de 18 de Março de 2009, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque “não cumpre o disposto no artigo 5.º, n.º 1 da Lei n.º 74/98, de 11 de Novembro, na versão actualmente em vigor, sendo, por isso, ilegal”. Em seguindo lugar (“ a tanto acresce”), por entender que “esta declaração de rectificação padece, também, de inconstitucionalidade, a saber: porque, a coberto de uma rectificação, se está a alterar a lei, violando, assim, o disposto no artigo 161º, alínea c), da Constituição da República; e porque qualquer rectificação que recupere uma censura contra-ordenacional que não figurava no texto publicado subverte a teleologia do artigo 29º, nº 4, da Constituição da República”.
Verifica-se, pois, que a decisão assenta em fundamentos alternativos, isto é, que a sentença recusou aplicar o conteúdo normativo de que a Declaração de Rectificação pretendeu dotar a alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, com dois fundamentos, um dos quais estranho ao objecto do presente recurso e que, mantendo-se incólume fosse qual fosse o juízo sobre a questão de constitucionalidade, seria suficiente para assegurar o sentido da decisão recorrida.
Ora, o Tribunal tem entendido que, face à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não deve conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte fundamentos alternativos, um dos quais estranho ao objecto do recurso e suficiente para suportar o sentido da decisão. É certo que tais situações surgem, na grande maioria dos casos, em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mas esse é também o entendimento dominante em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (Cfr., entre muitos, Acórdãos n.º 216/07, n.º 257/08, n.º 397/08, n.º 183/09 e n.º 228/09, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) .
A esta luz, mesmo que se considere que, tal como a fundamentação da sentença se desenvolve, o juízo de inconstitucionalidade não constitui um mero obiter dictum, o presente recurso não teria utilidade processual, uma vez que, fosse qual fosse a decisão sobre a questão de constitucionalidade, nunca o tribunal a quo admitiria decidir a causa por aplicação do conteúdo da “Declaração de Rectificação”, uma vez que considera que essa rectificação não se conteve nos limites que a lei consente a tal figura.
Aliás, no caso, a questão de constitucionalidade – ao menos na construção adoptada na sentença – só se coloca porque a questão da legalidade se resolveu em determinado sentido. Considera-se violado o disposto na alínea c) do artigo 161.º e no n.º 4 do artigo 29.º da Constituição precisamente porque foi recuperado, por essa via, um ilícito contra-ordenacional que deixara de figurar no texto publicado, usando-se ilegalmente o mecanismo da rectificação. O juízo de ilegalidade da rectificação, que autonomamente se formulou, é aqui pressuposto necessário do juízo de inconstitucionalidade a que se chegou quanto à norma rectificada. Afinal, o acto a que não se reconhece aptidão para produzir os efeitos jurídicos a que tende é a declaração de rectificação. A norma rectificada não se considera sequer existir no ordenamento com o conteúdo de que essa declaração a pretendia dotar, uma vez que o acto integrativo ou complementar (a rectificação) não chegou a projectar qualquer efeito no conteúdo da alínea m) do n.º 6 do artigo 12.º da Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, por não respeitar as regras (de direito ordinário) que regiam a sua emissão'.
É entendimento que se mantém, pelo que não se conhecerá do presente recurso no que toca à referida “Declaração de Rectificação”.
4. Cumpre, pois, apreciar a 2ª questão de inconstitucionalidade.
A sentença recorrida foi proferida num processo de impugnação de decisão proferida em processo de contra-ordenação em que a Administração (Autoridade para as Condições do Trabalho), na sequência de uma acção inspectiva desencadeada por ocasião de um acidente de que resultou a morte de um trabalhador, aplicara uma coima à recorrida A., por violação do artigo 273.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), b), d), f) e m), do Código do Trabalho de 2003 e do artigo 16.º, n.º 1, do Decreto Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro.
O tribunal a quo entendeu que a punição da conduta como contra-ordenação que constava do artigo 671.º do Código do Trabalho de 2003 foi revogada pela alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, que aprovou o novo Código do Trabalho. Mas que tal “despenalização” é inconstitucional por violação do dever de protecção do direito dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde, que incumbe ao Estado nos termos das disposições conjugadas da alínea c) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 59.º da Constituição.
Considerou a sentença que, ao impor aos empregadores deveres de adoptar medidas tendentes a prevenir ou minorar o risco de acidentes de trabalho e ao punir as infracções a esses deveres como ilícito de mera ordenação social, o legislador cumpre a injunção constitucional de protecção da segurança e saúde dos trabalhadores. Trata-se de direitos fundamentais dos trabalhadores cuja realização efectiva exige o estabelecimento de deveres a cargo da entidade empregadora e um sistema adequado de controlo e fiscalização por parte dos poderes públicos. Pelo que, ao revogar a sanção contra-ordenacional para o seu incumprimento, o legislador criou, diz a sentença, um “vazio legal” quanto ao nível de protecção anteriormente atingido, nível de protecção esse que já não podia ser anulado ou regredir.
5. Os “direitos dos trabalhadores” consagrados no artigo 59.º da Constituição não têm natureza homogénea. Alguns apresentam a estrutura de “direitos, liberdades e garantias” (p. ex. o direito à retribuição do trabalho; o direito ao repouso, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas). Outros pertencem à categoria dos “direitos económicos, sociais e culturais”. O direito à 'prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde', que é o que agora releva, pertence a esta última categoria (cfr. V. Moreira e G. Canotilho, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, pp. 771). Trata-se de um direito cuja realização prática exige que o Estado estabeleça deveres de organização do local de trabalho e das condições de prestação deste e de observação ou vigilância de certos aspectos da aptidão física e psíquica do trabalhador. Deveres esses que, em primeira linha, incidem sobre o outro sujeito da relação laboral, embora também sejam concebíveis deveres secundários que recaem sobre o próprio trabalhador e colegas de trabalho (cfr. artigo 274.º do Código do Trabalho de 2003).
A cargo do Estado – não considerando aqui as relações de emprego público em que o Estado aparece na veste de sujeito da relação de trabalho e em que a sua vinculação emerge dessa qualidade e do bloco normativo respectivo (cfr n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 35/2004) – da norma constitucional derivam, sobretudo, imposições de legislar e de organização de serviços, em ordem não só a estabelecer o regime instituído com tal objectivo constitucional, mas também a assegurar-lhe efectividade.
Estamos, porém, num domínio onde não basta estabelecer um quadro normativo que imponha deveres conducentes a combater a sinistralidade e a enfermidade laborais, deixando a sua realização prática na dependência da autonomia privada nas relações entre empregadores e trabalhadores, com eventual recurso à via judiciária por parte destes, em caso de incumprimento.
Em primeiro lugar, a desigualdade fáctica na relação laboral, a constatação de que as condições económicas e sociais das partes na relação de trabalho fazem com que esta não seja, na realidade da vida, uma relação paritária e que um dos sujeitos dela, o trabalhador, surja como uma “parte mais fraca” a carecer de medidas de protecção pública. Durante a vida de uma concreta relação laboral, dificilmente cada trabalhador está em condições de pugnar pela defesa individual da sua posição perante eventual incumprimento, por parte da entidade patronal, dos deveres destinados a assegurar a higiene, segurança e saúde no trabalho. Além disso, na generalidade dos casos, trata-se de assegurar a defesa contra situações de perigo para a vida, para a integridade física ou para a saúde dos trabalhadores perante factores de risco cujos efeitos não se produzem imediatamente, ou não são imediatamente perceptíveis, pelo que tem aqui de funcionar um princípio de prevenção ou pro-actividade que só uma defesa colectiva (sindical ou por organizações laborais no seio da empresa) ou comunitária (pública) pode eficazmente assegurar.
Deste modo, bem se compreende que o cumprimento dos deveres postos por lei a cargo das entidades patronais em ordem à promoção da segurança, higiene e saúde no trabalho seja tradicionalmente sujeito a fiscalização por parte de entidades públicas (v.gr. organismos de inspecção do trabalho) e que o incumprimento de tais deveres dos empregadores (ou de representantes seus e, porventura, dos próprios trabalhadores) seja objecto de sanção repressiva de promoção pública. Isto é, que o incumprimento de tais deveres não acarrete, ou não acarrete somente, mera ilicitude contratual, mas constitua ilícito de mera ordenação social e, em situações de maior gravidade, até ilícito penal.
6. A norma constitucional [artigo 59.º, n.º 1, alínea c), da CRP] protege o trabalhador em três aspectos: segurança, higiene e saúde no trabalho. No caso, a infracção respeita a deveres destinados a assegurar a segurança no trabalho. A sentença (e antes dela a Administração) considerou violados os deveres estabelecidos pelo artigo 273.º n.ºs 1 e 2, alíneas a), b), d), f) e m), do Código do Trabalho de 2003, que dispunham como segue:
“Artigo 273.º
Obrigações gerais do Empregador
1 – O empregador é obrigado a assegurar aos trabalhadores condições de segurança higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o empregador deve aplicar as medidas necessárias, tendo em conta os seguintes princípios de prevenção:
a) Proceder, na concepção das instalações, dos locais e processos de trabalho, à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando-os ou limitando os seus efeitos, por forma a garantir um nível eficaz de protecção;
b) Integrar no conjunto das actividades da empresa, estabelecimento ou serviço e a todos os níveis a avaliação dos riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores, com a adopção de convenientes medidas de prevenção;
(…)
d) Planificar a prevenção na empresa, estabelecimento ou serviço num sistema coerente que tenha em conta a componente técnica, a organização do trabalho, as relações sociais e os factores materiais inerentes ao trabalho;
(…)
f) Dar prioridade à protecção colectiva em relação às medidas de protecção individual;
(…)
m) Substituir o que é perigoso pelo que é isento de perigo ou menos perigoso;
(…).”
A violação destes deveres constituía contra-ordenação muito grave, nos termos do artigo 671.º do mesmo Código que dispunha:
“Artigo 671.º
Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho
1- Constitui contra-ordenação muito grave a violação do disposto no artigo 273.º, na alínea b) do n.º 1 do artigo 274.º e nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 275.º.
2 – Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no artigo 278.º.
3 – Constitui contra-ordenação leve a violação do disposto nos nºs 5, 6, 7, 8 e 9 do artigo 275.º.”
Esta qualificação como contra-ordenação foi “acidentalmente” revogada, deixando a infracção aos deveres gerais de prevenção em matéria de segurança no trabalho sem sanção repressiva. Considera a sentença recorrida que, nesta medida, o legislador – porventura contra o seu próprio plano, mas de modo que é insuperável por via interpretativa ou integrativa – criou uma situação de deficit de protecção constitucionalmente intolerável, porque significa que o sistema regrediu relativamente ao grau de protecção da segurança no trabalho anteriormente vigente.
Deve começar por notar-se que a norma em causa não tem por efeito diminuir o âmbito ou o conteúdo dos deveres do empregador no que concerne à promoção e protecção das condições de segurança no trabalho. E também não afecta os direitos de cada trabalhador vítima de acidente de trabalho ou doença profissional em que a infracção a esses deveres possa ter relevância causal. O que dela resulta é somente o enfraquecimento do nível prático de efectividade das normas preventivas de riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores, por virtude da supressão da garantia sancionatória ou repressiva que era cominada para a respectiva violação.
Assim, a questão que o tribunal tem para resolver neste recurso consiste em saber se, relativamente à violação de normas consagradoras dos direitos dos trabalhadores a que, num momento anterior, tenha sido conferida tutela através da sanção contra-ordenacional, o legislador pode “despenalizar” a conduta infractora, deixando de prevê-la como ilícito de mera ordenação social. Há aqui, face à natureza da norma (revogatória), dois problemas conexos: o da proibição da deficiência de protecção e o da proibição do retrocesso (obviamente, se o ordenamento infra-constitucional não consagrasse anteriormente a sanção contra-ordenacional, ainda que se considerasse insuficiente, na perspectiva dos direitos constitucionais dos trabalhadores, um regime que não assegurasse tutela dessa natureza, a questão apenas relevaria da inconstitucionalidade por omissão, não sindicável por esta via).
7. Acerca do princípio da “proibição do retrocesso” afirmou-se no Acórdão n.º 509/02, in Diário da República, I Série-A, de 12 de Fevereiro de 2003 (embora tendo por horizonte normas consagradoras de direitos que se analisam em prestações materiais), o seguinte:
“9 Embora com importantes e significativos matizes, pode-se afirmar que a generalidade da doutrina converge na necessidade de harmonizar a estabilidade da concretização legislativa já alcançada no domínio dos direitos sociais com a liberdade de conformação do legislador. E essa harmonização implica que se distingam as situações.
Aí, por exemplo, onde a Constituição contenha uma ordem de legislar, suficientemente precisa e concreta, de tal sorte que seja possível «determinar, com segurança, quais as medidas jurídicas necessárias para lhe conferir exequibilidade» (cfr. Acórdão nº 474/02, ainda inédito), a margem de liberdade do legislador para retroceder no grau de protecção já atingido é necessariamente mínima, já que só o poderá fazer na estrita medida em que a alteração legislativa pretendida não venha a consequenciar uma inconstitucionalidade por omissão – e terá sido essa a situação que se entendeu verdadeiramente ocorrer no caso tratado no já referido Acórdão nº 39/84.
Noutras circunstâncias, porém, a proibição do retrocesso social apenas pode funcionar em casos-limite, uma vez que, desde logo, o princípio da alternância democrática, sob pena de se lhe reconhecer uma subsistência meramente formal, inculca a revisibilidade das opções político-legislativas, ainda quando estas assumam o carácter de opções legislativas fundamentais.
Este Tribunal já teve, aliás, ocasião de se mostrar particularmente restritivo nesta matéria, pois que no Acórdão nº 101/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21º vol., págs. 389-390), parece ter considerado que só ocorreria retrocesso social constitucionalmente proibido quando fossem diminuídos ou afectados «direitos adquiridos», e isto «em termos de se gerar violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural», tendo em conta uma prévia subjectivação desses mesmos direitos. Ora, no caso vertente, é inteiramente de excluir que se possa lobrigar uma alteração redutora do direito violadora do princípio da protecção da confiança, no sentido apontado por aquele aresto, porquanto o artigo 39º do diploma em apreço procede a uma expressa ressalva dos direitos adquiridos.
Todavia, ainda que se não adopte posição tão restritiva, a proibição do retrocesso social operará tão-só quando, como refere J. J. Gomes Canotilho, se pretenda atingir «o núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana», ou seja, quando «sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios», se pretenda proceder a uma «anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial». Ou, ainda, tal como sustenta José Carlos Vieira de Andrade, quando a alteração redutora do conteúdo do direito social se faça com violação do princípio da igualdade ou do princípio da protecção da confiança; ou, então, quando se atinja o conteúdo de um direito social cujos contornos se hajam iniludivelmente enraizado ou sedimentado no seio da sociedade. ”
Este entendimento foi posteriormente reafirmado, designadamente nos Acórdãos n.ºs 590/04 e 188/09, in Diário da República, II Série, de 3 de Dezembro de 2004, e 18 de Maio de 2009, respectivamente. O que daqui pode retirar-se é que a ideia de proibição de retrocesso só releva numa hipótese como a presente, em que não estão directamente em causa as normas através das quais o legislador consagra ou desenvolve os direitos constitucionais dos trabalhadores, mas normas instrumentais ou de garantia dos direitos que essas concretizam, se puder concluir-se que a alteração legislativa (a supressão da sanção) “consequencia uma inconstitucionalidade por omissão”. Com efeito, como se aceitou no Acórdão n.º 47/06, transcrevendo Jorge Pereira da Silva
“De facto, não há grandes dúvidas de que a revogação integral de uma lei constitucionalmente devida acarreta a inconstitucionalidade por acção da própria lei revogatória. É certo que esta lei só enferma de tal desvalor na medida em que, fazendo renascer uma situação de incumprimento de um dever específico de actuação legislativa, está na origem de uma inconstitucionalidade por omissão. Por outras palavras, embora tenha sido a lei revogatória a desencadear uma situação de vazio normativo constitucionalmente inadmissível, do ponto de vista dos valores jurídicos negativos tudo se passa em sentido inverso, assumindo a inconstitucionalidade da lei revogatória (inconstitucionalidade por acção) natureza consequente em relação à referida situação de vazio normativo (inconstitucionalidade por omissão). No entanto, é igualmente verdade que, na situação em análise, o legislador não está apenas a ‘não fazer algo’ imposto pela Constituição, como é próprio das omissões legislativas. O legislador está antes a ‘desfazer’ e, mais precisamente, está a ‘desfazer algo’ que era e é prescrito pela Constituição. Por isso, a lei revogatória, que consubstancia o acto de desfazer, não é fiscalizável (enquanto geradora de uma inconstitucionalidade) por omissão, mas sim por via de acção” (Dever de legislar e protecção jurisdicional contra omissões legislativas, Lisboa, Universidade Católica, 2003, pp. 245 e ss., especialmente pp. 282 e ss. e 286).
8. Recorde-se que o incumprimento ou cumprimento defeituoso pelo empregador de normas protectivas dos trabalhadores que fica sem tutela repressiva respeita a deveres atinentes à organização das instalações, dos locais e dos processos de trabalho e de adopção de medidas preventivas que diminuam os riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores, em ordem a assegurar que a prestação de trabalho possa decorrer em condições de “segurança e saúde”. Logo na fixação da disciplina jurídica dessas condições materiais da prestação de trabalho impostas ao empregador, goza o legislador ordinário de uma ampla margem de discricionariedade. O cumprimento desse dever de normação está sujeito a uma medida “mínima”, sendo violada a “proibição de insuficiência” (Untermassverbot) quando as normas de protecção ficarem aquém do constitucionalmente exigível. Efectivamente, “o Estado deve adoptar medidas suficientes, de natureza normativa ou de natureza material, conducente a uma defesa eficaz dos direitos fundamentais. A verificação de uma “insuficiência de juridicidade estatal” deverá atender à natureza das posições jurídicas ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, edição, pp. 273).
Como o Tribunal tem salientado (cfr., por exemplo., Acórdão n.º 75/10) do ponto de vista da liberdade de actuação estadual e, em particular, de conformação legislativa, é grande a diferença estrutural entre os deveres negativos, de abstenção, e os positivos, de activa intervenção tuteladora. No domínio dos primeiros, assente que uma certa e determinada medida é ofensiva de um direito fundamental, o dever de a omitir impõe-se, prima facie. Isto porque a proibição de aniquilar ou afectar esse direito abrange toda e qualquer ingerência com tal virtualidade, incluindo, portanto, aquela específica medida que está em apreciação. Inversamente, o dever de protecção não importa a automática ordenação de “todas” as iniciativas a que seja de imputar esse resultado. E isto porque, enquanto que a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse sentido. Somente se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se torna necessária para o cumprimento do dever de protecção.
9. É certo que o direito consagrado na alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição postula uma actuação do Estado, não só no sentido de editar normas relativas à higiene, segurança e protecção da saúde dos trabalhadores, mas também de tomar efectivas medidas de controlo da sua aplicação e de repressão da respectiva violação. Sem fiscalização pública a imposição de deveres neste domínio ficaria em larga medida “letra morta”. E, se não puder desencadear procedimentos sancionatórios, a actuação das entidades fiscalizadoras será, em larga medida, ineficaz. E também pode assentir-se em que o direito de mera ordenação social é, no nosso ordenamento, o meio de eleição para assegurar a tutela repressiva da generalidade das infracções a comandos deste tipo, em que está em causa o desrespeito por normas ordenadoras da actividade económica e da organização do trabalho, impondo condutas ao empregador, em ordem à prevenção do perigo, geralmente sem ressonância ética.
Assim, pode concluir-se que a protecção do direito à saúde, higiene e segurança dos trabalhadores exige, além da normação que imponha obrigações aos empregadores
a isso conducentes, o estabelecimento de adequados processos de fiscalização de infracções a cargo de entidades públicas e medidas sancionatórias adequadas e suficientes, designadamente a imediatividade repressiva que é assegurada pelas sanções contra-ordenacionais.
Porém, quando não se trate de conteúdos de protecção constitucionalmente necessários (por directamente impostos ou por ser manifesto que só uma única medida é concebível como eficiente), só pode falar-se de “deficit” de protecção censurável pelo juiz constitucional perante a patente ou indiscutível insuficiência das medidas normativas adoptadas. Ora, o elenco de medidas de protecção concebíveis é muito variável, como variados e multímodos são os riscos para a segurança e saúde dos trabalhadores. Por outro lado, é ao legislador democraticamente legitimado que compete não só a prognose sobre o resultado das diversas medidas possíveis, mas também avaliar, ponderar e escolher em função do balanço entre o benefício esperado para os valores em causa e os custos económicos envolvidos. Portanto, logo no primeiro patamar, o das normas materiais de desenvolvimento ou concretização do direito fundamental à segurança no trabalho, falha a base para que possa formular-se um juízo de inconstitucionalidade sobre a não previsão de sanção contra-ordenacional para as infracções aos deveres em causa.
10. Mesmo que assim se não entenda, designadamente por se considerar que as normas do n.º 2 do artigo 273.º do Código do Trabalho são o modo que o legislador entendeu adequado a cumprir o dever de prestação normativa primária que decorre da alínea c) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, com isso ficando assegurado e sincronicamente esgotado o correspondente espaço de discricionariedade, e que o que está em causa é o dever de “levar a sério” os direitos fundamentais assim concretizados, resta saber se a falta de imposição de um regime sancionatório para o seu desrespeito deixa flagrantemente inerme o conteúdo de protecção abstractamente concedido.
Ora, não pode afirmar-se em absoluto que a falta de sanção prive de efectividade as normas infraconstitucionais concretizadoras do direito fundamental à segurança. Com efeito, independentemente dos meios sancionatórios contra-ordenacionais ou criminais, em matéria de protecção da segurança, higiene e saúde do trabalho o Código de Processo do Trabalho regula um procedimento cautelar específico nos artigos 44.º e seguintes para “protecção, higiene e segurança no trabalho”, que pode ser utilizado pelos trabalhadores individual ou colectivamente. Processo cautelar especificado este que o legislador justificou no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 480/99 nos seguintes termos:
“Ainda no domínio cautelar, e reflectindo as preocupações crescentes do ordenamento jurídico-laboral português e do próprio direito comunitário em matéria de higiene, segurança e saúde no trabalho, e tendo em conta a incidência preocupante de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, com enormes custos humanos e económicos, directos e indirectos, cria-se ex novo, um procedimento especificado dirigido à protecção, daqueles valores, o que se crê poder vir a constituir um importante instrumento de pedagogia individual e social de sensibilização de todos os intervenientes no mundo do trabalho, bem como um meio expedito e idóneo ao dispor dos trabalhadores para salvaguarda da respectiva saúde, quando não da própria vida, tudo sem prejuízo o dever de intervenção nesta matéria de quaisquer entidade competentes.”
E, apesar das estatísticas de justiça e as publicações de jurisprudência não darem notícia de um efectivo uso de tal instrumento (vide. Abílio Neto, Código de Processo do Trabalho Anotado, 4ª edição, Janeiro de 2010, Coimbra Editora) não é manifesto que tais meios comuns de garantia judicial não sejam abstractamente idóneos, sobretudo na vertente colectiva de utilização, para atingir a medida mínima de efectividade na protecção do direito fundamental dos trabalhadores à prestação do trabalho em condições de segurança e saúde.
III. Decisão
Pelo exposto decide-se:
a) Não conhecer do objecto do recurso na parte respeitante à recusa de aplicação da Declaração de Rectificação n.º 21/2009, de 18 de Março;
b) Não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, na parte em que revogou o artigo 671.º do Código do Trabalho de 2003, concedendo nessa medida provimento ao recurso;
c) Determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o agora decidido, quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 2010. – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Maria Lúcia Amaral (vencida quanto à decisão da alínea a) pelas razões expostas no Acórdão n.º 584/09) – Carlos Fernandes Cadilha (vencido quanto à decisão da alínea a) pelas razões constantes da minha declaração de voto no Acórdão n.º 584/09) – Gil Galvão.