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Processo nº 538/2009
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
(Conselheira Maria Lúcia Amaral)
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
A. interpôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa acção administrativa especial, visando a anulação contenciosa do despacho da Directora do Núcleo de Desemprego do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social de Lisboa que indeferira, por ter sido apresentado fora do prazo de 90 dias a que se refere o artigo 61.º do Decreto-Lei nº 119/99, de 14 de Abril, o seu requerimento de atribuição das prestações de desemprego, pedindo ainda que fosse o Instituto de Segurança Social condenado a praticar novo acto, reconhecendo ao autor o direito às prestações de subsídio de desemprego que lhe haviam sido negadas.
A acção foi julgada procedente por sentença de primeira instância que foi confirmada, em recurso, pelo Tribunal Administrativo Central Sul.
Recorreu então o Instituto de Segurança Social para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 2 de Abril de 2009, em seguimento da doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional nº 275/2007, que incidiu sobre a mesma questão, recusou a aplicação do n.° 1 do artigo 61º do Decreto-Lei n.° 119/99, por inconstitucionalidade decorrente da violação do princípio da proporcionalidade conjugado com o artigo 59°, n.° 1, alínea e), da CRP, no segmento em que aquela norma fixa em 90 dias o prazo para o trabalhador, em situação de desemprego involuntário, requerer a atribuição das prestações do subsídio de desemprego, quando interpretado no sentido de que o decurso de tal prazo tem efeito preclusivo sobre todas as prestações ainda não vencidas.
Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, nº 1, alínea a) da Constituição e 70.º, nº 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional, pedindo que o Tribunal aprecie a constitucionalidade do segmento da norma do nº 1 do artigo 61.º do Decreto-Lei nº 119/99, na invocada interpretação normativa.
Admitido o recurso no Tribunal, nele apresentou alegações o Ministério Público, recorrente, que pugnou pelo juízo de inconstitucionalidade, invocando para tanto, essencialmente, as razões constantes do acórdão nº 275/2007.
O recorrido contra-alegou, manifestando a sua total adesão ao teor das alegações apresentadas pelo Ministério Público quanto à questão de constitucionalidade.
Cabe apreciar e decidir.
II Fundamentação
A decisão recorrida julgou inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, a norma do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 119/99, de 14 de Abril, quando interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos, a contar da data do desemprego, para o interessado requerer, à segurança social, a atribuição do subsídio de desemprego, determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante todo o período de desemprego involuntário.
O referido diploma, entretanto substituído pelo Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, estabelecia, no âmbito do subsistema previdencial, o quadro legal da reparação da eventualidade de desemprego dos trabalhadores por conta de outrem, prevendo a atribuição aos beneficiários de prestações de desemprego (artigos 1º e 5º).
A gestão das prestações de desemprego competia, em geral, ao Instituto da Segurança Social, I.P., através dos centros regionais de segurança social (artigo 55º), determinando o artigo 61º, n.º 1, em matéria de organização de processos, o seguinte:
1- A atribuição das prestações de desemprego depende da apresentação do requerimento à instituição de segurança social que abrange o trabalhador ou àquela em cujo âmbito de competência territorial se situa a sua residência, no prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego.
A referida norma, na parte em que prevê a atribuição das prestações de desemprego, pretende dar concretização prática ao disposto no artigo 59º, n.º 1, alínea e), da Constituição, que confere a todos os trabalhadores o direito «à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego», norma que deve ser lida em articulação com o artigo 63º e, designadamente, o seu n.º 3, que estabelece que o «sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho».
O direito à assistência material nas situações de desemprego involuntário constitui, assim, um direito social fundamental dos trabalhadores, com amplo âmbito de aplicação, e que se traduz, como tal, num direito prestacional, de natureza positiva, ainda que a sua plena implementação dependa da liberdade conformativa do legislador e das disponibilidades financeiras e materiais do Estado (Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, vol. I, Coimbra, 2007, pág. 774; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, págs. 609-610).
Tratando-se ainda assim de uma específica e concreta imposição constitucional, poderá considerar-se verificada a inconstitucionalidade por omissão, tal como se decidiu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 474/2002, quando o legislador tenha deixado de adoptar as medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto nessa disposição, mesmo que o direito em causa seja um direito social e não deva ser tido como análogo aos direitos, liberdades e garantias.
Seja como for, como se explicitou ainda no acórdão n.º 275/2007, que se pronunciou sobre a mesma questão de constitucionalidade agora em análise – e que o tribunal recorrido também invocou -, a inegável fundamentalidade do direito dos trabalhadores à assistência material em situação de desemprego involuntário implica – sem questionar a liberdade de conformação do legislador na concretização material desse direito – que a regulação do correspondente procedimento administrativo fique subordinada ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que as exigências procedimentais devem ser necessárias e adequadas e de que as consequências do seu incumprimento devem ser razoáveis.
A este propósito, esse mesmo aresto formulou as seguintes considerações:
2.2. O Decreto-Lei n.º 119/99, editado em desenvolvimento do regime jurídico estabelecido na Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, após regular substantivamente as medidas de reparação do desemprego, designadamente de natureza prestacional e respectivas condições de atribuição, montantes e duração, insere, no plano procedimental ou adjectivo, regras relativas ao processamento e gestão de tais prestações, resultando do artigo 61.º, n.º 1, na interpretação desaplicada pela decisão recorrida, a fixação de um prazo de caducidade da totalidade das prestações que integram o subsídio de desemprego se o interessado não requerer a sua atribuição nos “90 dias consecutivos a contar da data do desemprego”.
O subsequente artigo 63.º prevê diversas situações de suspensão deste prazo, entre elas a de incapacidade por doença (alínea a) do n.º 1), mas, quanto a esta causa de suspensão, o n.º 3 do preceito exige que, quando a incapacidade se prolongue por mais de 30 dias, seguidos ou interpolados, só determina a suspensão “se confirmada pelo sistema de verificação de incapacidades, após comunicação do facto pelo interessado”. No presente caso, embora a requerente tenha invocado uma situação de doença, susceptível de funcionar como “justo impedimento” da tempestiva formulação do requerimento, apresentando atestado médico (cf. fls. 14 do processo administrativo anexo), não cumpriu o ónus de provocar a “confirmação” de tal incapacidade pelo “sistema de verificação” instituído e, por isso, não foi considerada qualquer suspensão do aludido prazo de 90 dias.
Como resulta da decisão recorrida, não se questiona a constitucionalidade da exigência de formulação pelo próprio interessado de pedido de concessão de subsídio de desemprego, nem sequer do estabelecimento de um prazo para tal formulação.
O que está em causa – como se salienta nas alegações do Ministério Público, convocando o princípio da proporcionalidade – não é, porém, o estabelecimento de tal prazo, ou mesmo a sua normal suficiência para a dedução do pedido pelo trabalhador em situação de desemprego involuntário, mas antes a razoabilidade das consequências associadas ao incumprimento desse prazo. É que importa distinguir o direito global ou complexo às prestações emergentes da verificação de uma situação de desemprego relevante, podendo o período de concessão do subsídio de desemprego alcançar, nos termos do artigo 31.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 119/99, 30 meses (ainda susceptíveis dos acréscimos previstos no subsequente n.º 3) para os beneficiários com idade igual ou superior a 45 anos de idade (como era o caso da requerente, nascida em 14 de Setembro de 1948 – cf. fls. 1 do processo administrativo anexo); e o direito a cada uma das prestações parcelares que sucessivamente se vão vencendo, a partir da data do requerimento.
Nem a decisão recorrida nem o recorrente questionam que o retardamento injustificado na apresentação do requerimento pelo interessado – iniciando ou impulsionando o procedimento de verificação pela Segurança Social dos pressupostos ou condições da atribuição das prestações – possa fazer caducar ou precludir as prestações parcelares que entretanto se poderiam ter vencido. O que se reputa inconstitucional, por desproporcionado, é o entendimento segundo o qual qualquer atraso no cumprimento do referido prazo peremptório de 90 dias dita a irremediável caducidade do direito global a todas as prestações.
Como refere o recorrente, não se vê que as razões de segurança jurídica, subjacentes ao estabelecimento de prazos de caducidade, sejam suficientes para – com base em qualquer “mora” do trabalhador desempregado – o privar, na totalidade, da percepção de todas as prestações pecuniárias substitutivas das remunerações salariais perdidas durante o período em que lhe deveriam ser concedidas, perdurando a situação de desemprego involuntário: a circunstância de a autora ter formulado a sua pretensão perante a Segurança Social apenas em 19 de Novembro de 2002 (quando o deveria ter feito até 9 de Agosto de 2002) não é susceptível de dificultar, de modo relevante, a actividade procedimental cometida à Segurança Social no âmbito do procedimento em causa, destinada essencialmente a ajuizar da existência dos pressupostos e condições do direito às prestações de desemprego e calcular a respectiva duração e montante – sendo certo que tal “mora” dos trabalhadores sempre ditará a preclusão ou caducidade das prestações parcelares que se teriam vencido até à referida data de apresentação do requerimento.
A estas considerações – que se sufragam – apenas se aditará que, tendo o subsídio de desemprego uma função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado e sendo a situação de desemprego, geradora do direito àquele subsídio, por natureza uma situação permanente e não instantânea, que se prolonga e renova no tempo, é de todo desrazoável fulminar com a perda definitiva e irreversível do direito ao subsídio de desemprego, por todo o tempo (futuro) em que o trabalhador a ele teria direito (que se pode prolongar por anos), por qualquer atraso na formulação inicial do pedido. A situação de desemprego involuntário, em que se funda o direito ao subsídio de desemprego, persistia no momento em que o pedido da sua concessão foi formulado e ter-se-á prolongado para além dessa data. Negar este direito, embora limitado ao período temporal em que se pode considerar ter sido tempestivamente exercitado, significa, em termos substanciais, uma negação, sem motivo adequado, do próprio direito dos trabalhadores, constitucionalmente garantido, à assistência material em situação de desemprego involuntário.
Toda esta argumentação foi igualmente adoptada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 49/2010, que se reportava à actual disposição do artigo 72.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 220/2006, de 3 de Novembro, que reproduziu praticamente a do citado artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 119/99.
Em conformidade com essa jurisprudência - que é de manter – é de julgar inconstitucional a norma do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 119/99, por violação do princípio da proporcionalidade conjugado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego para o interessado requerer à segurança social a atribuição do subsídio de desemprego determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante o período de desemprego involuntário.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 29 de Junho de 2010
Carlos Fernandes Cadilha
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração em anexo)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Vencida quanto à decisão.
Entendeu o Tribunal que era de seguir neste caso a jurisprudência fixada no Acórdão n.º 275/2007. Na verdade, os motivos pelos quais se veio a julgar a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 61.º do Decreto-lei n.º 119/99 são basicamente os mesmos constantes do Acórdão atrás referido, que considerou que a norma em juízo, quando interpretada no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos, a contar da data de constituição de situação de desemprego involuntário, determina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito o trabalhador durante todo esse período, lesa o princípio da proporcionalidade. Não acompanho tal juízo.
2. Ao contrário do que sucedeu no tribunal a quo, o Tribunal Constitucional não partiu nunca (nem em 2007 nem agora) do princípio segundo o qual se deveria reconhecer ao direito à assistência material do trabalhador que se encontre em situação de desemprego involuntário natureza análoga à de um direito, liberdade e garantia. Bem pelo contrário. É clara, no Acórdão, a afirmação segundo a qual tal posição jurídica subjectiva, sistematicamente integrada na estrutura complexa do direito ao trabalho a que se refere o artigo 58.º da Constituição, se traduz num “direito prestacional”, cuja “implementação depend[e] da liberdade conformativa do legislador e das disponibilidades financeiras e materiais do Estado”. No entanto, e não obstante tal ponto de partida, conclui ainda assim o Colégio que a norma, meramente procedimental, que fixa um prazo preclusivo de 90 dias – a contar da constituição da situação de desemprego involuntário – para requerer, à entidade competente, a referida assistência, é inconstitucional, por violação conjugada do princípio da proporcionalidade e do disposto no artigo 59.º da CRP. Fê-lo por entender que contrariava o princípio da proibição do excesso a disposição legal que previa que o incumprimento de tal prazo, por parte do trabalhador desempregado, determinasse a preclusão do direito global a todas as prestações a que o mesmo teria direito durante todo o período de desemprego involuntário.
Quer isto dizer, basicamente, o seguinte. Por um lado, reconhece-se que o núcleo essencial da posição jusfundamental em causa (o direito do trabalhador à assistência material em caso de desemprego involuntário) depende, na sua implementação, das disponibilidades financeiras e materiais do Estado cuja afectação pressupõe escolhas livres do legislador; mas, se assim é, já por outro lado se entende que, nas zonas periféricas que rodeiam o núcleo essencial do direito – como o são aquelas que dizem respeito à regulação de procedimentos administrativos tendentes a concretizar o exercício do mesmo, nomeadamente quanto à fixação de prazos para a entrega de requerimentos à entidade competente – se mostra de tal ordem vinculada à Constituição a posição do legislador ordinário que nem sequer lhe é permitido fixar, para tais efeitos, um prazo preclusivo de 90 dias.
3. Não vejo como é que, aqui, pode a norma procedimental ser totalmente desligada do fim a que se destina, de modo a ser objecto de uma vinculação constitucional superlativa, inexistente quanto ao próprio direito a cujo exercício o referido procedimento permite aceder. Creio que por detrás da aparente incongruência se encontra, afinal de contas, uma leitura do direito consagrado na alínea e) do nº 1 do artigo 59.º da CRP que desmente a qualificação de que se parte, e segundo a qual seria tal direito um “direito prestacional, cuja implementação depende das disponibilidades financeiras e materiais do Estado” e cuja conformação pertence à “liberdade de conformação do legislador.” Pelo menos, não me parece que possam ser associadas as duas fases da fundamentação (o ponto de partida inicial, e a conclusão a que se chega), a menos que se considere que o tal “direito prestacional” tem, não obstante a sua natureza, um conteúdo fixo e determinado a nível constitucional, e que se traduz em: (i) ser constitucionalmente obrigado o Estado a fornecer assistência material ao trabalhador enquanto durar toda a situação de desemprego involuntário; (ii) deter, correspectivamente, o trabalhador um direito a perceber, não só a globalidade das prestações relativas a todo esse tempo, mas, mais do que isso, o direito a perceber cada uma delas, fraccionadamente tomadas.
Não creio, porém, que semelhante leitura da norma constitucional possa ser compatível com a natureza do direito que ela consagra.
Maria Lúcia Amaral