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Processo n.º 928/2009
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão de 16 de Março de 2009 do Tribunal da Relação de Guimarães que, além do mais, julgou improcedente a arguição de nulidade que suscitou por lhe ter sido nomeada como defensora para o debate instrutório uma advogada a quem anteriormente fora concedida escusa do patrocínio.
Na sequência do convite do relator para que indicasse, de modo preciso, qual a norma cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada e em que peça processual suscitou essa questão, o recorrente esclareceu que, na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães (conclusões XXII, XXIII e XCVI) e na resposta ao parecer do Ministério Público no mesmo recurso (artigo 3.º), suscitou a inconstitucionalidade do artigo 64.º, n.º 1, alínea b), e do artigo 119.º, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de não constituir nulidade a assistência ao arguido efectuada no debate instrutório por defensor a quem anteriormente foi concedida dispensa de patrocínio, por violação do artigo 32.º da Constituição.
Prosseguindo o recurso, o recorrente alegou e conclui no sentido de deverem ser julgadas inconstitucionais, por violação das garantias de defesa consagradas do artigo 32.º da Constituição da República, as normas do artigo 64.º, n.º 1, alínea b), e do artigo 119.º, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de não constituir nulidade a assistência ao arguido efectuada no debate instrutório por defensor a quem anteriormente foi concedida dispensa de patrocínio.
O Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, sustentando não ter o recorrente suscitado adequadamente, durante o processo, a questão de constitucionalidade normativa que quer ver apreciada e, quanto ao fundo, pugnando pela improcedência do recurso.
O recorrente respondeu a esta questão nos seguintes termos:
«1. Efectivamente, apenas por lapso de escrita, que requer lhe seja relevado, consta dos recursos interpostos pelo Recorrente a referência à alínea a) do art. 119.º do Código de Processo Penal e não à alínea c) desse mesmo preceito legal.
Por seu lado,
2. Resulta das Doutas Alegações do Ministério Público que o Venerando Tribunal da Relação não terá tido a «oportunidade de se ver confrontado, e de apreciar, tal questão de “constitucionalidade normativa”, de forma a sobre ela se pronunciar».
3. Sempre com respeito por distinta opinião, considera o Arguido/Recorrente que o Venerando Tribunal da Relação apreciou a questão suscitada, entendendo, porém, que a mesma constituía somente uma irregularidade.»
3. O acórdão recorrido é, na parte que directamente interessa ao presente recurso, do seguinte teor:
“1. Da nulidade do debate instrutório por ter sido nomeada defensora ao arguido a qual anteriormente havia solicitado escusa.
Na perspectiva do recorrente/arguido a assistência da Dra. Carla Malheiro no Debate Instrutório, na qualidade de Defensora do arguido, não pode deixar de equivaler à ausência de Defensor, urna vez que tal advogada pediu, e viu ser-lhe deferida, dispensa de patrocínio, invocando como fundamento que não estava «em condições de exercer o patrocínio para que se encontrava nomeada, de forma imparcial, séria e isenta de sentimentos, designadamente, de revolta e intransigência com relação a tais condutas»
A seu ver, “não se considerando imparcial para todo um patrocínio, não poderia (deveria) ter sido nomeada para qualquer acto desse patrocínio. Quem não é imparcial para o todo, não pode ser imparcial para uma parte desse todo. Certamente, haveria na Comarca de Caminha outros advogados disponíveis para assistir o arguido no debate instrutório”.
Pois bem e o que desde já se dirá é que neste ponto não assiste manifestamente razão ao recorrente.
Com efeito nos termos do artº 118º, nºs 1 e 2 do CPP, a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Ou sei a, neste preceito consagra-se o princípio da legalidade no domínio das nulidades dos actos processuais. Assim para que algum acto processual relativamente ao qual tenha havido violação ou inobservância das disposições legais do processo penal, padeça do vício da nulidade é necessário que a lei processual penal o diga expressamente, sendo que, se não existir tal cominação, o acto viciado sofrerá apenas do vício da irregularidade – cfr. n.º 2 do artº 118º – submetido ao regime do artº 123º do CPP.
Ora no caso dos autos o que sucede é que a defensora que pediu escusa apenas foi nomeada para o debate instrutório e como bem observa a magistrada do MºPº na lª instância, o arguido, estava presente, e não se opôs a essa nomeação. Estando presente uma defensora, ainda que nas condições descritas, tal não equivale à ausência de defensor.
Em conclusão não ocorre a invocada nulidade. Mas mesmo que se admita estarmos em presença de uma situação de irregularidade sempre se dirá que a mesma se encontra sanada por não ter sido suscitada atempadamente (artº 123º do CPP).
Improcede, pois o recurso nesta parte.”
II – Fundamentação
4. O presente recurso tem por objecto a norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea b), e do artigo 119.º, alínea c), ambos do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de não constituir nulidade a assistência ao arguido efectuada no debate instrutório por defensor a quem anteriormente foi concedida dispensa de patrocínio.
Nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, é obrigatória a assistência do defensor no debate instrutório e na audiência, salvo tratando-se de processo que não possa dar lugar à aplicação de pena de prisão ou de medida de segurança de internamento. Por sua vez o artigo 119.º, alínea c), do mesmo Código comina como nulidade insanável, a qual deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência.
No caso dos autos o mandatário constituído pelo arguido não compareceu ao debate instrutório, e foi substituído nos termos do artigo 67.º do Código de Processo Penal. Sucede que a substituição veio a recair em advogado que, tendo em momento anterior sido nomeado defensor ao arguido, havia sido dispensado do exercício do patrocínio por ter sido deferido o pedido de escusa que apresentara.
Para o recorrente esta nomeação equivale à ausência de defensor, uma vez que a escusa fora fundamentada na afirmação da defensora de que não estava «em condições de exercer o patrocínio para que se encontrava nomeada, de forma imparcial, séria e isenta de sentimentos, designadamente, de revolta e intransigência com relação a tais condutas» [abuso sexual de menor dependente].
A decisão recorrida, salientando que a lei consagra, no artigo 118.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, o “princípio da legalidade” no domínio das nulidades dos actos processuais, ao prescrever que a violação ou inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, e que quando não existir tal cominação, o acto viciado sofrerá apenas de vício de irregularidade (cfr. 118.º, n.º 2) submetido ao regime do artigo 123.º do mesmo Código, concluiu que a nomeação para o debate instrutório, sem oposição do arguido que se encontrava presente, da defensora que havia pedido escusa, e que igualmente ali estava, não era equivalente à ausência de defensor, não ocorrendo a nulidade invocada, e que a eventual irregularidade dessa nomeação estaria sanada, por não ter sido atempadamente suscitada. Ou seja, para a decisão recorrida a situação em apreço não cabe na previsão da norma do artigo 119.º, alínea c), nem está prevista noutra norma como constituindo nulidade, pelo que, em resultado da aplicação do artigo 118.º, tal situação só pode ser apreciada nos termos do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Poderia questionar-se se a questão colocada em sede de recurso de constitucionalidade incide sobre as normas efectivamente aplicadas pelo tribunal recorrido, posto que esta decisão não julgou aplicável ao caso a norma da alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, tendo decidido a pretensão do recorrente por aplicação das normas dos artigos 118.º e 123.º do mesmo Código, que o recorrente não integra no objecto do recurso. Mas, antes de mais, importa conhecer da questão prévia do não conhecimento do recurso invocada pelo Ministério Público, com o fundamento de que o recorrente não suscitou no processo “uma qualquer questão de constitucionalidade normativa, como a jurisprudência deste Tribunal Constitucional tem exigido, apenas tendo invocado o parâmetro constitucional para aferir da bondade constitucional da decisão, e não para o confrontar com um critério normativo”.
5. A admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende, além do mais, de “durante o processo” o interessado ter suscitado a questão da inconstitucionalidade da(s) norma(s) cuja conformidade constitucional pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, o que exige que o tenha feito “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” ( n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
Na aplicação deste regime, constitui jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional que, em regra, o apontado requisito só pode considerar-se preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Só assim não será quando, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgote com a prolação da decisão, ou naquelas situações, excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não tenha disposto de oportunidade processual para, agindo com normal diligência, suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida.
Refere o recorrente, na resposta ao convite inicial formulado pelo relator para completar o requerimento inicial do recurso (porque na resposta à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, que acima se transcreveu, nada de relevante acrescentou nesta matéria), que a questão de constitucionalidade foi suscitada na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães (conclusões XXII, XXIII e XCVI) e na resposta ao parecer do Ministério Público (artigo 3.º) no mesmo recurso.
As conclusões a que o recorrente se reporta são do seguinte teor:
- «A presença do Defensor no debate instrutório não visa apenas o cumprimento de uma formalidade, ela é também uma exigência material, cuja importância é acentuada no art. 119º do CPP, que, em conjugação com o art. 64º desse mesmo código, comina de insanável a nulidade resultante da falta do defensor no debate instrutório.» (Conclusão XXII);
- «O art. 32º da C.P determina que «o arguido tem direito a escolher defensor». Não podendo comparecer defensor constituído, deveria ter sido concedida ao arguido a possibilidade de indicar outro defensor, ou adiar-se o debate instrutório, ao invés de se nomear precisamente a única Ilustre Advogada que pedira dispensa no processo, como aliás foi feito na audiência de julgamento do dia 20/10/2005. Só assim se cumpre efectivamente o direito do arguido a escolher defensor constitucionalmente consagrado no art. 32º da CRP.» (Conclusão XXIII);
- «Violou o douto acórdão recorrido as normas dos art. 31º, 32º, 70º, 71º, 113º, 115º, 143º, 172º, 173º e 178º, todos do Código Penal, os art. 64º, 119º, 122º, 129º, 130º, 135º, todos do Código de Processo Penal, e o 87º, nº 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados.» (Conclusão XCVI).
Ora, nem nestas conclusões, nem na motivação do recurso onde se integram, pode considerar-se adequadamente colocada pelo recorrente, em termos de obrigar processualmente o tribunal a quo a dela conhecer, a questão de inconstitucionalidade das normas dos artigos 64.º e 119.º que agora pretende ver apreciada no recurso. O que o recorrente aí faz é manifestar o seu entendimento no sentido de que a nomeação da advogada em causa para defensora no debate instrutório constitui nulidade insanável e de que, tendo ele direito a escolher defensor, devia ter sido adiado o debate e não nomear-se-lhe aquela advogada para assisti-lo. Tudo o mais alegado constitui imputação à decisão, em si mesma considerada, dos vícios de violação da lei ordinária e da Constituição.
Acresce que na resposta ao parecer do Ministério Público na Relação, que consta de fls. 1612 a 1615, designadamente no invocado ponto 3, também nada se acrescenta de relevante para efeitos de se considerar suscitada a questão de constitucionalidade. Efectivamente, o recorrente nada mais diz do que aquilo que já havia referido na motivação do recurso. Sustenta que a substituição do defensor no debate instrutório foi feita em violação do artigo 32.º da Constituição e que a situação dos autos é equiparável à de ausência do defensor no debate instrutório, que é cominada como nulidade insanável.
E, foi neste contexto que a Relação apreciou e decidiu a questão da nomeação como defensor para o debate instrutório de advogado que antes pedira escusa, concluindo que a situação em apreço não se integrava na previsão da norma da alínea c) do artigo 119.º (falta de defensor em acto para que a lei exija a respectiva comparência) e que, face ao disposto no artigo 118.º, apenas poderia ocorrer uma irregularidade, subsumível ao regime do artigo 123.º do Código de Processo Penal, encontrando-se sanada. Decidiu-a, portanto, como mera questão de nulidade do debate instrutório e não como questão para cuja decisão tivesse de apreciar um problema de (in)constitucionalidade das normas de direito ordinário por aplicação das quais veio a julgar a arguição de nulidade improcedente.
Em resumo: o recorrente não confrontou o Tribunal da Relação com uma pretensão suficientemente autonomizada de que, no exercício do poder conferido pelo artigo 204.º da Constituição, recusasse aplicação a uma norma ou a um sentido normativo claramente enunciado. Não pode, assim, tomar-se conhecimento do objecto do recurso por falta de suscitação da questão de inconstitucionalidade que se quer deferir ao Tribunal Constitucional, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Procede, pois, a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, ficando prejudicada a apreciação de quaisquer outras.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lx., 25/5/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão