Imprimir acórdão
Processo n.º 23/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que é recorrente Ministério Público e
recorrida A., a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A.,
o primeiro vem interpor recurso, para si obrigatório, ao abrigo do n.º 3 do
artigo 280º da Constituição e da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do
acórdão proferido pela 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, em 21 de
Outubro de 2009 (fls. 675 a 691) que recusou a aplicação da norma constante do
artigo 169º, n.º 1, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
59/2007, de 04 de Setembro, com fundamento em inconstitucionalidade material,
por violação do princípio da proporcionalidade, na vertente da intervenção
mínima do Direito Penal, ínsito no n.º 2 do artigo 18º da CRP.
Cumpre apreciar.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso
já foi apreciada por este Tribunal diversas vezes, sendo sua jurisprudência
constante (assim, ver Acórdãos n.º 144/04, n.º 196/04, n.º 303/04, n.º 170/06,
n.º 396/07, n.º 522/07 e n.º 591/07, todos disponíveis in
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) que a incriminação do lenocínio não
configura uma violação do princípio da subsidiariedade do Direito Penal ou
sequer de qualquer um dos direitos fundamentais elencados pelo ora recorrente
(livre desenvolvimento da personalidade sexual – artigo 26º da CRP –, liberdade
de expressão através da sexualidade – artigo 37º da CRP –, liberdade de
consciência – artigo 41º da CRP – ou ainda a liberdade de escolha de profissão –
artigo 47º da CRP).
Logo na primeira oportunidade em que foi chamado a tomar posição sobre esta
matéria, através do Acórdão n.º 144/04, este Tribunal entendeu o seguinte:
“(…) questão prévia a tal problemática e decisiva no presente caso, é a de saber
se a norma do artigo 170º, nº 1, do Código Penal apenas protege valores que nada
tenham a ver com direitos e bens consagrados constitucionalmente, não
susceptíveis de protecção pelo Direito, segundo a Constituição portuguesa.
Ora, a resposta a esta última questão é negativa, na medida em que subjacente à
norma do artigo 170º, nº 1, está inevitavelmente uma perspectiva fundamentada na
História, na Cultura e nas análises sobre a Sociedade segundo a qual as
situações de prostituição relativamente às quais existe um aproveitamento
económico por terceiros são situações cujo significado é o da exploração da
pessoa prostituída (cf. sobre a prostituição, nas suas várias dimensões, mas
caracterizando-o como “fenómeno social total” e, depreende-se, um fenómeno de
exclusão, José Martins Bravo da Costa, “O crime de lenocínio. Harmonizar o
Direito, compatibilizar a Constituição”, em Revista de Ciência Criminal, ano 12,
nº 3, 2002, p. 211 e ss.; do mesmo autor e Lurdes Barata Alves, Prostituição
2001 – O Masculino e o Feminino de Rua, 2001). Tal perspectiva não resulta de
preconceitos morais mas do reconhecimento de que uma Ordem Jurídica orientada
por valores de Justiça e assente na dignidade da pessoa humana não deve ser
mobilizada para garantir, enquanto expressão de liberdade de acção, situações e
actividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão
(seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como
puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o
artigo 1º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade
da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as
Mulheres (Lei nº 23/80, em D.R., I Série, de 26 de Julho de 1980), bem como, em
1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da
Prostituição de Outrem (D.R., I Série, de 10 de Outubro de 1991).
(…)
Não se concebe, assim, uma mera protecção de sentimentalismos ou de uma ordem
moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada,
intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas
que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspectos de
uma convivência social orientada por deveres de protecção para com pessoas em
estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem,
portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma
perspectiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do
Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de Direito. O
significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da protecção da
liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem.
Não está, consequentemente, em causa qualquer aspecto de liberdade de
consciência que seja tutelado pelo artigo 41º, nº 1, da Constituição, pois a
liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar
das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por
outro lado, nesta perspectiva, é irrelevante que a prostituição não seja
proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num
certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual,
o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder
exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os
contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se
prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de
uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas
para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica
portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados
os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao
suicídio (artigo 135º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de
pornografia infantil [artigo 172º, nº 3, alínea e), do Código Penal], sempre com
fundamento na perspectiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu
consentimento em determinados actos não justifica, sem mais, o comportamento do
que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao
relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não
interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que
derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.
7. Por outro lado, que uma certa “actividade profissional” que tenha por objecto
a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso,
incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liberdade de exercício
de profissão ou de actividade económica tem obviamente, como limites e
enquadramento, valores e direitos directamente associados à protecção da
autonomia e da dignidade de outro ser humano (artigos 471º, nº 1 e 61º, nº 1, da
Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objecto de
trabalho ou de empresa, actividades que possam afectar a vida, a saúde e a
integridade moral dos cidadãos [artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) ou nº 2,
alínea c), da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do
artigo 47º, nº 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta
conclusão a aceitação de perspectivas como a que aflora no pronunciamento do
Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de Novembro de 2001,
Processo nº 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser encarada como
actividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cf., em sentido crítico,
aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni
Costituzionali, anno XXII, nº 2, Giugno 2002, p. 398 e ss.). Com efeito, aí
apenas se considerou que a permissão de actividade das pessoas que se prostituem
nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização
de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer
consequência para a licitude das actividades de favorecimento à prostituição.”
A circunstância de a jurisprudência supra mencionada ter sido proferida a
propósito do (então) artigo 170º, n.º 1, do Código Penal não invalida a sua
aplicação à norma agora extraída do artigo 169º, n.º 1, do Código Penal (na
redacção da Lei n.º 59/2007), na medida em que a interpretação desta última
norma – tal como vertida na decisão alvo de recurso – corresponde, no seu
sentido normativo – à que já resultava da versão anteriormente vigente. A
menção, pela decisão recorrida, da eliminação legislativa da referência aos
“actos sexuais de relevo” não afecta, de modo algum, a identidade daquelas
normas, na medida em que – neste caso concreto – não se curava de saber se a
arguida era responsável por fomentar, favorecer ou facilitar a prática de “actos
sexuais de relevo”, mas antes de actos qualificáveis como “prostituição”.
Em suma, mantém-se a jurisprudência deste Tribunal, no sentido de que a
incriminação do lenocínio, mesmo nos casos em que se verifique plena liberdade
na formação da vontade do/a prostituto/a, não é inconstitucional, por visar
proteger bens jurídicos fundamentais que encontram consagração na Constituição
Portuguesa.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos
expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 169º, n.º 1, do
Código Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro.
b) Ordenar a remessa dos autos ao tribunal recorrido para que seja
reformada a decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento de não
inconstitucionalidade, conforme previsto no n.º 2 do artigo 80º da LTC.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.»
2. Inconformada com a referida decisão, a recorrida veio reclamar, nos seguintes
termos:
«1. Espalda-se a decisão sumária, ora, posta em crise numa pretensa cadência
jurisprudencial sobre o objecto do presente recurso.
2. Fazendo uma navegação à cabotagem do decidido no Aresto n.° 144/04
(do qual se transcreve, o que viria, afinal, a ser o corpo da presente Decisão),
a Exma. Sr.ª Juíza Conselheira Relatora, limitou-se a expor a adesão àquele, sem
no entanto, diz-se com o devido respeito, a fundamentar essa mesma adesão.
E esta tarefa, in casu, impunha-se, não se logrando com a súmula no epílogo a
pp. 4, laconicamente perfunctória e vaga (..“visar proteger bens jurídicos
fundamentais que encontram consagração na Constituição Portuguesa”).
Mas que bens jurídicos fundamentais são estes-
3. E é precisamente este o nó górdio da presente decisão sumária, atado
pela própria Exma. Sr.ª Juíza Conselheira Relatora, sem percepção de tal,
dizemos nós, com elevado respeito. Vejamos:
4. Após a colagem ao Acórdão nº 144/04, a Exma. Sr. Juíza Conselheira
Relatora remata sustentando que “mantém-se a jurisprudência deste Tribunal, no
sentido de que a incriminação do lenocínio, mesmo nos casos em que se verifique
plena liberdade na formação da vontade do/a prostituto/a, não é
inconstitucional.
5. Ora, perscrutando minuciosamente tal Acórdão referência para esta
decisão sumária, surge com a clareza do relâmpago, que não foi esta a orientação
perfilhada.
6. Como não podia deixar de ser, para tal Acórdão, a plena liberdade de
actuação do prostituto não é irrelevante como sucede para a presente decisão
sumária.
7. Na verdade, aflora-se aí a existência do elemento típico implícito do
crime de lenocínio simples e que tange com a exploração económica e social da
vítima prostituta, pois só este elemento lhe confere a legitimidade
constitucional.
8. E muito nos surpreende esta posição dogmática vazada na presente
decisão sumária, que se acha em contra-mão, com a maioria da recente orientação
adoptada pela Jurisprudência especializada dos nossos Tribunais superiores, que
sem pejo e esclarecidamente viram, o que há muito os maiores criminalistas
nacionais (v.g. Figueiredo Dias, Costa Andrade, Mouraz Lopes, Anabela Rodrigues,
Maria João Antunes) já descortinavam.
9. Isto é: Que “o crime de lenocínio é um crime que tem como objecto da
tutela um bem jurídico eminentemente pessoal “a liberdade sexual da pessoa que
se dedica à prostituição ou por outras palavras, a liberdade e autodeterminação
sexual da pessoa” arredados que foram bens jurídicos de natureza supra
individual da comunidade ou do Estado relacionados com concepções de ordem moral
enquanto fundamentadoras da incriminação de condutas.
10. Assim, o que caracteriza este tipo legal de crime e lhe confere
legitimidade constitucional é a normal associação entre as condutas que são
designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social das
pessoas que se dedicam à prostituição, fazendo desta um modo de subsistência e
por isso deve fazer-se uma interpretação restritiva do tipo no sentido de exigir
a prova adicional do elemento típico implícito da “exploração económica e
social” da vítima prostituta” Vide Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
144/2004 e 196/2004”. (Excertos tirados do sumário do Aresto do STJ, 5 Secção,
de 1/04/2009).
11. Do manadeiro fáctico assente no douto Acórdão na 1ª instância,
ressalta, com acuidade, não ter ficado provado qualquer exploração da
necessidade económica e social de quem se prostituía.
12. Ora, e lançando mão do elemento histórico deste tipo legal de crime,
anterior à revisão operada pelo D.L. n.º 48/95 de 15 de Março, constata-se que o
bem jurídico protegido era sem dúvida alguma, a liberdade sexual das pessoas,
por isso, exigindo para o seu preenchimento material que o agente explorasse
situações de abandono ou necessidade económica.
13. Ainda assim, vozes na Doutrina se levantaram, pugnando que essa
exigência não era suficiente para que o comportamento tipificado merecesse a
intervenção do Direito Penal.
14. Anabela Rodrigues, in “Comentário Conimbricense”, pp.519 e ss,
refere:” Com efeito, não se diga que a verificação destas situações, coloca
logo, sem mais, a pessoa sem haver alguma pressão sobre esta, numa situação de
dependência que a priva de poder decidir-se livremente pela via da prostituição
ou da prática de actos sexuais de relevo (...) de vontade deficiente na decisão
não se pode falar logo, só pelo facto de a pessoa estar em situação de abandono
ou de necessidade económica”.
15. E o Prof. Figueiredo Dias defendeu igual posição, referindo tratar-se
de “um problema social e de polícia” não se justificando a intervenção penal,
pois, que aqueles comportamentos se ligavam a situações de “miséria e de
exclusão social”.
16. O fluir histórico veio dar razão àqueles que defendiam a
descriminalização deste tipo de comportamentos, por não estar em causa a defesa
de bens jurídicos fundamentais, nomeadamente o bem jurídico “liberdade sexual
das pessoas”.
17. Na verdade, a alteração do Código Penal levada a efeito pelo D.L. n.º
65/98, de 02 de Setembro, tornou evidente, sem qualquer margem para dúvidas, que
a incriminação do comportamento subjacente ao lenocínio, p.p. no n.°1 do artigo
170º, actualmente, 169°, n.º 1 do CP, prende-se com razões de ordem moral. Ao
eliminar o requisito “explorando situações de abandono ou de necessidade
económica”, o legislador destapou o fraco véu que ainda permitia considerar
estar aqui em causa o bem jurídico “liberdade sexual”.
18. Com a reforma do referido normativo, tornou-se apodíctico que o bem
jurídico ora tutelado é o “sentimento geral de pudor e de moralidade”, sendo por
isso ilegítima a incriminação.
19. Na esteira de Figueiredo Dias e Costa Andrade, in Direito Penal —
Questões Fundamentais, a doutrina geral do crime (Lições ao 3° ano da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra), pp.17 e ss., pode ler-se quanto à função
desempenhada pelo direito penal no nosso ordenamento-jurídico o seguinte:
“radica na protecção das condições indispensáveis da vida comunitária (e neste
sentido, a sua função é em verdade subsidiária, fragmentária e, hoc-sensu.
“acessória”), cumpre-lhe seleccionar, dentre os comportamentos em geral
ilícitos, aqueles que, de uma perspectiva teleológica, representam um ilícito
geral digno de uma sanção de natureza criminal. Exacta tarefa de selecção ou
eleição não pode ser levada a cabo sem uma valoração ético- social do
comportamento...”.
20. E secundando Anabela Rodrigues, in “O sistema punitivo português”,
(SUB JUDICE, Janeiro/Junho, 1996, pp.27 e ss.) “Nega-se por isso, a
possibilidade de o direito penal intervir em nome de uma qualquer moral social,
ao serviço de finalidades transcendentes”.
21. Na verdade, e no que tange ao crime de lenocínio cuja prática é
imputada à recorrida, trata-se de um crime sem vítima. Do que ficou provado em
sede de audiência, não se descortina qualquer lesão ao bem jurídico “liberdade
sexual”.
22. Eram, portanto, as mulheres livres para se auto-determinarem em termos
de comportamento sexual, não podendo a conduta da recorrida, configurar qualquer
tipo de lesão ao bem jurídico protegido.
23. Ora, se não se vislumbra qualquer bem jurídico violado pela conduta da
recorrida, passível de intervenção criminal, repudiamos de forma frontal a
incriminação operada pelo n.º 1 do artigo 169° do CP, baseada em critérios
morais ou de falsos puritanismos. É, assim, ilegítima a criminalização, por não
caber ao direito penal a defesa de quaisquer concepções morais vigentes na
sociedade, muito bem tendo andado o douto Acórdão da Relação de Coimbra que
recusou a aplicação do predito normativo por flagrante inconstitucionalidade.
24. Não é função do direito penal, nem primária, nem secundária, tutelar a
virtude ou a moral. Trate-se da moral estadualmente imposta, da moral dominante,
ou da moral específica de um qualquer grupo social. Para isso, não está, pois, o
direito penal, - como ordem terrena que tem de respeitar a liberdade de
consciência de cada um (vide o próprio artigo 41° da CRP), e só pode valer como
uma “triste” necessidade num mundo de seres imperfeitos que são os homens — de
modo algum legitimado. Nem, por outro lado, os instrumentos de que serve para a
sua actuação — as penas e as medidas de segurança — se revelam adequados para
fazer valer no corpo social as normas da virtude e da moralidade. Nem, ainda por
outro lado, para aplicação de um direito com um tal sentido se encontram
legitimados os magistrados e os tribunais, por isso que instâncias legitimadas
para castigo do pecado e da imoralidade só podem ser, respectivamente a
divindade e a consciência individual.
25. A concepção pluralista do Estado implica, no que ao caso importa, que
a liberdade de consciência (artigo 41° da CRP) consista essencialmente na
liberdade de opção, de convicções e de valores ou seja, a faculdade de escolher
os próprios padrões de valoração ou moral da conduta própria e alheia,
estribando-nos em Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República
Portuguesa Anotada, pp. 242/243.
26. O Carácter pluralista e laico do Estado de Direito contemporâneo,
vincula-o, a que só utilize os seus meios punitivos próprios para tutela de bens
de relevante importância da pessoa e da comunidade e nunca para instauração ou
reforço de ordens axiológicas transcendentes de carácter religioso, moral,
político, social ou cultural.
27. Enfim, o CP visa a protecção de bens jurídicos fundamentais.
28. E na esteira das palavras eloquentes dos insignes Prof. Figueiredo
Dias e Costa Andrade (in ob. Citada), as puras violações morais não conformam a
lesão de um autêntico bem jurídico e não podem, por isso, integrar o conceito
material de crime. A evolução do direito penal sexual constitui exemplo
paradigmático desta asserção: ele deixou de ser um direito tutelar da
“honestidade” dos “costumes”, ou dos “bons costumes” — e onde por isso caberia a
punibilidade de práticas sexuais que, à luz dos sentimentos gerais de moralidade
sexual, devessem ser considerados “desviadas” “anormais”, “viciosas”, ou “contra
a natureza”: numa palavra “imorais (a homossexualidade e a prostituição
incluídas) — para se tornar num direito de um bem jurídico perfeitamente
definido e que reentra, de pleno direito, no capítulo dos crimes contra as
pessoas: o bem jurídico da liberdade e autodeterminação da pessoa na esfera
sexual”.
29. Assim, e à guisa de conclusão a norma do artigo 169°, n. °1 do CP é
inconstitucional, porquanto, como toda a criminalização pressupõe a restrição do
direito à liberdade (consagrado no artigo 27°, n.°1 da CRP), temos que a norma
correspondente ao n.º 1 do artigo em apreço, ao incriminar aquela específica
conduta, sem que se verifique a lesão de qualquer bem jurídico digno de tutela
(seja porque in casu a conduta da recorrente não viola o bem jurídico “liberdade
sexual” das pessoas, seja porque a violação de sentimentos morais, não configura
lesão de um autêntico bem jurídico, está ferida de inconstitucionalidade, por
violação do direito à liberdade (artigo 27°, n. °1 da CRP) e direito à liberdade
de consciência (artigo 41°, n. °1 da CRP), violando de forma idêntica o plasmado
no n.º 2 do artigo 18° da CRP.
30. Os direitos constitucionalmente consagrados nos artigos 27°, n. °1 e
41°, n.°1 decorrem do respeito pela dignidade da pessoa humana, consagrado no
artigo 1° da Lei Fundamental, pelo que também este normativo constitucional se
mostra violado com a incriminação operada pela norma em causa.
31. Porque a tutela de sentimentos gerais de moralidade, é ilegítima face
ao princípio do Estado de Direito democrático com matriz pluralista consagrado
no artigo 2° da CRP, resta concluir ainda, pela violação deste princípio
fundamental.
32. A norma do n.º 1 do artigo 169° do CP, com a redacção que lhe foi dada
pelo DL n.º 65/98, de 02 de Setembro, é inconstitucional por violação do
disposto nos artigos 1°, 2°, 18°,n. °2, 27°, n.°1 e 41°, n.°1 todos da CRP.»
(fls. 734 a 742)
3. Após notificação para efeitos de resposta, o recorrente alegou o seguinte:
«1º
Na decisão recorrida, o acórdão da Relação de Coimbra, recusou-se a aplicação,
com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 169.º, n.º 1, do
Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de
Setembro, onde se prevê e pune o crime de lenocínio.
2º
Como sobre tal questão o Tribunal Constitucional já se pronunciou em diversos
acórdãos, todos no sentido da não inconstitucionalidade, ela foi considerada
simples, tendo sido proferida Decisão Sumária a negar provimento ao recurso.
3.º
Quer a decisão recorrida, quer o arguido, não adiantam quaisquer argumentos que
possam levar a que o Tribunal Constitucional inflicta ou sequer altere o
entendimento que tem vindo a perfilhar
4.º
A questão da constitucionalidade da norma em causa tem a ver, exclusivamente,
com o facto de, com a reforma operada pela Lei n.º 55/98, de 2 de Setembro,
deixar de constar do tipo legal, a exigência de exploração de situação de
abandono ou de necessidade da pessoa que se prostitui.
5.º
Assim, dada a configuração do tipo legal do crime, não foi produzida, nem sequer
tinha que ser apresentada, qualquer prova que se destinasse a apurar se ocorreu
aquela exploração.
6.º
Nestas circunstâncias, não assume qualquer relevância a afirmação constante do
acórdão recorrido de que, “face à matéria de facto, não é clara a eventual
existência de exploração da necessidade económica” (fls. 690).
7.º
Neste campo e ainda no que respeita aos factos, convém, no entanto, dizer que
foi dado como provado que “as mulheres (…) de cuja actividade de prostituição a
arguida retirava proventos eram, em regra, pessoas com dificuldades económicas,
sem recursos financeiros e sem qualificações profissionais” (fls. 681).
8.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Antes de mais, deve notar-se que a presente reclamação perfilha um
entendimento contrário à jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional –
à qual a decisão reclamada aderiu – acerca da concepção do tipo de crime
“lenocínio”. É certo que uma parte da doutrina – invocada pela reclamante em
abono da sua posição – sustenta aquela tese, mas a verdade é que a propósito da
concepção do referido tipo de crime como crime de perigo abstracto ou de perigo
concreto, este Tribunal não confirma a tese esgrimida pela ora reclamante.
E nem se diga que a decisão sumária não respeita o espírito do Acórdão n.º
144/04, que lhe serviu de fundamento, pois isso não corresponde à verdade.
O Acórdão n.º 144/04 admitiu que, mesmo que a actividade de prostituição não
seja penalmente incriminada (ou sequer proibida) – o que demonstra o
reconhecimento pela liberdade sexual do/a prostituto/a –, seria sempre
constitucionalmente admissível incriminar a exploração daquela actividade por
terceiros, ainda que consentida pelo/a prostituto/a, em homenagem ao princípio
da dignidade da pessoa humana.
Ora, do próprio excerto transcrito pela decisão sumária resulta clara a adesão
ao referido Acórdão. Senão vejamos:
«(…) ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma
expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o
aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma
interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da
prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (…)».
Em conclusão, a decisão sumária limitou-se a aplicar jurisprudência
anterior, conforme é permitido pelo artigo 78º-A da LTC. Como tal, mantendo esta
conferência a adesão à supra referida jurisprudência consolidada, não subsiste
qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro, sem prejuízo da
dispensa do respectivo pagamento, por força do benefício de apoio judiciário de
que goza a reclamante.
Lisboa, 14 de Abril de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão