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Processo n.º 247/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A. e B. e recorrido o Ministério Público, foram interpostos recursos, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do acórdão proferido pela 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 03 de Março de 2010 (fls. 9699 a 9784), que, quanto aos ora recorrentes, rejeitou os recursos então interpostos, por legalmente inadmissíveis, ao abrigo dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), 420º, n.º 1, alínea b), 432º, n.º 1, alínea b), todos do CPP.
O primeiro dos recorrentes pretende que seja apreciada a constitucionalidade do “artigo 5.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal interpretado no sentido de julgar inaplicáveis as normas constantes dos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea f), com a redacção que lhes era atribuída pela lei 59/98, de 25 de Agosto, a processos que, embora decididos em 1ª instância em data posterior à entrada em vigor da lei 48/2007, de 28 de Agosto, tenham tido o seu início, bem como a constituição de arguido, em data anterior à entrada em vigor desta lei, por violação dos artigos 13.º, n.º1, 18.º, n.º2 e 3, 29.º, n.º4 e 32.º, n.º1, todos da Constituição da República Portuguesa” (fls. 9801).
Quanto ao segundo recorrente, pretende que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
i) “alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código do Processo Penal, considerando a redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 28.08, a qual temos por aplicável «in casu», atentos, por um lado, a data da prática dos factos imputados ao arguido, por outro lado, a moldura do tipo penal em que aqueles se enquadram, e, por fim, a data da sua constituição naquela qualidade de arguido – anterior à data de entrada em vigor da citada lei – na interpretação que recusa a admissibilidade do recurso de Acórdão proferido por Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça” (fls. 9804 e 9805);
ii) “artigo 188º, n.º 3, do Código do Processo Penal (anterior redacção), na interpretação que lhe é oferecida de que a sua violação não constitui nulidade insanável – artigos 189.º, actual 190.º, e 126.º, n.º 1 e 3 do mesmo Código –, colidindo tal interpretação com os artigos 32.º, n.º 1, e 34.º da Constituição da República Portuguesa (…)” (fls. 9806).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Quanto à alegada inconstitucionalidade da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP e da sua relação com o problema da sucessão de normas processuais penais no tempo, por força da alínea a) do n.º 2 do artigo 5º do CPP – questão que é colocada por ambos os recorrentes, impõe-se frisar que tal questão tem vindo a ser alvo de inúmeros recursos de constitucionalidade, desde a entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, que reviu o Código de Processo Penal. Sucede que, na sequência destes pedidos de fiscalização, este Tribunal já consolidou jurisprudência estável, sempre no sentido da não inconstitucionalidade das interpretações normativas eleitas pelos recorrentes como objecto dos respectivos recursos (assim, ver Acórdãos n.º 263/09, n.º 551/09, n.º 645/09 e n.º 647/09, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Em todos esses arestos, tem-se vindo a entender que uma interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP que acolha o momento da prolação da decisão recorrível como momento processual determinante da aplicação da nova norma processual não se afigura incompatível com a Lei Fundamental, na medida em que só naquele momento, ou seja, “só depois de conhecida a decisão final surge na esfera jurídica dos sujeitos processuais por ela afectados, na decorrência de um abstracto direito constitucional ao recurso, o concreto «direito material» em determinado prazo, deste ou daquele recurso ordinário ou extraordinário” (cfr. José António Barreiros, Sistema e Estrutura do Processo Penal Português, 1997, Lisboa, p. 189).
Acolhendo este entendimento, o Acórdão n.º 263/09 afirmou:
«6. Sucede, porém, que na interpretação normativa sub judice está em causa a aplicação da lei processual penal no tempo, tendo-se entendido ser aplicável a norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, aos processos em que a sentença condenatória de 1.ª instância tenha sido proferida depois da entrada em vigor daquela lei, não obstante ser mais restritiva, quanto à admissibilidade de recurso, do que a lei vigente no momento em que o processo se iniciou, o que confronta a norma com o princípio da legalidade, consagrado no artigo 29.º da Constituição.
Na verdade, na interpretação normativa sindicada, a inadmissibilidade de recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão da 1.ª instância e condenem em pena de prisão não superior a 8 anos, decorre de se aplicar a nova redacção conferida à alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal nos processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, em que a sentença de 1ª instância foi proferida após a entrada em vigor dessa lei.
Deve entender-se o critério fixado no aludido artigo 29º da Constituição, quanto à aplicação da lei de processo penal no tempo, em sintonia com o que se dispõe no artigo 5º do Código de Processo Penal: a lei nova não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando possa resultar, dessa aplicação, uma limitação dos direitos de defesa do arguido. Todavia, o Tribunal também tem entendido, como já se fez notar, que a garantia consagrada no n.º 1 do artigo 32º da Constituição, quanto ao recurso, não implica, obrigatoriamente, um duplo grau de recurso, designadamente perante acórdãos condenatórios proferidos em recurso pelas relações, confirmativos de decisão da 1ª instância na qual o arguido foi condenado em pena de prisão não superior a 8 anos.
Deste modo, do aludido artigo 29º da Constituição não é possível retirar uma proibição absoluta de aplicação imediata de lei 'nova', em matéria de recursos em processo penal, da qual resulte a referida limitação, impedindo o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça de recursos de acórdãos condenatórios proferidos pelas relações nas aludidas circunstâncias.
É certo que o aludido princípio constitucional proíbe que da aplicação da lei nova possa resultar uma inesperada e imprevisível alteração do regime de recursos, em processos pendentes, que afecte o exercício do direito de defesa do arguido; mas o certo é que o momento relevante para o exercício do direito de defesa do arguido, designadamente no que respeita à estratégia processual a adoptar, coincide com a prolação da sentença condenatória em primeira instância e a sua notificação ao arguido, pois só então se estabilizam os elementos essenciais a atender no exercício do aludido direito de defesa. Mostra-se, por isso, preservado, no essencial, o exercício do direito de defesa do arguido quanto à oportunidade da estratégia processual a adoptar.
Não pode, por isso, afirmar-se que, a norma constitui uma desproporcionada limitação das garantias de defesa do arguido, restringindo de forma inadmissível o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.»
E, desta feita através do Acórdão n.º 551/09, esta ideia veio a ser reforçada:
«7. O Tribunal Constitucional tem uma jurisprudência consolidada no sentido de que no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição se consagra o direito ao recurso em processo penal, com uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Mas também que a Constituição não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, cabendo na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso à mais alta jurisdição, desde que não consagre critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre muitos, a propósito da anterior redacção da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na peculiar interpretação acima referida do que era a pena aplicável, acórdão n.º 64/2006 (Plenário), publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Maio de 2006). Essa limitação do recurso apresenta-se como “racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o Supremo Tribunal de Justiça com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação” (citado Acórdão n.º 451/03).
8. Porém, o problema colocado não é exactamente este, mas o de saber se é constitucionalmente admissível suprimir, mediante a aplicação da lei nova a processos pendentes, um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que era consentido pela lei vigente no momento em que o processo foi instaurado.
O artigo 5.º do Código de Processo Penal institui a regra de que a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (tempus regit actum). Com duas excepções (n.º 2 do artigo 5.º). A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua entrada em vigor quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar: a) agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; b) quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.
O Tribunal tem admitido que a questão de constitucionalidade dos regimes de aplicação da lei processual penal no tempo pode e deve ser vista à luz do princípio constitucional da aplicação da lei mais favorável ao arguido constante do nº 4 do artigo 29º da nossa Lei Fundamental. Segundo esta jurisprudência, o domínio deste princípio não se restringe à aplicação da lei penal substantiva, antes deverá ser alargado até ao ponto de serem colocadas sob a sua protecção certas situações em que esteja em causa uma norma processual penal de natureza material. A projecção dessas normas no processo e na responsabilização penal do arguido não pode deixar de ter-se por intimamente conexionada com o próprio princípio da legalidade e, consequentemente, com a garantia por ele conferida.
(…)
Essa norma elege como critério de determinação da lei aplicável em matéria de admissibilidade de recurso de acórdão das relações para o Supremo o momento em que tenha sido proferida a sentença de 1ª instância que seja confirmada pelo acórdão de que se pretende recorrer. Foi este, aliás, o critério adoptado no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2009, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, I Série, de 19 de Março de 2009, embora aplicado a uma situação inversa daquela que agora está em consideração (a decisão de 1ª instância era anterior à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007).
Este critério não pode ser censurado por abrir a porta aos riscos que levam a estender as consequências do princípio constitucional da legalidade penal a certas normas de processo penal respeitantes à situação processual do arguido. Na verdade, só com a sentença fica definida a resposta judicial à pretensão punitiva do Estado. O direito de recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis que passa a integrar o estatuto do arguido (alínea i) do n.º 1 do artigo 61.º do CPP) só se define perante uma concreta decisão que lhe seja desfavorável. É perante o conteúdo desta que se fixam os elementos determinantes para a formulação do juízo de interessado sobre o exercício do direito de recorrer, os pressupostos e o âmbito possível do recurso. Até aí o direito de recorrer, o âmbito do recurso e a sua extensão possível na hierarquia dos tribunais constituem uma mera potencialidade no estatuto do sujeito processual, que se ignora se virá a concretizar-se e em que termos. Perante essa situação de incógnita – para o arguido, para os restantes sujeitos processuais, para o poder legislativo –, não se verificam as razões que levam a proibir soluções legislativas que comportem o risco de um possível arbítrio ou excesso do poder estatal, diminuindo o legislador (ou gerando objectivamente a suspeita de diminuir), de forma direccionada e intencional, o nível de protecção da liberdade e dos direitos fundamentais de defesa dos arguidos em processos concretos já iniciados.
Por outro lado, a eleição do momento em que é proferida a sentença condenatória como factor de determinação do regime de admissibilidade dos recursos para o Supremo acautela suficientemente os direitos de defesa, também na perspectiva de que o arguido é livre de escolher e adequar a sua estratégia processual aos meios legais existentes no momento em que exerce determinado direito. Só perante a sentença o arguido saberá se dela discorda e em que termos pode ou lhe convém atacá-la. Se a lei vigente nesse momento lhe permitir levar o recurso até ao Supremo Tribunal, é legítimo que opte por reservar a discussão de algum aspecto da questão ou a apresentação de determinados argumentos para a fase de recurso perante o Supremo. Ora, a fixação da extensão admissível dos recursos de acordo com a lei vigente no momento da sentença de 1ª instância preserva integralmente essa liberdade e a tutela da confiança no seu exercício, que a escolha da lei vigente em momento posterior, designadamente o do acórdão da relação, poderia vulnerar.
Mas só isso pode reclamar-se em nome da preservação dos direitos de defesa, não sendo legítimo que o arguido confie em que o sistema de recursos vigente no momento em que o processo é instaurado se mantenha inalterado. Não se concebe a existência de estratégia processual que venha a ser comprometida pela alteração do regime de recursos antes de ter sido proferida a decisão que se pretende atacar, porque só perante esta surge, em concreto, o interesse em recorrer e se define o seu âmbito possível.»
O supra referido acórdão foi, aliás, votado favoravelmente pela Relatora, em sede de plenário da 3ª Secção deste Tribunal, não se vislumbrando qualquer razão superveniente para modificação daquele entendimento que é integralmente transponível para os presentes autos.
Assim, quanto ao recurso interposto pelo recorrente A. e à primeira questão de inconstitucionalidade normativa colocada no recurso interposto pelo recorrente B., mediante remissão para jurisprudência anterior, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, julga-se não inconstitucional a interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida, segundo a qual a norma extraída da conjugação entre os artigos 5º, n.º 2, alínea a), 400º, n.º 1, alínea f), 420º, n.º 1, alínea b), 432º, n.º 1, alínea b), todos do CPP, pode ser interpretada no sentido de que a nova redacção resultante da Lei n.º 48/2007 pode ser aplicada a processos em que os arguidos tenham sido constituídos nessa qualidade em momento anterior à da entrada em vigor daquele diploma, desde que a decisão de primeira instância seja proferida após a referida entrada em vigor.
3. Já quanto à interpretação normativa de que a alegada violação do artigo 188º, n.º 3 do CPP (na redacção anterior à Lei n.º 48/2007) não constituiria nulidade insanável – que constitui a segunda questão integrante do objecto do recurso interposto pelo recorrente B. –, importa notar que a mesma não foi alvo de aplicação efectiva por parte da decisão recorrida. Com efeito, o acórdão proferido pela 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça limitou-se a rejeitar o recurso então interposto pelo segundo recorrente, com exclusivo fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, pelo que nem sequer conheceu do objecto do recurso. Ora, na medida em que o artigo 79º-C da LTC determina que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da constitucionalidade de normas que tenham sido alvo de aplicação efectiva por parte das decisões recorridas, mais não resta do que rejeitar o referido recurso, também quanto a esta parte.
Pelo contrário – e quando muito –, tal interpretação normativa teria sido aplicada pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 17 de Junho de 2009 (fls. 9248 e 9414), visto que só naquela decisão jurisdicional foi apreciada e decidida a questão da alegada inconstitucionalidade do artigo 188º, n.º 3, do CPP. Porém, mesmo no caso deste último acórdão, nunca foi adoptada a interpretação normativa ora reputada de inconstitucional. Na verdade, o acórdão então proferido pelo Tribunal da Relação do Porto foi inequívoco, ao afirmar que, mesmo que se admitisse tal nulidade como insanável, a respectiva arguição seria sempre improcedente. Neste sentido, veja-se:
«Porém, ainda que assim não se entenda e se admita que tal possível nulidade tenha a natureza de insanável, podendo por isso ser arguida na fase processual em que o foi, há também que concluir pela improcedência da mesma.
Efectivamente, não se vê como é que a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional citado pelos arguidos (nº 450/07, in DR nº 205, II Série) pode ditar a nulidade das escutas transcritas nos autos.
Tal acórdão (…) decide sobre a inconstitucionalidade da norma prevista no art. 188º nº 3 do CPP em vigor ao tempo – na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são consideradas irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha tido conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância – mas não decreta a nulidade das escutas existentes nos autos em relação às quais o mesmo juiz de instrução ordenou a transcrição.
Ora, no caso dos autos, são estas escutas – cuja transcrição foi ordenada pela juíza de instrução – as que estão em causa, pois são estas que os arguidos pretendem ver declaradas nulas.
Porém, em relação a estas, nada alegam em termos de um qualquer vício legal que seja de imputar às mesmas e que possa redundar numa qualquer nulidade.
Por outro lado, mesmo que os arguidos queiram dizer que as escutas destruídas podiam ajudar à sua defesa (…), nada alegam no sentido do eventual conteúdo dessas escutas destruídas (…) e do modo como o mesmo podia ser determinante para a defesa.
Daí que não faça qualquer sentido a invocação da nulidade em apreço» (fls. 9377 e 9378).
Desta transcrição, resulta que nem sequer o acórdão do Tribunal da Relação do Porto adoptou a interpretação normativa reputada de inconstitucional pelo segundo recorrente, tendo, ao invés, adoptado – ainda que alternativamente – o entendimento de que, mesmo se considerada insanável, a nulidade invocada não tinha sido alvo de suficiente alegação e demonstração, pelo que deveria ser rejeitada. Com efeito, apesar de não ter, em primeira linha, adoptado a interpretação normativa reputada de inconstitucional, o referido aresto não deixou de ponderar a possibilidade de a nulidade constante do n.º 3 do artigo 188º do CPP ser qualificada como insanável. Como tal, mesmo que uma eventual decisão do Tribunal Constitucional viesse a ser procedente – e se admitisse que a decisão recorrida, proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, tinha acolhido, implicitamente, aquela interpretação – sempre se revelaria processualmente inútil, na medida em que subsistiria uma fundamentação alternativa que sempre conduziria o tribunal recorrido a decisão idêntica à já proferida, ou seja, à rejeição do recurso.
Assim, ainda que o recorrente B. tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade – seja em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação do Porto (cfr. § III. das conclusões, a fls. 8395), seja em sede de alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cfr. §. XIV. das conclusões, a fls. 9633 e 9634) –, certo é que aquela interpretação não foi efectivamente aplicada por nenhum dos tribunais recorridos. Como tal, por força do artigo 79º-C da LTC, o Tribunal Constitucional apenas pode concluir pela impossibilidade legal de conhecimento do objecto do pedido.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
a) Indeferir o recurso interposto pelo recorrente A.;
b) Indeferir o recurso interposto pelo recorrente B., quanto à interpretação normativa extraída da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, e não conhecer do objecto do recurso quanto à interpretação normativa extraída do n.º 3 do artigo 188º do CPP.
Custas devidas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, para cada um deles, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente A. veio apresentar reclamação (fls. 9861 a 98) que se pode sintetizar nos seguintes termos:
i) Reconhece a existência de jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP, ou seja, no sentido de não ser inconstitucional a aplicação de um regime mais restritivo de recurso a processos penais pendentes à data da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, sempre que ainda não tenha sido proferida decisão condenatória;
ii) Ainda assim, discorda veementemente de tal orientação jurisprudencial, invocando em abono da tese da inconstitucionalidade diversas citações doutrinárias sobre temas conexos e afirmando, em síntese, que:
ii.a.) a interpretação normativa em causa é extraída de uma norma processual penal de natureza predominantemente material;
ii.b.) o princípio da legalidade exige, em matéria penal, que o arguido da prática de determinado crime possa conhecer, à data da prática do facto alegadamente criminoso todo o enquadramento jurídico necessário à discussão da sua responsabilidade penal, inclusive, quais as normas que regem o sistema de recurso de eventual decisão condenatória em primeira instância;
ii.c.) a tendencial aplicação imediata de normas processuais penais deve cessar sempre que da sua aplicação resulte um agravamento da situação processual do arguido;
ii.d.) a eliminação de um grau de recurso configura um evidente agravamento da situação processual do arguido, pelo que é contrária ao princípio da legalidade.
3. Por sua vez, igualmente inconformado, o recorrente B. apresentou a seguinte reclamação:
«A decisão sobre ambas as questões suscitadas pelo Recorrente não se encontram suficientemente fundamentadas, porquanto, é a mesma feita por via de remissão para decisões anteriores, o que, sendo possível face ao n.º 1 do artigo 78. °-A do supra citado comando legal, apenas o deverá ser desde que se verifique coincidência sobre os factos subsumidos à norma cuja constitucionalidade, pelo menos no que toca à respectiva interpretação.
Ora, a decisão em crise é totalmente omissa sobre tal matéria, desconhecendo-se, assim, se in casu as decisões para as quais se remete são ou não coincidentes.
Ademais, sem prescindir, mesmo que se atendesse que sobre a mesma questão de direito houvesse sido proferida decisão, a verdade é que inexiste sobre as matérias colocadas à consideração deste Tribunal jurisprudência uniforme e fixada.
Sendo que, no que concerne especificamente à invocada inconstitucionalidade do artigo 188. °, n.º 3, do Código do Processo Penal (anterior redacção), na interpretação que lhe é oferecida de que a sua violação não constitui nulidade insanável — artigos 189.°, actual 190.°, e 126.°, n.º 1 e 3 do mesmo Código -, colidindo tal interpretação com os artigos 32.°, n.º 1, e 34.° da Constituição da República Portuguesa, e que foi aplicado não obstante a atempada invocação da sua inconstitucionalidade, não colhe o argumento aduzido em sede de decisão justificativo do não conhecimento da mesma, porquanto, é implícita em sede das decisões precedentes que a interpretação seguida foi aquela que o Recorrente pretende ver sindicada.
Face ao exposto, é inequívoco que se impõe que seja admitido e deferido o recurso interposto pelo Recorrente, o que se requer.» (fls. 9881 a 9882)
4. Após devidamente notificado, o Ministério Público apresentou a seguinte resposta:
«Reclamação do arguido B.
1.º
A Decisão Sumária de fls. 9828 a 9838 indeferiu o recurso quanto á interpretação normativa extraída da alínea f) do nº 1 do artigo 400º do CPP, remetendo para os acórdãos que já apreciaram a inconstitucionalidade daquela norma e transcrevendo, inclusivamente, as partes relevantes de alguns desses arestos.
2º
Na reclamação diz-se que essa remissão só é possível se houver coincidência entre as interpretações normativas.
3.º
Ora, se na Decisão Sumária se remeteu para a jurisprudência anterior foi porque se entendeu que o decidido pelo Tribunal e a fundamentação constante daqueles acórdãos era transponível para o caso dos autos.
4.º
Cabia ao recorrente, na reclamação, demonstrar que assim não era; o que não fez, limitando-se a produzir uma afirmação sem qualquer fundamentação.
5.º
Por outro lado, para se remeter para jurisprudência anterior não é necessário que se trate de jurisprudência “uniforme e fixada”, sendo certo que, no caso, a jurisprudência até é uniforme.
6.º
No que diz respeito à inconstitucionalidade relacionada com o artigo 188º, nº 3, do CPP (na redacção anterior à Lei nº 48/2007), entendeu-se na Decisão Sumária que aquela norma, na interpretação questionada pelo recorrente, não tinha sido aplicada nem pelo Supremo Tribunal de Justiça nem pela Relação do Porto.
7º
O recorrente, na reclamação, insiste em afirmar o contrário, não explicando, todavia, as razões da discordância, parecendo-nos a nós evidente que não se verifica o requisito de admissibilidade do recurso que consiste em a dimensão normativa questionada, corresponder a efectivamente aplicada na decisão recorrida.
8º
Deve, pois, indeferir-se a reclamação
Reclamação do arguido A..
9º
Quanto a este arguido, a Decisão Sumária indeferiu o recurso quanto à interpretação normativa extraída da alínea f) do nº 1 do artigo 400º do CPP, com base na jurisprudência anterior do Tribunal sobre tal matéria.
10º
O recorrente aceita que esta questão já foi tratada em diversos arestos deste Tribunal, no entanto, não concorda com o sentido das decisões, dizendo fundamentadamente porquê.
11º
Porém, os argumentos adiantados em nada abalam os fundamentos da decisão reclamada e da corrente jurisprudencial que lhe subjaz.
12º
Pelo exposto, deverá indeferir-se a reclamação.»
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5. Começando pela alegada falta de fundamentação da decisão sumária – tal como suscitado pelo reclamante B. –, note-se que é a própria lei (em especial, artigo 78º-A, da LTC) que autoriza o Relator junto do Tribunal Constitucional a proferir decisão sumária – e, como tal, necessariamente sucinta – sempre que haja jurisprudência anterior a julgar questão idêntica.
Conforme, aliás, reconhecido pelo outro reclamante nos presentes autos, A., a unanimidade da jurisprudência do Tribunal Constitucional é bem conhecida, pelo não se compreende a alegada ininteligibilidade da decisão reclamada por (alegadamente) não ter demonstrado a similitude entre a interpretação normativa em apreço nos autos e a interpretação normativa já julgada não inconstitucional pela abundante jurisprudência nela citada.
Aliás, a decisão sumária começou logo por afirmar que a questão em apreço já tinha sido alvo de jurisprudência anterior – que, como já se disse, é unânime neste Tribunal. Caso pretendesse negar a similitude com a jurisprudência para a qual a decisão reclamada remete, cabia ao reclamante trazer aos autos argumentos que permitissem impugnar a respectiva similitude, o que não fez.
Assim, quanto a este aspecto, não se verifica qualquer motivo para alterar a decisão sumária.
6. Passando à apreciação de fundo quanto aos argumentos esgrimidos pelo reclamante A., quanto à inconstitucionalidade da interpretação normativa da alínea f) do n.º 1 do artigo 400º do CPP e da sua relação com o problema da sucessão de normas processuais penais no tempo, por força da alínea a) do n.º 2 do artigo 5º do CPP, importa apenas notar que a decisão reclamada encontra-se suficientemente escudada em jurisprudência consolidada neste Tribunal, pelo que se reiteram todos os argumentos elencados pela decisão reclamada que assentam, em traços largos, na consideração de que o direito fundamental ao recurso (artigo 32º, n.º 1, da CRP) apenas garante um único grau de recurso e de que, entre a data da prática dos factos criminosos e a data da decisão condenatória em primeira instância, o direito fundamental ao recurso constitui uma “uma mera potencialidade no estatuto do sujeito processual, que se ignora se virá a concretizar-se e em que termos” (Acórdão n.º. 559/09). O momento determinante para a aferição da eventual diminuição das garantias de defesa do arguido é pois a data da prolação da primeira decisão condenatória e não a data de cometimento dos factos criminosos ou de qualquer outra data, inclusive a data da constituição como arguido. Mantém-se integralmente o sentido expresso pela decisão reclamada, quanto a esta parte.
7. Por último, a reclamação apresentada por B., relativamente à interpretação normativa extraída do n.º 3 do artigo 188º do CPP impugna a decisão sumária por esta ter considerado que a referida interpretação não havia sido efectivamente aplicada.
Ora, é manifesto que o acórdão recorrido proferido pelo STJ em 03-03-2010, que rejeitou o recurso por inadmissível, não aplicou, de todo em todo, o nº 3 do artigo 188º do CPP.
Em síntese, não subsiste qualquer fundamento para reformar a decisão reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir ambas as reclamações apresentadas.
Custas devidas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, a suportar por cada um deles, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 1 de Julho de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão