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Processo n.º 1006/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do recurso contencioso de anulação instaurado por A. contra o JÚRI DO CONCURSO PARA PROVIMENTO DE DOIS LUGARES DE PROFESSOR CATEDRÁTICO DO DEPARTAMENTO DE FÍSICA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, mediante sentença datada de 10 de Setembro de 2008, julgou procedente o recurso e anulou a deliberação de ordenação final dos candidatos tomada por aquele Júri do Concurso na reunião de 25 de Fevereiro de 2000.
Na sequência de recursos interpostos pelo referido Júri do Concurso e pela candidata B., a referida sentença foi integralmente confirmada pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, por acórdão datado de 12 de Novembro de 2009.
O Júri do Concurso interpôs então recurso desta última decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), suscitando – após ter sido convidado pelo ora relator a explicitar a interpretação normativa sustentada pela decisão recorrida cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada – a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, na interpretação segundo a qual o concurso de recrutamento de professores catedráticos e associados está sujeito às garantias previstas nas referidas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 5.º, com fundamento na alegada violação do princípio da autonomia universitária consagrado no artigo 76.º, n.º 2, da Constituição.
O Recorrente apresentou as respectivas alegações e concluiu do seguinte modo:
«[...]
1. A autonomia universitária – estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira – encontra-se, expressamente, prevista no nº 2 do artigo 76º da CRP.
2. A autonomia estatutária e administrativa implica o poder de definir a sua própria «constituição» (organização interna, forma de governo, número e características das faculdades e cursos, planos de estudo, graus académicos, sequência de estudos, formas de recrutamento de docentes, acesso de alunos, etc.) e a capacidade de gestão dos seus próprios assuntos, prática de actos administrativos próprios, celebração de contratos, recrutamento de pessoal, inclusive de docentes, dentro dos limites da lei.
3. A autonomia universitária, nos seus vários aspectos, existe nos «termos da lei» (nº 2), pelo que está expressamente sujeita a reserva de lei (concretizadora e restritiva). Na verdade, ela desenvolve-se no âmbito das leis básicas referentes ao sistema de ensino a competência organizatória (nas suas várias dimensões: material, pessoal e económica) é, em grande medida, objecto de disciplina legal; os membros da universidade estão vinculados ao direito de ordenação e ao direito disciplinar constante de diplomas legais; a carreira académica, a contratação e cooptação de pessoal científico estão legalmente regulamentados.
4. Do preceito constitucional resulta que o legislador ordinário está obrigado a conferir conteúdo útil e constitucionalmente relevante à garantia de autonomia universitária, nos domínios enunciados, o que passa por ter de prever um regime que salvaguarde a protecção, nessas matérias, dos interesses específicos e próprios das universidades.
5. Ora, a “liberdade científica ou de “cátedra”, ínsita no sentido da autonomia científica e pedagógica, reconhecida constitucionalmente às universidades, postula, de um lado, que o acesso à docência e à investigação universitária e a progressão na carreira sejam feitas, apenas, segundo o critério do mérito e da capacidade cientifica e pedagógica universitárias, e, do outro, que no processo dessa avaliação, os docentes universitários, enquanto agentes dessa liberdade científica, tenham necessariamente de intervir”.
6. Deste modo, “a igualdade no acesso à docência e à progressão da carreira deve fazer-se, apenas, através de métodos de selecção em que relevem, apenas, o mérito e a capacidade científicas, em provas abertas a todos aqueles que, ao tempo, se possam a elas apresentar”.
7. Sendo que, à previsão constitucional da autonomia universitária subjaz a especialidade ou especificidade do lugar de professores associados e catedráticos que ao mesmo tempo impõe “especiais e especificas exigências em termos do seu recrutamento e selecção, impondo-se, desta feita, que a avaliação do relatório e do currículo tenha de ser global e concreta e realizada ou efectivada através duma avaliação pessoal dos candidatos já que não é possível submetê-los, na maioria das situações, a uma grelha de classificação prévia e abstracta, sendo, aliás, por isso, que a lei prevê uma ordenação por mérito relativo dos candidatos admitidos e não uma classificação final de zero a vinte”.
8. Especificidades – subjacentes à autonomia universitária – relacionadas com o âmbito do conhecimento científico e de liberdade criativa do corpo docente universitário (em especial dos professores associados e catedráticos) e de diversidade incontrolável e imprevisível de curricula universitários e actividades profissionais – que conduziram ao estabelecimento de regras próprias, que não contemplaram a possibilidade de escolha do método de selecção (a própria lei o estabelece), de fixação prévia de grelhas classificativas ou de identificação antecipada dos membros do júri (o universo de candidatos é sempre conhecido e muito limitado e o julgamento é feito pelos seus pares) (cfr. Acórdão do STA de 05/03/2007, Processo: 065/07).
9. O desenvolvimento da autonomia constitucionalmente imposta foi levado a cabo através da Lei 108/88 de 24-09 (lei de autonomia das universidades), do Decreto-Lei n.º 252/97 de 26-09, e, no que toca à matéria de recrutamento de professores que aqui nos ocupa, pelo Estatuto da Carreira Docente Universitária.
10. Desenvolvimento e concretização da autonomia universitária que nesses diplomas teve em conta a especificidade e especialidade subjacente ao recrutamento de professores associados e catedráticos assim respeitando a intencionalidade subjacente à autonomia universitária.
11. Específica intencionalidade problemática do recrutamento de professores associados e catedráticos inerente à autonomia universitária que foi levada a cabo pelo ECDU em claro respeito dos princípios da imparcialidade, transparência e igualdade.
12. Procedendo assim a uma correcta síntese (respeitando) os parâmetros constitucionais impostos pela autonomia universitária e pelos princípios da igualdade, transparência e imparcialidade.
13. Não sendo adequada (e muito menos necessária) a aplicação das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 5º do DL 204/98 (cujo âmbito da aplicação nem sequer abrange, como vimos, as instituições universitárias) ao recrutamento de professores catedráticos.
14.A aplicação irrestrita e acrítica das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 5º, no acórdão recorrido, à presente situação viola a autonomia universitária tal como resulta da contraposição com o regime adequadamente previsto na ECDU.
15. Nos termos que vimos de expor, ao terem sido aplicadas irrestrita e acriticamente, ao recrutamento de professores catedráticos, as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 5º foi violada (sem tal se revelar necessário) a autonomia universitária.
Nestes termos, o nº 2 do artigo 3º e as alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei 204/98, de 11 de Julho – na interpretação e aplicação sufragada no Acórdão do TCA Norte que confirmou a decisão do TAF de Coimbra, nos termos da qual o artigo 3º nº 2 impõe a aplicação ao concurso de recrutamento de professores catedráticos e associados do previsto nas alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 5º – são inconstitucionais por violação do princípio da autonomia universitária afirmado no artigo 76.º, n.º 2 da CRP.
[...]».
O Recorrido não apresentou contra-alegações.
*
Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que o Recorrente pretende submeter à respectiva apreciação a constitucionalidade das normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, na interpretação segundo a qual o concurso de recrutamento de professores catedráticos e associados está sujeito às garantias previstas nas referidas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 5.º.
Contudo, uma vez que o caso concreto respeita exclusivamente a um concurso de recrutamento de professores catedráticos, e que o incidente de fiscalização concreta da constitucionalidade é caracterizado pela relação de instrumentalidade, relativamente ao processo principal de que emerge, torna-se evidente que a eventual pronúncia do Tribunal Constitucional sobre o regime jurídico do concurso de recrutamento dos professores associados seria desprovido de qualquer utilidade na acção principal.
Em conformidade com o que se acaba de dizer, o objecto do presente recurso de constitucionalidade restringir-se-á à fiscalização da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, na interpretação segundo a qual o concurso de recrutamento de professores catedráticos está sujeito às garantias previstas nas referidas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 5.º.
2. Do mérito do recurso
2.1. O caso concreto e a interpretação normativa questionada
O presente recurso de constitucionalidade surge na sequência de uma decisão judicial de anulação de uma deliberação do júri de ordenação final dos candidatos admitidos a concurso para efeito de provimento de dois lugares de professor catedrático numa universidade pública.
O candidato ordenado em terceiro lugar interpôs recurso contencioso de anulação da referida deliberação e o tribunal a quo anulou-a, com fundamento na falta de divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar e do sistema de classificação final, bem como na falta de aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação, tendo para esse efeito aplicado as normas constantes dos artigos 3.º, n.º 2, e 5.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, na interpretação segundo a qual o concurso de recrutamento de professores catedráticos está sujeito às garantias previstas nas referidas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 5.º.
Não cabe na economia do recurso de constitucionalidade aferir da bondade da referida interpretação normativa no plano meramente infraconstitucional, tanto mais que a competência em razão da matéria para esse efeito se esgotou na instância recorrida.
A intervenção do Tribunal Constitucional justifica-se porque o Recorrente entende que esta interpretação normativa viola o princípio da autonomia universitária consagrada no 76.º, n.º 2, da Constituição.
2.2. O regime geral de acesso e progressão na função pública
As disposições legais sob análise apresentam a seguinte redacção:
[...]
Artigo 3.º
Excepções
(...)
Os regimes de recrutamento e selecção de pessoal dos corpos especiais e das carreiras de regime especial podem obedecer a processo de concurso próprio com respeito pelos princípios e garantias consagrados no artigo 5.º.
(...)
[...]
Artigo 5.º
Princípios e garantias
(...)
1. (...)
2. Para respeito dos princípios referidos no número anterior, são garantidos:
a) (...)
b) A divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar, do programa das provas de conhecimentos e do sistema de classificação final;
c) A aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação;
d) (...)
[...].
Em matéria de acesso à função pública, o art. 47.º, n.º 2, da Constituição, prescreve que “todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via do concurso”.
O âmbito normativo-constitucional deste preceito abrange o direito de acesso, o direito de ser mantido em funções e, bem assim, o direito às promoções dentro da carreira (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, volume I, pág. 660, da 4.ª Edição, da Coimbra Editora)..
Em obediência à referida vinculação constitucional, o legislador ordinário aprovou o Decreto-Lei n.º 184/89, de 2 de Junho, que estabeleceu os princípios gerais em matéria de emprego público, nomeadamente a obrigatoriedade de concurso para ingresso na função pública e para acesso nas respectivas carreiras (artigos 26.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1). Foi igualmente aprovado o Decreto-Lei n.º 204/98, de 11 de Julho, destinado a regular o concurso como forma de recrutamento e selecção de pessoal para os quadros da Administração Pública, bem como os princípios gerais a que o mesmo deve obedecer (artigo 1.º).
O recrutamento de pessoal através de concurso é necessariamente acompanhado de determinadas exigências, desde logo no plano meramente procedimental. Na verdade, impõe-se entender que uma vez aberto um concurso, a administração fica constituída no dever de garantir os direitos dos concorrentes, falando-se a esse respeito que a regra constitucional do concurso consubstancia um verdadeiro direito a um procedimento justo de recrutamento (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., pág. 660-661).
Independentemente da margem de livre decisão administrativa que venha a ser atribuída ao júri do concurso – e esta será necessariamente acentuada no caso da deliberação final respeitante ao recrutamento de professores catedráticos –, haverá sempre uma esfera da legalidade da actuação administrativa sujeita a controlo jurisdicional, ainda que resumido à aferição do respeito administrativo pelas vinculações normativas e pelos limites internos da margem de livre decisão (Vide MARCELO REBELO DE SOUSA/ ANDRÉ SALGADO DE MATOS, em “Direito Administrativo Geral – Introdução e princípios fundamentais”, tomo I, pág. 180-184, da 2.ª Edição, da Dom Quixote).
No que respeita aos referidos limites internos da margem de livre decisão, interessa aqui focar a atenção nos princípios da actividade administrativa, consagrados no artigo 266.º, n.º 2, da Constituição, em especial, os princípios da imparcialidade e da igualdade, entrelaçados entre si, que assumem particular relevância prática nos procedimentos concursais.
O princípio da imparcialidade postula que os candidatos devem ser tratados de forma equitativa durante o procedimento e na própria decisão, estando, assim, vedados quaisquer favorecimentos ou desfavorecimentos intencionais dos candidatos pela Administração Pública.
Como ensinam JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS:
«(...) o princípio da imparcialidade impõe, de um lado, à Administração Pública, na prossecução dos específicos interesses públicos legalmente definidos, um tratamento equitativo de todas as partes envolvidas, impedindo os seus órgãos ou agentes de favorecer amigos e/ou prejudicar inimigos, bem como proibindo-os de intervir em procedimentos onde se pode suspeitar que tenham comportamentos de favorecimento ou de prejuízo, concretamente procedimentos onde possam ter interesses pessoais ou familiares (garantias de imparcialidade do procedimento); de outro, o princípio impõe à Administração Pública que pondere todos os interesses envolvidos na decisão, não deixando interesses por analisar, impondo ainda, nessa ponderação, a utilização de critérios objectivamente válidos, de tudo dando completo esclarecimento através da fundamentação expressa da decisão.» (In “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo III, pág. 566, da ed. de 2007, da Coimbra Editora).
Por seu turno, o princípio da igualdade no acesso à função pública vale aqui na sua acepção clássica, isto é, exige que se trate de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente, na exacta medida da diferença. A Administração Pública fica, assim, impedida de introduzir discriminações constitucionalmente ilegítimas, bem como qualquer privilégio ou preferência arbitrária entre os candidatos.
No domínio dos concursos públicos, estes princípios são potenciados e acautelados pelo princípio da transparência, o qual explica, em larga medida, o direito à informação, o direito de audiência prévia e mesmo o dever de fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos e interesses legalmente protegidos (vide MARCELO REBELO DE SOUSA, em “O concurso público na formação do contrato administrativo”, pág. 41-42, da ed. de 1994, da Lex).
A própria existência do instituto do concurso público encontra justificação na necessidade de assegurar a igualdade de tratamento através de um procedimento administrativo transparente.
O procedimento administrativo concursal é transparente quando, para além do mais, assegura a objectividade da posição de quem decide abrir o concurso e de quem o conduz.
A objectividade aqui exigida significa que o concurso público não pode obedecer exclusiva ou predominantemente a critérios subjectivos da Administração Pública sem acolhimento jurídico, não existindo transparência sem conhecimento prévio e sem estabilidade das regras e dos critérios de apreciação a que a Administração Pública se auto-vincula no momento da abertura do concurso (Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa, na ob. cit., pág. 62 e seg.).
Nesta linha de pensamento, o artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 204/98, dispõe que “o concurso obedece aos princípios constitucionais de liberdade de candidatura, de igualdade de condições e de igualdade de oportunidades para todos os candidatos”.
Para garantir o respeito dos referidos princípios, o mesmo diploma legal prescreve a divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar e do sistema de classificação final, bem como a exigência da aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação (artigo 5.º, n.º 2, alíneas b) e c).
Qual o alcance prático destas garantias na economia do próprio Decreto-Lei n.º 204/98-
A divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar e do sistema de classificação final dos candidatos visa garantir a imparcialidade e a transparência no concurso, correspondendo grosso modo à divulgação prévia das “regras do jogo” a cujo cumprimento ficará vinculada a Administração (vide PAULO VEIGA MOURA, em “Função pública – Regime jurídico, direitos e deveres dos funcionários e agentes”, 1.º Volume, pág. 91-96, da 2.ª Edição, da Coimbra Editora, e CLÁUDIA VIANA, em “O regime de concursos de pessoal na função pública”, in Scientia Iuridica, tomo L, n.º 290, Maio-Agosto 2001, pág. 106-108).
Para acautelar esta finalidade, tal informação deverá constar quer do aviso de abertura do concurso, quer das actas de reunião do júri do concurso (artigo 27.º, n.º 1, alíneas f) e g).
É líquido que os critérios de avaliação concretamente adoptados não podem ser divulgados pelo júri do concurso após a apresentação das candidaturas e muito menos essa divulgação poderá ocorrer na audiência dos interessados. Apenas a divulgação atempada da referida informação assegura a transparência da Administração Pública e coloca efectivamente todos os candidatos em pé de igualdade em matéria de conhecimento dos critérios pelos quais irá ser pontuado e avaliado o seu mérito.
Por seu turno, a aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação – os quais não se confundem com os métodos de selecção previstos nos artigos 18.º a 25.º – visa prevenir a subjectividade na avaliação da aptidão dos candidatos, e, sobretudo, permitir o ulterior controlo da decisão de classificação final através da reconstituição lógica e coerente das operações que a antecederam e a determinaram, independentemente da maior ou menor dificuldade de definição das técnicas adequadas à apreciação do mérito dos candidatos.
2.3. O recrutamento dos professores catedráticos
O regime jurídico de recrutamento dos professores catedráticos resulta da conjugação de vários diplomas aprovados pelo legislador ordinário que contribuem para a definição dos limites da autonomia universitária consagrada na Constituição.
Desde logo, uma vez que o aviso sobre a abertura do concurso de provimento de professores catedráticos que ocasionou o presente recurso de constitucionalidade foi tornado público em finais de 1999 e a deliberação de ordenação final dos candidatos teve lugar durante o mês de Fevereiro de 2000, importa ter presente a Lei n.º 108/88, de 24 de Setembro (Lei da Autonomia Universitária) então aplicável – entretanto revogada pela Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro –, cujo artigo 15.º, n.º 2, dispunha que “cabe às universidades o recrutamento e promoção dos seus docentes e investigadores, bem como do restante pessoal, nos termos da lei”.
Encontrava-se há muito abandonada a criticada solução legal de recrutamento de professores catedráticos por convite, ainda que fundamentado em relatório prévio subscrito pelo mínimo de dois professores catedráticos, aprovado por 4/5 do conselho escolar e pelo Ministro da Educação (artigos 24.º, alínea a), e 25.º, n.º 2, do Regime jurídico do pessoal docente universitário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/70, de 30 de Março), assim como também se abandonou o recrutamento dos professores catedráticos mediante concurso de provas públicas que, normalmente, permitia a discussão pública dos trabalhos científicos e de uma lição à escolha do candidato, com tudo o que isso representava em termos de apreciação relativa dos candidatos (alínea c), do mesmo artigo 24.º).
A regulação da matéria do recrutamento e promoção dos docentes universitários levada a cabo pelas universidades, no momento do concurso em causa, já era então levada a cabo pelo Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 448/79, de 12 de Novembro – que, entretanto, já tinha sofrido 26 alterações legislativas até ser proferida a decisão ora recorrida.
O artigo 9.º, alínea b), do ECDU (na redacção resultante da alteração, por ratificação, da Lei n.º 19/80, de 16 de Julho), prescrevia que os professores catedráticos podiam ser recrutados “por concurso documental, nos termos dos artigos 37.º a 52.º”.
E o regime do concurso documental para professor catedrático, previsto nos artigos 37.º a 52.º do ECDU, apresentava os seguintes traços essenciais com incidência na autonomia universitária:
a) o concurso destina-se a averiguar o mérito da obra científica dos candidatos, a sua capacidade de investigação e o valor da actividade pedagógica já desenvolvida (artigo 38.º);
b) o júri do concurso é sempre integrado por professores catedráticos, em número não inferior a cinco, da disciplina ou grupo de disciplinas a que se refere o concurso afectos à Universidade em causa e a outras Universidades (artigo 45.º, n.os 1 e 2);
c) a ordenação dos candidatos terá por fundamento o mérito científico e pedagógico do curriculum vitae de cada um deles (artigo 49.º, n.º 1);
d) a decisão do júri, tomada por maioria simples dos votos dos seus membros, ficará consignada em acta, com indicação do sentido dos votos individualmente expressos e dos respectivos fundamentos (artigo 52.º, n.º 1);
e) e das decisões finais proferidas pelos júris não cabe recurso, excepto quando arguidas de vício de forma (artigo 62.º).
A adopção da solução do concurso documental significava que a avaliação do mérito científico, pedagógico e académico de cada candidato consistia numa avalização curricular, ou seja, que a avaliação dos candidatos a professor catedrático era efectuada exclusivamente com base na documentação entregue pelos candidatos (artigos 42.º e 43.º, do ECDU), não se consignando quaisquer regras em matéria de divulgação prévia dos critérios de selecção a utilizar e do sistema de classificação final, e de conteúdo da fundamentação da decisão do júri.
2.4. A autonomia universitária (art. 76.º, n.º 2, da CRP)
O n.º 2, do artigo 76.º, da CRP, na redacção actual (introduzida pela Revisão Constitucional de 1997), prescreve que “as universidades gozam, nos termos da lei, de autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira, sem prejuízo da adequada avaliação da qualidade do ensino”.
Densificando o referido preceito constitucional, ensinam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA:
“São cinco os aspectos constitucionais da autonomia universitária: estatutária científica, pedagógica, administrativa e financeira. A autonomia estatutária significa poder de definir a sua própria «constituição» (organização interna, forma de governo, número e características das faculdades e cursos, planos de estudos, graus académicos, sequência de estudos, formas de recrutamento de docentes, acesso de alunos, etc.) dentro dos limites da lei, independentemente de qualquer sancionamento governamental. A autonomia científica começa por ser um corolário da própria liberdade de criação científica (art. 42.º-1) e traduz-se no direito de autodeterminação e auto-organização das universidades em matéria científica (selecção de áreas de investigação, organização da investigação, etc.). A autonomia pedagógica está também conexionada com a liberdade de ensino (art. 43.º) e consiste na capacidade de autodefinição, através de órgãos universitários competentes, das formas de ensino e de avaliação, da organização das disciplinas e da distribuição do serviço docente, etc. A autonomia administrativa consiste na auto-administração ou autogoverno, através de órgãos próprios emergentes da própria comunidade universitária (gestão dos próprios assuntos, prática de actos administrativos próprios, celebração de contratos, recrutamento de pessoal, inclusive de docentes, etc.). Finalmente, a autonomia financeira abrange designadamente o orçamento próprio, a capacidade para arrecadar receitas próprias, etc.”. (ob. cit., pág. 914).
Relativamente ao âmbito e aos limites da autonomia universitária, os referidos Autores acrescentam que:
“A autonomia universitária, nos seus vários aspectos, existe nos “termos da lei”, pelo que está expressamente sujeita a reserva de lei (concretizadora e restritiva). Na verdade, ela desenvolve-se no âmbito das leis básicas referentes ao sistema de ensino; (…); a carreira académica, a contratação e cooptação de pessoal científico estão legalmente regulamentados. A autonomia estatutária, por ex., não pode desrespeitar as normas imperativas do estatuto legal das universidades.
Todavia, cabendo à lei definir os limites da autonomia universitária, não pode a mesma deixar de garantir um espaço mínimo constitucionalmente relevante, de forma a salvaguardar-se o “núcleo essencial” da autonomia universitária” (ob. cit., pág. 916).
Em que consiste este núcleo essencial da autonomia universitária que reclama tutela constitucional nas cinco vertentes acima enunciadas-
A resposta a esta interrogação passa por dilucidar quais são as principais funções das Universidades e do ensino universitário.
Desde há muito que a jurisprudência constitucional espanhola, perante um preceito constitucional de conteúdo muito semelhante ao nosso (artigo 27.º, n.º 10, da Constituição Espanhola), fundamenta a autonomia universitária na necessidade de garantir a liberdade académica – liberdade de ensino, estudo e investigação – contra as ingerências externas e identifica o seu conteúdo essencial como o conjunto dos elementos necessários à garantia da liberdade académica (Vide STC 26/1987, STC 55/1989, STC 106/1990 e STC 156/1994, disponíveis em www.boe.es).
Paralelamente, em 1988, por ocasião da comemoração do nono centenário da Universidade de Bolonha, EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA definiu a Universidade como a “consciência crítica de uma sociedade aberta” (Vide “La autonomia universitária”, in Revista de Administración Pública, n.º 117, 1988, pp. 7 e ss.).
Segundo o referido Autor, a autonomia universitária constitui o instrumento essencial que transforma uma determinada organização numa universidade e que explica a sua vitalidade, a sua permanência ao longo dos tempos e, sobretudo, a sua possibilidade de renovação, ideia tão cara ao próprio desenvolvimento das sociedades humanas. Na verdade, nessa perspectiva, a Universidade só pode assegurar a sua função de formação de novos académicos ou mesmo de meros profissionais, através de um ensino crítico, plural e não dogmático, que se coloca a si mesmo constantemente em causa, aberto à investigação e à mudança permanentes. A autonomia universitária significa, assim, em primeiro lugar, “liberdade de ciência e incorporação dessa liberdade no processo formativo”, sendo necessário um enquadramento institucional concreto que as torne possíveis. O prestígio de uma universidade assenta sobretudo no prestígio dos seus professores. Ninguém questiona que a selecção do pessoal docente deva ser levada a cabo pela própria comunidade científica universitária. Apenas a comunidade científica está em condições de avaliar objectivamente os seus membros. Assim, a construção da autonomia universitária, enquanto objectivo a alcançar, reclama necessariamente uma capacidade de auto-organização e de auto-decisão das Universidades para diversos efeitos, nomeadamente para seleccionar adequadamente o seu próprio corpo docente (ob. cit., pág. 11 a 19)
Por seu turno, este Tribunal, através do Acórdão n.º 491/2008 (publicado no Diário da República, 2.ª Série, de 11 de Novembro de 2008), debruçou-se sobre o sentido constitucional da autonomia universitária nos seguintes termos (na parte que ora releva):
«[...]
8.5 (...)
A autonomia universitária afirmou-se ao longo dos tempos, essencial e prevalentemente, enquanto liberdade de pensar, de investigar e de ensinar. Mas uma liberdade institucionalizada, na comunidade social, ou exercida, de modo objectivo, por um concreto corpus científico.
Ao reconhecer às universidades, no n.º 2 do art.º 76.º, a autonomia estatutária, científica e pedagógica, administrativa e financeira, a nossa Constituição não deixou de estar a recuperar o acervo axiológico-histórico que verdadeiramente as identifica: como instituições que praticam e assentam a sua actividade na liberdade de pensar e de investigar e que transmitem o conhecimento assim obtido aos estudantes universitários e à comunidade social.
(...)
Ora, a autonomia das universidades visa garantir, institucionalmente, o exercício dessa liberdade de investigação e de ensino, reconhecidos como direitos pessoais fundamentais.
Nesta medida, a universidade apresenta-se simultaneamente como instituição que se afirma na liberdade científica e na liberdade de ensinar o conhecimento assim obtido – no que se costuma designar por “liberdade de cátedra” –, como corpo, essencialmente constituído pelos “professores universitários” que exercem pessoalmente essa liberdade científica e de ensino e que transmitem o conhecimento, por si alcançado, aos alunos universitários.
(...)
No dizer de Tomás Ramón Fernández (La autonomía universitaria:ámbito y limites, Editorial Civitas, S.A., p. 46), perante idêntico quadro normativo da Constituição espanhola, a diferença “é que na Universidade se ensina e se investiga e para a aprendizagem e a investigação, que são a razão de ser deste particular serviço público, a liberdade é rigorosamente essencial. […]. Na Universidade ensina-se porque se investiga. […]. O específico da universidade, e o que a distingue das demais instituições integrantes do sistema educativo, é que é nela que se faz a Ciência, boa ou má, de um país, onde se produz, em consequência esse corpus científico em perpétuo fieri que as restantes instituições se limitam a transmitir e propagar de acordo com as orientações que os responsáveis do sistema importem. O professor universitário transmite, ao invés, aquilo que ele mesmo está aprendendo dia a dia, é por isso algo mais que um mero transmissor, é um sujeito activo do processo científico, cuja actuação como tal resulta em hipótese incompatível com a existência de quaisquer orientações, que se chegassem a impor-se desvirtuariam, pura e simplesmente, a sua função social, transladando automaticamente o seu próprio papel de autor daquelas”.
Essa liberdade científica ou de “cátedra”, ínsita no sentido da autonomia científica e pedagógica, reconhecida constitucionalmente às universidades, postula, de um lado, que o acesso à docência e à investigação universitária e a progressão na carreira sejam feitas, apenas, segundo o critério do mérito e da capacidade científica e pedagógica universitárias, e, do outro, que no processo dessa avaliação, os docentes universitários, enquanto agentes dessa liberdade científica, tenham necessariamente de intervir.
A liberdade científica, pressuposta pela autonomia científica das universidades, não pode deixar, assim, de excluir tanto as intervenções “vindas de fora” que tenham como efeito a limitação no exercício dessa liberdade científica, como as próprias intervenções “vindas de dentro susceptíveis de produzir idêntica limitação” (Tomás Ramón Fernández, ob. cit., p. 52).”
A importância das referidas funções crítica e formativa das Universidades no desenvolvimento das sociedades encontra-se suficientemente plasmada no artigo 11.º, n.º 3, da Lei de Bases do Sistema Educativo – aprovada pela Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, na redacção resultante da Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto – que dispõe que “o ensino universitário, orientado por uma constante perspectiva de promoção de investigação e de criação do saber, visa assegurar uma sólida preparação científica e cultural e proporcionar uma formação técnica que habilite para o exercício de actividades profissionais e culturais e fomente o desenvolvimento das capacidades de concepção, de inovação e de análise crítica”.
Assim, com interesse para o caso sob análise, importa concluir que, em princípio, haverá inconstitucionalidade material por violação da autonomia universitária, isto é da liberdade de cátedra, se o legislador ordinário determinar que o corpo docente universitário não é seleccionado pela própria comunidade científica segundo os critérios do mérito e da capacidade científica e pedagógica por aquela definidos.
2.6. Confronto da interpretação normativa sob fiscalização com o princípio da autonomia universitária
Como já se viu atrás, a regra constitucional do concurso prescrita para a Administração Pública foi também adoptada pelo ECDU em matéria de recrutamento de professores catedráticos.
Contudo, o tribunal a quo entendeu, face à legislação aplicável ao concurso em causa, que as garantias do concurso público previstas no artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 204/98, têm de ser igualmente respeitadas nos concursos de provimento de professores catedráticos.
A justiça constitucional portuguesa já se pronunciou positivamente sobre a incidência do direito fundamental de acesso aos cargos públicos em matéria de progressão na carreira docente universitária.
No citado Acórdão n.º 491/2008, o Tribunal Constitucional entendeu nomeadamente, com relevância para o caso sob análise:
«[...]
8.5.
(...)
O direito fundamental de acesso aos cargos públicos em condições de igualdade e de liberdade, consagrado no n.º 2 do art.º 47.º da Constituição, vale, por inteiro, também, no acesso à docência e nos concursos previstos para a progressão na carreira universitária.
Ora, não pode esquecer-se que o Tribunal Constitucional tem, a respeito do art.º 47.º da Constituição, uma vasta jurisprudência onde afirma que o acesso à função pública (e a progressão na mesma) compreende o direito de nenhum cidadão ser excluído da possibilidade de acesso, seja à função pública em geral, seja a uma determinada função em particular, por outro motivo que não seja a falta dos requisitos adequados à função (v. g. idade, habilitações académicas e profissionais); o respeito pela igualdade e liberdade, não podendo haver discriminação nem diferenciações de tratamento baseadas em factores irrelevantes, nem, por outro lado, regimes de constrição atentatórios da liberdade e, por fim, a obrigatoriedade da adopção da regra do concurso como forma normal de provimento de lugares, desde logo de ingresso, devendo ser devidamente justificados os casos de provimento de lugares sem concurso (cf., entre muitos, os Acórdãos n.ºs n.º 53/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pág. 303 e segs; 371/89, disponível em www.tribunalconstitucional.pt; 683/99, publicado no Diário da República II Série, n.º 28, de 3 de Fevereiro de 2000; 368/00, publicado no Diário da República I Série-A, n.º 277, de 30 de Novembro de 2000, pág. 6886; 406/2003 e 61/04, estes disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A propósito de um caso relativo à progressão na carreira, escreveu-se no referido Acórdão n.º 371/89 o seguinte, cuja bondade, aqui, se reafirma:
”Na óptica deste preceito constitucional, o princípio da igualdade, quer ao nível da liberdade de escolha de profissão quer ao nível do direito de acesso à função pública e de progressão dentro da respectiva carreira, é perfeitamente compatível, nestes domínios, com uma preferência, objectivamente definida, em favor dos mais habilitados e capazes. Mais: tal preferência, alicerçada numa maior habilitação e capacidade profissional, é constitucionalmente considerada, nestas particulares situações, não como um factor de discriminação mas antes como uma garantia do próprio princípio da igualdade.
E compreende-se que assim haja de ser, pois que, se é exacto que os homens, enquanto homens, têm algo em comum, naturalmente decorrente da sua própria dignidade como pessoas humanas, devendo, em consequência, ser igualmente tratados, designadamente pelo legislador, nos limites desse elemento comum, não menos exacto é que há elementos de diferenciação que, pela sua razoabilidade objectiva, postulam indubitavelmente uma correspondente diferenciação normativa. Um desses elementos de diferenciação, justificativo de um desigual tratamento legislativo ao nível das respectivas carreiras, é o da diversa habilitação e capacidade profissional de dois grupos de seres humanos, situação essa que a própria CRP, como se viu, declaradamente reconhece e protege”.
Deste modo, a igualdade, no acesso à docência e à progressão da carreira, deve fazer-se, apenas, através de métodos de selecção em que relevem, apenas, o mérito e a capacidade científicas, em provas abertas a todos aqueles que, ao tempo, se possam a elas apresentar.
É claro que esses métodos podem ser os mais diversos.
Constituindo a autonomia um atributo de todas as universidades – donde ter, simultaneamente, um carácter de direito pessoal e de direito institucional colectivo (do conjunto das universidades) – não pode deixar de reconhecer-se, ao legislador ordinário, a competência e a discricionariedade constitutivas para conformar um método de carácter geral que “com carácter geral, também, garanta a todos a igualdade de chance e a confrontação pública dos seus respectivos méritos e capacidades” (referindo-se ao respectivos sistemas, cf. Tomás Ramón Fernández, Op. cit., p. 59 e Giuseppi, A. e Op. cit., .p. 69).
Essa “confrontação” pressupõe o carácter aberto de toda a forma de acesso e de progressão na carreira universitária, sob pena de claudicar o princípio da liberdade científica e de “liberdade de cátedra” ou seja, não só do mérito absoluto, como do mérito relativo.».
Paralelamente, há muito que a doutrina especializada em matéria de emprego público vem defendendo que a garantia constitucional de igualdade no acesso à função pública, densificada nas várias alíneas do n.º 2, do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 204/98, é aplicável a todos os concursos, nomeadamente ao recrutamento específico do pessoal dos corpos especiais, incluindo os candidatos às vagas de professor catedrático (vide PAULO VEIGA E MOURA, ob. cit., pp. 97-98; mais recentemente, in “Comentários aos Estatutos das Carreiras de Docente do Ensino Universitário e Politécnico”, Coimbra Editora, 2009, pág. 98).
Importa porém apurar previamente, por economia de raciocínio, se a exigência procedimental da divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar e do sistema de classificação final, bem como a exigência da aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação, quando aplicadas a concursos de recrutamento de professores catedráticos, ofendem o direito fundamental à autonomia universitária-
Para o Recorrente, a autonomia universitária em matéria de recrutamento do corpo docente universitário já se encontra adequada e suficientemente densificada pelo legislador ordinário nas referidas normas do ECDU e, em conformidade com este entendimento, as exigências legais acrescidas de divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar e do sistema de classificação final, bem como a exigência da aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação, previstas no artigo 5.º, n.º 2, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n.º 204/98, quando aplicadas a concursos de recrutamento de professores catedráticos, violam a autonomia universitária.
No essencial, o Recorrente entende que “a avaliação do curriculum dos candidatos às vagas de professor catedrático tem de ser global e concreta, realizada através de uma avaliação pessoal dos candidatos, sendo impossível, na maioria das situações, submetê-los a uma grelha de classificação prévia e abstracta”, uma vez que “especificidades relacionadas com o âmbito do conhecimento científico e da liberdade criativa do corpo docente universitário traduzem-se numa diversidade incontrolável e imprevisível de curricula universitário e de actividades profissionais que reclamam o estabelecimento de regras próprias”.
Esta alegada impossibilidade de aplicação de métodos e critérios objectivos de avaliação, bem como a alegada impossibilidade de divulgação atempada dos métodos de selecção a utilizar e do sistema de classificação final, relativamente ao recrutamento de professores catedráticos, estão por demonstrar e, sobretudo, não devem ser confundidas com a questão da complexidade de avaliação curricular dos candidatos a professores catedráticos.
Aliás, as alegadas impossibilidades de objectivação do recrutamento dos professores catedráticos, a terem-se por demonstradas, seriam então necessariamente acompanhadas de outras consequências, bem mais desfavoráveis para os candidatos, nomeadamente a desnecessidade de fundamentação da própria avaliação e ordenação final dos candidatos.
Pelo contrário, quando uma Universidade procede à abertura de um concurso para provimento de vagas de professor catedrático num certo departamento, a mesma tem necessariamente de saber, nesse mesmo momento, independentemente das candidaturas que vierem a ser concretamente apresentadas, quais são os critérios objectivos que irá utilizar na avaliação dos candidatos, designadamente a importância relativa e absoluta desses critérios por referência ao mérito da obra científica, à capacidade de investigação e à actividade pedagógica já desenvolvida (v.g., a definição dos indicadores relevantes em matéria de progressão na carreira universitária, de publicação de trabalhos científicos ou didácticos, de direcção ou orientação de trabalhos de investigação, de formação ou orientação científica e pedagógica de docentes e investigadores, ou mesmo o estabelecimento de condições de preferência como a experiência numa determinada área científica).
A autonomia universitária – a liberdade de cátedra – não é ameaçada pela obrigação legal de definição e divulgação antecipada dos referidos critérios objectivos desde que seja a própria comunidade científica a fazê-lo livremente, sem quaisquer interferências externas. Em salvaguarda da liberdade de cátedra, a Universidade goza de uma margem de livre decisão, dir-se-ia quase total, na escolha dos critérios formais de avaliação dos candidatos a que ficará posteriormente vinculado o próprio júri do concurso e que permitirão explicar a decisão final de ordenação dos candidatos.
A liberdade de cátedra não é incompatível com o procedimento justo de recrutamento de professores catedráticos nos termos definidos pelo tribunal a quo, continuando a ser possível recortar um regime específico de recrutamento derivado da autonomia universitária e materialmente distinto daquele que é observado relativamente no recrutamentos dos funcionários públicos em geral, nomeadamente no recrutamento dos funcionários não docentes das universidades.
Pelo contrário, a divulgação antecipada e a aplicação final de métodos e critérios objectivos de avaliação pela própria Universidade reforçam a sua autonomia normativa, colocam os candidatos em pé de igualdade e asseguram a imparcialidade do júri do concurso em particular, tudo isto contribuindo para a selecção dos melhores candidatos.
Aliás, mais recentemente, o legislador ordinário acabou por consagrar, de forma mais incisiva, a força irradiante do aludido princípio da transparência no próprio diploma que regula a matéria do recrutamento de professores catedráticos. Efectivamente, nos termos do disposto no novo artigo 62.º-A, n.º 2, do ECDU – acrescentado pelo Decreto-Lei n.º 205/2009, de 31 de Agosto –, os critérios de selecção e de seriação são objecto de divulgação antecipada, os quais deverão ser aplicados na decisão do júri.
Do exposto resulta que o cumprimento das garantias previstas nas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 204/98, imposto pela interpretação sob fiscalização, não se traduz em qualquer ofensa ao princípio constitucional da autonomia universitária, pelo que, independentemente das mesmas poderem ou não resultar, no concurso para o lugar de professor catedrático universitário, de uma exigência do direito fundamental de acesso aos cargos públicos em condições de igualdade e de liberdade, consagrado no n.º 2, do artigo 47.º, da Constituição, elas serão sempre uma opção legítima do legislador.
Por essa razão deve este recurso ser julgado improcedente.
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Decisão
Nestes termos julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional pelo JÚRI DO CONCURSO PARA PROVIMENTO DE DOIS LUGARES DE PROFESSOR CATEDRÁTICO DO DEPARTAMENTO DE FÍSICA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, do acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, proferido nestes autos em 12 de Novembro de 2009.
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
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Lisboa, 17 de Junho de 2010
João Cura Mariano
Catarina Sarmento e Castro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos