Imprimir acórdão
Processo n.º 69/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – Relatório
1 – A. reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
no n.º 3 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual
versão (LTC), do despacho do Conselheiro relator, no Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), que decidiu não admitir o recurso de constitucionalidade interposto pela
reclamante do acórdão do mesmo STJ, de 5 de Novembro de 2009, que negou
provimento ao recurso interposto pela mesma recorrente de acórdão do Tribunal da
Relação do Porto.
2 – O despacho reclamado tem o seguinte teor:
«1. Notificada do acórdão de fls. 927, A. veio recorrer para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da manifesta falta de fundamento
do recurso, “na sua totalidade” e sustentou que, a não ser indeferido, lhe
deveria ser mantido o efeito meramente devolutivo.
2. A recorrente afirma ter “suscitado a questão da
inconstitucionalidade nas suas alegações de recurso apresentadas junto do
Tribunal da Relação do Porto bem como no Supremo Tribunal da Justiça e do seu
requerimento de fls. 893 junto aos autos” e define quais as questões que
pretende ver apreciadas.
O presente recurso não é, todavia, admissível.
O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas
interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70° da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que o Tribunal
Constitucional aprecie a conformidade constitucional de normas, ou de
interpretações normativas, que foram efectivamente aplicadas na decisão
recorrida, não obstante ter sido suscitada a sua inconstitucionalidade “durante
o processo” (al. b) citada), e não das próprias decisões que as apliquem. Assim
resulta da Constituição e da lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo
Tribunal (cfr. a título de exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96,
publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro
de 1995, 31 de Janeiro de 1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário que tais normas tenham sido aplicadas com o
sentido acusado de ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr.,
nomeadamente, os acórdãos nºs 313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da
República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de
1995 e de 10 de Maio de 1996); e que a inconstitucionalidade haja sido
“suscitada durante o processo” (citada al. b) do nº 1 do artigo 70°), como se
disse, o que significa que há-de ter sido colocada “de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este
estar obrigado a dela conhecer” (nº 2 do artigo 72° da Lei nº 28/82).
Para além disso, e como o Tribunal Constitucional também já observou
inúmeras vezes, o recurso de constitucionalidade tem natureza instrumental, o
que implica que é condição do conhecimento do respectivo objecto a possibilidade
de repercussão do julgamento que nele venha a ser efectuado na decisão recorrida
(ver, por exemplo, o acórdão deste Tribunal com o nº 463/94, publicado no Diário
da República, II Série, de 22 de Novembro de 1994).
Ora, no caso presente, verifica-se que:
a) – Não foi suscitada “durante o processo “, ou seja, nas alegações
de revista, a inconstitucionalidade de nenhuma norma contida no artigo 185° da
OTM (ponto 1) do requerimento de interposição de recurso);
b) – Nos pontos 2), 3) 4), 5), 6), 7) e 8) do requerimento de
interposição de recurso, a recorrente não define quaisquer normas, susceptíveis
de apreciação pelo Tribunal Constitucional; a recorrente antes manifesta
discordância com o conteúdo do que entende ter sido decidido pelo Supremo
Tribunal da Justiça.
Acresce que em relação aos mesmos pontos não foi suscitada “durante
o processo” – nem nas alegações da revista, nem no requerimento de fls. 893 –
nenhuma inconstitucionalidade normativa, o que toma inútil convidar a
recorrente, ao abrigo do disposto no nº 5 do artigo 75°-A da Lei nº 28/82, de 15
de Novembro, a indicar 28/82, de 15 de Novembro, a indicar quais as normas cuja
apreciação pretende.
E acresce ainda que:
– quanto ao ponto 2) – conceito de perigo – Não é exacto que o Supremo Tribunal
da Justiça tenha afirmado “expressamente (...) que «se não mostram
perspectivados ‘perigos de ordem psíquico psíquica’ resultantes do regresso da
menor», como se vê no respectivo ponto 7. O que o Supremo Tribunal da Justiça
observou foi que o acórdão recorrido fez essa afirmação e que, portanto, “não
tem pois cabimento afirmar que [o acórdão da Relação] desatendeu a «situação de
perigo efectivo em que incorre a criança (...)»“, como a recorrente tinha dito;
– quanto ao ponto 3), que não está provado “que ocorra o risco” em causa, como
se escreve no ponto 9. do acórdão;
– quanto ao ponto 4), que o Supremo Tribunal da Justiça nem apreciou a decisão
de não audição da menor, como resulta do ponto 10 do acórdão;
– quanto ao ponto 5), que não tem qualquer expressão no acórdão a “concepção
autoritária [de] poder paternal” (responsabilidades parentais) ou a “noção
restritiva de guarda” que a recorrente lhe atribui;
– quanto aos pontos 7) e 8), e como se observa no ponto 13. do acórdão, que “não
está em causa neste processo – nem poderia estar – nenhuma decisão sobre a
guarda da menor “, mas tão somente a garantia da “eficácia de uma decisão
judicial”.
c) No ponto 9), a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional
aprecie a “inconstitucionalidade da norma contida no art. 11°, n° 4 do
Regulamento (CE) n°2201/2003 do Conselho de 27-11-2003, a qual pressupõe que as
medidas adequadas a promover a segurança da criança têm de ser levadas a cabo
após o seu regresso “, norma que, em seu entender, viola o disposto no artigo
69° da Constituição.
Não curando agora de se tratar de uma norma constante de um
regulamento comunitário, e para além de não ter sido suscitada “durante o
processo” a sua inconstitucionalidade, a verdade é que tal norma não foi
aplicada no acórdão recorrido, como se verifica no respectivo ponto 9. Nenhuma
repercussão poderia assim no acórdão do Supremo Tribunal da Justiça ter uma
eventual apreciação.
3. Não sendo admissível o recurso, não se coloca a questão de saber
se deveria ser alterado o efeito – meramente devolutivo – que lhe é atribuído
pelo nº 1 do artigo 78° da Lei n°28/82, conjugado com o nº 1 do artigo 185° da
OTM.
4. Assim, não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional, interposto a
fls. 949. Lisboa, 10 de Dezembro de 2009».
3 – Fundamentando a sua reclamação, a reclamante discorre do
seguinte jeito:
«1°
Foi a recorrente notificada do despacho de não admissão do seu pedido de recurso
para o Tribunal Constitucional.
2°
No referido despacho alega o Venerando Supremo Tribunal de Justiça que a
Recorrente no requerimento de interposição de recurso solicitou apenas que fosse
apreciada a inconstitucionalidade da própria decisão proferida.
3°
Para além do mais, alegou que a Recorrente não suscitou durante o processo a
inconstitucionalidade.
No entanto, tal não corresponde à verdade.
Senão vejamos,
4º
A Recorrente não suscita a inconstitucionalidade da decisão recorrida.
5º
A Recorrente o que faz é suscitar a violação da lei e princípios fundamentais
decorrente do entendimento e da interpretação que os Tribunais “a quo” fizeram
de alguns conceitos e normas.
6°
É óbvio que tais interpretações influenciaram a decisão final, daí que a mesma
tenha de vir a ser reformulada – mas daqui só decorre o interesse processual do
presente recurso, porquanto se torna útil e relevante que o mesmo venha a ser
admitido.
7º
Em suma, a interpretação e aplicação das normas e conceitos questionadas pela
Recorrente, com o sentido que lhes foi imputado pelas decisões recorridas
(decisões do Tribunal de 1ª Instância, Tribunal da Relação e Supremo Tribunal de
Justiça – e não só deste último), viola a Lei fundamental – e é isso que se
pretende discutir em sede de alegações.
8°
Tentemos assim decompor, de forma simples e objectiva, aquilo que – em suma –
foi alegado pela Recorrente no seu requerimento de interposição de recurso:
No ponto 1) a Recorrente alegou a violação do superior interesse da criança
(implícito na Constituição Portuguesa através do art. 69° - artigo decorrente
dos arts 25° e 26° da CRP - e art. 2° da Declaração dos Direitos da Criança de
1959 e art. 3°, n.º 2 e 19° da Convenção dobre os Direitos da Criança) devido à
interpretação e aplicação que fizeram os Tribunais “a quo” da norma contida no
art. 185° da OTM. – vide ponto 1 do requerimento de interposição de recurso para
o tribunal constitucional a fls.. dos presentes autos.
No ponto 2) a Recorrente alegou a forma como foi, no decorrer de todo processo,
interpretado e aplicado o conceito de perigo – tendo esta interpretação desde o
inicio sido aquela que relevou mais para a decisão final, porquanto se tivesse o
conceito de perigo sido interpretado de forma constitucionalmente admissível a
decisão teria sido contrária àquela que foi proferida pelos Tribunais “a quo” –
vide ponto 2 do requerimento de interposição de recurso para o tribunal
constitucional a fls.. dos presentes autos onde se expõe de forma mais detalhada
o nosso entendimento quanto à forma como deveria ter sido interpretado o
conceito de perigo de forma a não serem violados os arts. 69° da CRP (artigo
decorrente dos arts 25° e 26° da CRP), art. 2° da Declaração dos Direitos da
Criança de 1959 e art. 3°, n.º 2 e 19° da Convenção sobre os Direitos da
Criança.
No ponto 3) a Recorrente alegou que, em consequência da interpretação que
reiteradamente fizeram os tribunais “a quo” quanto ao conceito de perigo, foram
também mal aplicados os art.s 11°, n.º 4 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do
Conselho de 27 de Novembro de 2003 e art. 13° al. b) da Convenção de Haia de
1980 sobre os aspectos civis do rapto de menores, tendo assim a aplicação destes
artigos violado o art. 69° da CRP (artigo decorrente dos arts 25° e 26° da CRP),
art. 2° da Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e art. 3°, n.º 2 e 19° da
Convenção sobre os Direitos da Criança. – vide ponto 3 do requerimento de
interposição de recurso para o tribunal constitucional a fls.. dos presentes
autos.
No ponto 4) a Recorrente alegou que desde o inicio do processo foi preterida a
audição obrigatória da criança, violando assim os Tribunais um direito basilar
da criança em causa, porquanto as normas que prevêem a obrigação de audição da
criança, ao admitirem que esta pode não ser ouvida devido à sua idade ou
imaturidade, tem de ser interpretada de maneira a que o Tribunal não possa
partir do princípio que a criança em questão não tem maturidade suficiente para
ser ouvida sem antes a conhecer, pois só a conhecendo é que poderá aferir do seu
grau efectivo de maturidade. A interpretação das normas sobre a audição da
criança devem assim ser interpretadas no sentido de que o tribunal tem o “ónus
de provar” o contrário, tem de demonstrar e fundamentar porque razão aquela
criança não deve ser ouvida, não remetendo somente para a sua idade ou grau de
maturidade.
Por outro lado, mesmo que a criança não tenha maturidade suficiente, o princípio
enunciado no art. 12° da Convenção sobre os direitos da criança assegura que as
suas intenções deverão ser transmitidas por um seu representante, pelo que não
interpretando assim o princípio da audição obrigatória da criança os Tribunais
violaram através destas sucessivas decisões o direito fundamental da criança em
ser ouvida sobre os processos que a ela digam respeito, violando desta forma o
art. 69° da CRP – vide ponto 4 do requerimento de interposição de recurso para o
tribunal constitucional a fls.. dos presentes autos.
No ponto 5) a Recorrente alegou a interpretação que foi dada ao conceito de
“guarda” no decurso das decisões recorridas, tendo este conceito sido
reiteradamente restringido aos direitos do pai, em detrimento dos direitos
fundamentais da criança em causa, violando assim o art. 69° (decorrente do 25° e
26° da CRP) e 36° da CRP – vide ponto 5 do requerimento de interposição de
recurso para o tribunal constitucional a fls.. dos presentes autos.
No ponto 6) a Recorrente alegou que foi violado o princípio da actualidade e o
princípio do inquisitório. Estando estes princípios subjacentes aos processos
desta natureza têm obrigatoriamente de ser levados em conta na ponderação da
decisão final. Só que na verdade estes princípios não foram de todo aplicados,
porquanto se tivessem sido devidamente aplicados não teriam violado o art. 69 da
CRP (decorre do 25 e 26° da CRP), art. 2° da DDC e arts. 30, n.º 2 e 19° da CDC
– vide requerimento de interposição de recurso para o tribunal constitucional a
fls.. dos presentes autos.
No ponto 7) a Recorrente alegou que decorrente da não aplicação do princípio do
inquisitório o Tribunal de 1ª Instância, o Tribunal da Relação, e o Supremo
decidiram contra a lei fundamental, por omitirem as formalidades que constam do
art. 8° g) da Convenção de Haia de 1980, em inequívoca violação do art. 69 da
CRP (decorre do 25 e 26° da CRP), 2° da DDC e 3°, n.º 2 e 19° da CDC – vide
ponto 7 do requerimento de interposição de recurso para o tribunal
constitucional a fls.. dos presentes autos.
No ponto 8) a Recorrente alega que foram violados os princípios básicos do
Superior Interesse da Criança e da Figura primária de referência na
interpretação que foi dada ao art. 1411°, n.º 2 do CPC. Estes princípios básicos
encontram resguardo no art. 69° da CRP (aqui decorrente dos arts 17º, 18° e 25
da CRP) – vide ponto 8 do requerimento de interposição de recurso para o
tribunal constitucional a fls.. dos presentes autos.
No ponto 9) a Recorrente alega a inconstitucionalidade da norma contida no art.
11°, n.º 4 do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27-11-2003 tal como
foi interpretada pelos Tribunais “a quo”, em clara violação do que decorre do
art. 69° da CRP –vide ponto 9 do requerimento de interposição de recurso para o
tribunal constitucional a fls.. dos presentes autos.
Por outro lado,
9°
As interpretações inconstitucionais dos conceitos, princípios e normas acima
invocados foram efectivamente aplicados nas decisões recorridas, tanto pelo
Tribunal da Relação como pela 1ª Instância e pelo Supremo Tribunal de Justiça.
10°
Desde sempre, no decorrer de todo o processo, a Recorrente invocou tais
inconstitucionalidades, no entanto nunca as mesmas foram atendidas pelos
Tribunais “a quo”, apesar de constarem de forma clara e perceptível das suas
peças processuais – conforme facilmente se constata através de uma leitura
atempada das mesmas.
11º
A título de exemplo veja-se que estas questões foram suscitadas no recurso
intentado pela Recorrente no Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente através
dos artigos 60º, 61º, 63°, 64º, 66°, 67°, 70° 71º, 73°, 76°, 78°, 79º, 81°, 82°,
88°, 89°, 90°, 100°, 101°, 102°, 126°, 127°, 128°, 143º.
12°
Mas mais se pode ler através do recurso interposto para o Tribunal da Relação do
Porto e no requerimento de fls. 893 dos presentes autos,
13°
Tudo o que vai de encontro àquilo que se volta a afirmar no requerimento de
interposição de recurso para o este Tribunal Constitucional como fundamento e
admissibilidade do recurso.
14°
A Recorrente, nas suas peças processuais anteriores e no próprio requerimento de
interposição de recurso já vem indicando qual a interpretação que julga dever
ser de maneira a que possa ser reformular a decisão, e para que os respectivos
destinatários possam saber com precisão o sentido que não pode ser usado por ser
constitucionalmente inadmissível.
15º
Pelo que o presente recurso de constitucionalidade tem de ser admitido, com
vista a que possa vir a influenciar a questão de fundo do processo em causa e
fazer-se assim a devida justiça.
******
NESTES TERMOS E NOS MAIS QUE V.AS EX.AS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, Requer se dignem
admitir o presente Recurso, ao abrigo do art. 70°, n.º 1, al. b) da LTC, com
efeitos suspensivos de acordo com o disposto no art. 78, n.º 5 da LTC a
contrario sensu (conforme se requereu no requerimento de interposição de
recurso), notificando a Recorrente nos termos do art. 79° da LTC com vista à
apresentação das suas alegações».
4 – O Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal Constitucional,
pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação.
B – Fundamentação
5 – O despacho reclamado entendeu que, não sendo admissível o
recurso, não havia que fixar-lhe o efeito, se suspensivo ou devolutivo, sendo
que este é o que decorre da conjugação do disposto nos artigos 78.º, n.º 1, da
LTC, com o artigo 185.º, n.º 1, da Organização Tutelar de Menores (OTM). E assim
é, na verdade: a questão da fixação do efeito do recurso apenas se pode colocar
em relação a recurso que seja admitido, pois visa estabelecer a eficácia
imediata ou não dos efeitos estatuídos na Ordem Jurídica pela decisão judicial
que fique sob censura do tribunal ad quem.
Deste modo, trata-se de questão cuja abordagem também aqui só terá
sentido se a reclamação for deferida.
6 – O despacho reclamado abona-se numa fundamentação que
inteiramente se acompanha, não se vislumbrando qualquer utilidade em a adensar,
face à sua clareza.
No recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, o único
julgamento que o Tribunal Constitucional faz é o da validade constitucional da
norma jurídica impugnada de cuja concreta aplicação tenha resultado a estatuição
judiciária do caso (a decisão do caso), estando esse recurso subordinado a
pressupostos ou requisitos de admissibilidade, sendo que, no caso concreto, não
ocorrem os analisados pela decisão ora reclamada.
Na verdade, estabelecem os artigos 280º, n.º 1, al. b), da CRP e
70º, n.º1, al. b), da LTC que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de
decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo.
Segundo a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal,
constituem pressupostos específicos do recurso interposto ao abrigo destes
preceitos que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie tenha constituído a ratio decidendi da decisão ou o
fundamento normativo do seu próprio conteúdo, nisso se traduzindo a aplicação em
concreto da norma, e que a questão de inconstitucionalidade tenha sido suscitada
em tempo e por modo funcionalmente adequado para que o tribunal recorrido
pudesse conhecer dela.
A exigência daquele requisito encontra a sua razão de ser na própria
natureza da função jurisdicional (aqui constitucional), dado que lhe cumpre
apenas conhecer e decidir de controvérsias concretas e não de situações apenas
académicas: se a norma cuja validade constitucional se questiona não serviu de
fundamento à decisão, nunca a pronúncia sobre a sua eventual
inconstitucionalidade poderia ter quaisquer reflexos jurídicos sobre a decisão,
permanecendo-lhe estranha.
Já relativamente ao ónus de suscitação, a questão tem que vem com o
sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade das normas que a nossa
Lei Fundamental adoptou, de controlo difuso por via do recurso.
Como nota José Manuel M. Cardoso da Costa (A jurisdição
constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, p. 40), «quanto ao
controlo concreto – ao controlo incidental da constitucionalidade (…), no
decurso de um processo judicial, de uma norma nele aplicável – não cabe o mesmo,
em primeira linha, ao Tribunal Constitucional, mas ao tribunal do processo. Na
verdade, não obstante a instituição de uma jurisdição constitucional autónoma,
manteve-se na Constituição de 1976, mesmo depois de revista, o princípio, vindo
das Constituições anteriores (…), segundo o qual todos os tribunais podem e
devem, não só verificar a conformidade constitucional das normas aplicáveis aos
feitos em juízo, como recusar a aplicação das que considerarem inconstitucionais
(…). Este allgemeinen richterlichen Prüfungs - und Verwerfungsrecht encontra-se
consagrado expressamente (…), e com o reconhecimento dele a Constituição vigente
permanece fiel ao princípio, tradicional e característico do direito
constitucional português, do “acesso” directo dos tribunais à Constituição (…).
Quando, porém, se trate de recurso de decisão de aplicação de uma norma (…) é
ainda necessário que a questão da inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo, em consequência do que o juiz tomou posição sobre ela (…).
Compreende-se, na verdade, que a invocação da inconstitucionalidade unicamente
ex post factum (depois de proferida a decisão) não seja suficiente para abrir o
recurso para o Tribunal Constitucional (sob pena, além do mais, de se converter
num mero expediente processual dilatório)».
Torna-se, pois, necessário que a questão de inconstitucionalidade
tenha sido suscitada durante o processo. A suscitação durante o processo tem
sido entendida, de forma reiterada pelo Tribunal, como sendo a efectuada em
momento funcionalmente adequado, ou seja, em que o tribunal recorrido pudesse
dela conhecer por não estar esgotado o seu poder jurisdicional.
É evidente a razão de ser deste entendimento: o que se visa é que o
tribunal recorrido seja colocado perante a questão da validade da norma que
convoca como fundamento da decisão recorrida e que o Tribunal Constitucional que
conhece da questão por via de recurso, não assuma uma posição de substituição à
instância recorrida, de conhecimento da questão de constitucionalidade fora da
via de recurso.
É por isso que se entende que não constituem já momentos
processualmente idóneos aqueles que são abrangidos pelos incidentes de arguição
de nulidades, pedidos de aclaração e de reforma, dado terem por escopo não a
obtenção de decisão com aplicação da norma, mas a sua anulação, esclarecimento
ou modificação, com base em questão nova sobre a qual o tribunal não se poderia
ter pronunciado (cf., entre muitos outros, os acórdãos n.º 496/99, publicado no
Diário da República II Série, de 17 de Julho de 1996, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 33.º vol., p. 663; n.º 374/00, publicado no Diário da República
II Série, de 13 de Julho de 2000, BMJ 499.º, p. 77, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 47.º vol., p.713; n.º 674/99, publicado no Diário da República
II Série, de 25 de Fevereiro de 2000, BMJ 492.º, p. 62, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 45.º vol., p.559; n.º 155/00, publicado no Diário da República
II Série, de 9 de Outubro de 2000, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 46.º
vol., p. 821).
Excepção a tal regra são apenas aquelas hipóteses ditas de
excepcionais em que o recorrente é confrontado com a utilização insólita e
imprevisível por parte da decisão da norma, ou seja, naqueles casos em que seria
desrazoável e inadequado exigir do interessado um prévio juízo de prognose
relativo a tal aplicação em termos de se antecipar ao proferimento da decisão,
suscitando antecipadamente assim a questão de inconstitucionalidade (cf., entre
outros, os acórdãos n.º 489/94, publicado no Diário da República II Série, de 16
de Dezembro de 1994, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28.º, p. 415; n.º
310/00, publicado no Diário da República II Série, 17 de Outubro de 2000, e
Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., p.853 e n.º 120/02, publicado no
Diário da República II Série, de 15 de Maio de 2002, e Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 52.º, p. 575).
Mas o ónus de suscitação da constitucionalidade durante o processo
tem ainda uma outra vertente. É que a questão de constitucionalidade da norma
cuja apreciação se requer ao Tribunal Constitucional por via do recurso tem de
ser colocada ao tribunal recorrido em termos de este saber que tem que apreciar
e decidir essa concreta questão de constitucionalidade, ou seja, que a questão
seja colocada ao tribunal recorrido em termos perceptíveis (cf., acórdão n.º
178/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., p. 1118).
A este respeito, escreveu-se no acórdão n.º 560/94 (publicado no Diário da
República II Série, de 10 de Janeiro de 1995) que «a exigência de um cabal
cumprimento do ónus de suscitação atempada - e processualmente adequada - da
questão de constitucionalidade não é [...] “uma mera questão de forma
secundária”. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal
recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o
Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame da
questão (e não a um primeiro julgamento de tal questão».
Deste modo, a questão de constitucionalidade tem de ser colocada ao
tribunal recorrido em termos de este saber que tem essa concreta questão de
constitucionalidade para resolver.
Donde resulta que o questionante tenha de colocar, em termos
perceptíveis, qual a concreta questão de normatividade jurídica cuja validade
constitucional controverte. E note-se que os termos em que essa questão é
colocada se tornam verdadeiramente essenciais na perspectiva do recurso de
constitucionalidade para o Tribunal Constitucional.
É que se é certo que este pode conhecer da questão de
inconstitucionalidade normativa, já não tem competência para conhecer da
inconstitucionalidade da decisão judicial em si própria. A violação directa das
normas e princípios constitucionais pela decisão judicial apenas pode ser
conhecida no plano dos recursos previstos na respectiva ordem de tribunais.
A decisão reclamada fez inteira aplicação desta doutrina, razão pela
qual merece ser confirmada.
7 – A reacção da reclamante só se compreende, por esta ter do
recurso de constitucionalidade uma concepção próxima dos recursos de instância
em que o tribunal ad quem sindica (aliás, oficiosamente até) a correcção da
determinação do direito infraconstitucional aplicado pela decisão recorrida e,
em alguns casos, até do julgamento probatório com base no qual se fixou a
matéria factual da causa.
É, aliás, dentro dessa concepção que a reclamante se continua a
mover como decorre das suas afirmações feitas logo nos artigos 5.º a 7.º do
articulado da reclamação, que aqui se relembram:
“5º
A Recorrente o que faz é suscitar a violação da lei e princípios fundamentais
decorrente do entendimento e da interpretação que os Tribunais “a quo” fizeram
de alguns conceitos e normas.
6°
É óbvio que tais interpretações influenciaram a decisão final, daí que a mesma
tenha de vir a ser reformulada – mas daqui só decorre o interesse processual do
presente recurso, porquanto se torna útil e relevante que o mesmo venha a ser
admitido.
7º
Em suma, a interpretação e aplicação das normas e conceitos questionadas pela
Recorrente, com o sentido que lhes foi imputado pelas decisões recorridas
(decisões do Tribunal de 1ª Instância, Tribunal da Relação e Supremo Tribunal de
Justiça – e não só deste último), viola a Lei fundamental – e é isso que se
pretende discutir em sede de alegações”.
C – Decisão
8 – Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional
decide indeferir a reclamação e condenar a reclamante nas custas, fixando a taxa
de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 14/04/2010
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos