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Processo nº 359/10
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 21 de Abril de 2010.
2. Em 18 de Maio de 2010, foi proferida decisão sumária, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, pela qual se entendeu não tomar conhecimento do objecto do recurso, com o seguinte fundamento:
«Constitui requisito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação é requerida (artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC).
O recorrente requer a apreciação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não ser necessário um exame crítico argumentativo, por parte do juiz, perante os argumentos em confronto.
Admitindo que este enunciado não contraria o carácter normativo do recurso de constitucionalidade, é de concluir, porém, que o Tribunal da Relação de Coimbra não interpretou e aplicou aquele preceito legal na interpretação especificada pelo recorrente. Atendendo ao objecto do acórdão recorrido, o Tribunal da Relação aplicou, como razão de decidir, norma atinente ao regime da nulidade da sentença por falta de fundamentação. Interpretou e aplicou o artigo 379º, nº 1, do Código de Processo Penal, ainda que por referência ao artigo 374º, nº 2, do mesmo Código. Esta disposição legal, por si só, foi aplicada no acórdão de 17 de Março de 2010, cuja nulidade foi depois arguida.
Não se podendo dar como verificado um dos requisitos do recurso interposto, o Tribunal não pode tomar conhecimento do objecto do mesmo, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)»
3. Notificado desta decisão, o recorrente vem agora requerer que seja proferido acórdão – ou seja, vem reclamar, ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da LTC – com a seguinte fundamentação:
«1. A Ex.ma Conselheira Relatora enquadrou a decisão no âmbito e alcance de uma contrariedade ao art.º 70.º/1/b LTC que institui, como requisito do recurso, a aplicação pelo tribunal recorrido como ratio decidendi da norma cuja apreciação é requerida.
2. De vez, considerou que o recorrente tinha requerido a apreciação da constitucionalidade do art.º 374.º/2 CPP, interpretado no sentido de não ser necessário, na fundamentação das sentenças, um exame crítico argumentativo, por parte do juiz, perante os argumentos das partes em confronto.
3. Na sequência, para o indeferimento, afirmou que o tribunal recorrido não tinha aplicado o art.º 374.º/2 CPP, mas o art.º 379.º/1 do mesmo diploma legal, ainda que por referência ao dito art.º 374.º/2.
4. manifestamente evidente, portanto, que o art.º 374.º/2 CPP foi norma aplicada na sentença recorrida.
5. Vejamos se o foi como ratio decidendi.
6. Tinha alegado o recorrente:
(i) Diz a Constituição da República, no art.º 205.º/1, que as decisões dos tribunais ... são fundamentadas na forma prevista na lei.
(ii) E, naturalmente, a lei regulamenta para as sentenças e acórdãos uma discussão dos argumentos jurídicos da causa e não aceita, pura e simplesmente, diktats, meras declarações catedráticas, conclusivas e sem demonstração.
(iii) Um estilo de motivação destes é, naturalmente, contra a Constituição: a Lei Fundamental acolheu, em revisão, como direito equiparado e, portanto, sob o regime do art.º 17.º e 18.º/1 CRP, a fundamentação das sentenças judiciais, após longo debate doutrinário e a publicação pela Universidade de Coimbra de um artigo de M. Taruffo, defendendo a transparência dos actos dos juízes, na ordem lógico-dedutiva teórica e das presunções sob os hábitos da racionalidade comum, aquando dos julgamentos da matéria de facto.
(iv) Em suma, a matriz constitucional da fundamentação das sentenças é de uma racionalidade anti-arbitrária dirigida ao convencimento do auditório universal ou universalizável.
(v) E a infracção deste programa, aceite, por exemplo, sem qualquer dúvida, na jurisdição administrativa e fiscal (…) põe em causa directamente o arco normativa da Constituição da República já citado – art.ºs 17.º, 18.º/1 e 205.º/1.
(vi) Ora, a fundamentação do Acórdão que negou a recusa do Juiz Presidente do Tribunal de Júri, neste caso, releva, precisamente, de um ponto de vista contrário ao que ficou exposto: é arbitrária, irracional e desarrimada da lógica jurídica e comum,
(vii) Diz, na verdade, a decisão que o Juiz recusado nunca deixou de se referir apenas a «individuo», tanto que cometeu o lapso de se referir ao arguido. mas logo o corrigiu;
(viii) Diz que «o Juiz Presidente... denota um total descomprometimento com qualquer juízo pré-concebido contra o arguido, sem mais;
(ix) Diz que «inexiste qualquer fundamento, muito menos sério e grave, para que o incidente tivesse sido suscitado», sem mais;
(x) Acrescenta – «de resto parece irrepreensível o modo... como formulou os seus pedidos de esclarecimento», sem mais;
(xi) Concluiu – «lançar de mão do incidente é assim injustificado, antes sugere não passar de manobra dilatória», sem mais;
(xii) E «a suspeição levantada., e de um modo genérico contra o tribunal, carece de justificação plausível, tendo claro cariz artificial», sem mais;
(xiii) Remata – «não houve qualquer pergunta ou qualquer asserção que sugira... uma nítida estrutura decisória ou que encerrasse já um apontamento sobre algum tipo de decisão factual», sem mais.
7.Tratava-se em tudo de argumentos arbitrários, não sustentados em discussão prévia que tivesse contrariado os pontos de vista do recusante, expressões catedráticas de um suposto saber da causa, inquestionável.
8. Os argumentos do Acórdão invertiam a lógica normativa decisória, abrindo pelo pre-texto da norma, para concluir de base, quando deveria ter sido inverso o raciocínio do Tribunal.
9. Por tudo isto, não pode minguem, de modo nenhum, ficar convencido, seja o arguido, seja qualquer interessado, mesmo espectador da causa, de não ter havido qualquer pergunta ou qualquer asserção que não tivesse surgido de uma nítida e prévia estrutura decisória ou que não encerrasse, já, um apontamento sobre algum tipo de decisão factual.
10. E o recorrente concluiu: o Acórdão não está motivado de acordo com a Constituição e, na sequência, não cumpre também o programa legal de fundamentação das sentenças criminais, pedido pelo art.º 374.º/2 CPP, quanto a um exame crítico dos argumentos em confronto.
11. E um entendimento do art.º 374.º/2 CPP que elida do exame crítico argumentativo do juiz os argumentos em confronto e o restrinja, por exemplo, às provas apenas, determina que a norma seja contrária, em sentido próprio, aos art.ºs 17.º, 18.º/1 e 205.º/1 CRP.
12. Em suma:
(i) O recusante fundamentou ter o Juiz Presidente do Júri interrogado uma testemunha e uma Ex.ma Perita médica, partindo de prévio modelo que supõe uma prática pelo acusado (a quem pode ter-se referido como individuo – é indiferente) mimética da acusação, balizando as respostas dentro desse modelo fechado e não aberto a outras possibilidades de respostas diferenciadas;
(ii) O Acórdão recorrido limitou-se a transcrever, no relatório, os argumentos do recusante, do MP e do Juiz recusado – aliás, meras asserções piedosas de negativa, sem demonstrarem nada e contra-atacando num processo de intenção deselegante contra o arguido (incidente dilatório, na previsão do esgotamento do prazo de prisão preventiva);
(iii) Depois, no debate e argumentação final, tomou partido – é o termo – pela posição contrária à do recusante, sem poder convencer qualquer um, porque, em boa verdade, utilizou a tautologia de sim, porque sim.
13. Entretanto, a toda esta linha de argumentação respondeu o Tribunal de Segunda Instância: esta fundamentação e exame [da decisão judicial] parecem-nos suficientes já que os mesmos [exame e fundamentação] terão de ser aceites e aferidos por critérios de razoabilidade, e a nosso ver eles são de aceitar … em termos de exigência legal, já que permitem avaliar o processo lógico/mental que serviu de suporte à decisão do não deferimento do pedido de recusa [do juiz].
14. Por conseguinte, é muitíssimo claro que a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional faz aplicação do art.º 374.º/2 CPP como ratio decidendi e conferindo-lhe o alcance inconstitucional alegado pelo recorrente.
15. Assim, não terá razão o despacho de que agora o recorrente reclama para a Conferência, quando exclui, precisamente, não se ter verificado esse requisito do recurso interposto e, por isso não poder o Tribunal tomar conhecimento do objecto do mesmo».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
«1º
O Acórdão recorrido limitou-se a indeferir a arguição de nulidade do anterior Acórdão da Relação de Coimbra, que, por sua vez, indeferira o pedido de recusa do juiz apresentado pelo arguido.
2º
Na arguição de nulidade o recorrente invoca a falta de fundamentação.
3.º
A decisão recorrida diz que essa falta de fundamentação não se verifica e explica, pormenorizadamente, porquê.
4º
Naquela decisão nunca se diz expressamente, nem dela se extrai minimamente, que não “é necessário um exame crítico argumentativo por parte do juiz”, como afirma o recorrente no requerimento de interposição ao recurso para este Tribunal.
5º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso, face à não verificação de um dos requisitos do recurso interposto – a não aplicação pela decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma cuja apreciação foi requerida ao Tribunal, ou seja, o artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não ser necessário um exame crítico argumentativo, por parte do juiz, perante os argumentos em confronto.
Atento o respectivo objecto, a decisão recorrida – o acórdão de 21 de Abril de 2010 que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão de 17 de Março de 2010, mediante o qual tinha sido indeferido pedido de recusa de juiz – aplicou, como razão de decidir, norma atinente ao regime da nulidade da sentença por falta de fundamentação. Concretamente, norma contida no artigo 379º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal, uma vez que cabia ao Tribunal da Relação de Coimbra, no segundo acórdão, decidir se a decisão anterior era ou não nula por não conter as menções referidas no nº 2 do artigo 374º do mesmo Código.
Esta conclusão em nada é contrariada na presente reclamação, uma vez que o reclamante recorre ao acórdão de 17 de Março de 2010 para sustentar a verificação do requisito em falta (cf., especialmente pontos 6., (vi.) a (xiii), 10. e 12., (ii)). Esta argumentação é, de resto, significativa de que foi neste acórdão – e não no recorrido nos presentes autos, no de 21 de Abril de 2010 – que foi aplicada a disposição legal à qual reporta a norma cuja apreciação requereu a este Tribunal.
Importa, pois, confirmar a decisão de não conhecimento do objecto do recurso.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Junho de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão