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Processo n.º 821/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1. No 2.º Juízo de Tribunal Judicial de Lousada, por sentença proferida em 15 de
Julho foi complementada a sentença que declarou a insolvência da sociedade
comercial denominada “A., Lda.”, tendo sido decidido desaplicar, com fundamento
em inconstitucionalidade, a norma do artigo 39.º n.º 3 do Código da Insolvência
e da Recuperação de Empresas, interpretada no sentido de que o requerente do
complemento da sentença, quando careça de meios económicos e beneficiar do apoio
judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o
processo, se não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a
garantia bancária alternativa, não pode requerer aquele complemento da sentença;
tal violaria, em suma, a garantia de acesso ao direito consagrada no artigo 20.º
n.º 1 da Constituição.
Diz-se na decisão:
«Nos presentes autos foi proferida sentença que declarou a insolvência da
sociedade A., Lda.
Atempadamente, vieram as requerentes B. e C. requerer o complemento da sentença
e argumentar que, tendo pedido que lhe fosse concedido o beneficio do apoio
judiciário e sendo credora de importâncias relativas à cessação do contrato de
trabalho padece de manifesta carência económica, pelo que deveria ser dispensada
da realização do montante relativo às custas e dívidas.
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 39. º, nº 1, do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18/3, sob
a epígrafe «Insuficiência da massa insolvente», “concluindo o juiz que o
património do devedor não é presumivelmente suficiente para a satisfação das
custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente e não estando
essa satisfação por outra forma garantida, faz menção desse facto na sentença de
declaração da insolvência e dá nela cumprimento apenas ao preceituado nas
alíneas a) a d) e h) do artigo 36.º, declarando aberto o incidente de
qualificação com carácter limitado”.
No caso referido no número anterior, acrescenta o n.º 2 do mesmo preceito, na
respectiva al. a), “qualquer interessado pode pedir, no prazo de cinco dias, que
a sentença seja complementada com as restantes menções do artigo 36.º”.
Este art. 36.º enumera, nas suas diversas alíneas – a) a n) – os requisitos a
que deve obedecer a declaração de insolvência.
De entre essas diversas alíneas, refere a al. j) que o juiz deve designar prazo,
até 30 dias, para a reclamação de créditos.
Mas esta alínea j) está excluída da previsão do art. 39 º, em que se prevê a
abertura do incidente de qualificação com carácter limitado.
Embora o legislador o não tivesse afirmado e esclarecido convenientemente, tudo
leva a crer que, naquele art. 39.º se prevê uma declaração de insolvência
restrita, ou seja, uma insolvência menor ou com efeitos reduzidos ao próprio
processo onde é declarada.
A par da declaração de insolvência com carácter pleno, na qual o juiz dever
observar todos os ditames do citado art. 36.º, existe uma declaração de
insolvência com carácter restrito ou limitado, em que o juiz deve apenas mandar
observar os requisitos das alíneas a) a d) e h) do mesmo preceito.
Pode, todavia, esta declaração com carácter restrito vir a transformar-se em
declaração de insolvência com carácter pleno, caso algum interessado venha a
requerer que a sentença venha a ser complementada com as restantes menções do
art. 36.º.
Como se pode ler no preâmbulo do Dec. Lei n.º 53/2004, “uma vez que o processo
de insolvência tem por finalidade o pagamento, na medida em que ele seja ainda
possível, dos créditos da insolvência, a constatação de que a massa insolvente
não é sequer suficiente para fazer face às respectivas dívidas – aí
compreendidas, desde logo, as custas do processo e a remuneração do
administrador da insolvência — determina que o processo não prossiga após a
sentença de declaração de insolvência ou que seja mais tarde encerrado,
consoante a insuficiência da massa seja reconhecida antes ou depois da
declaração. Em ambos os casos, porém, prossegue sempre o incidente de
qualificação da insolvência, com tramitação e alcance mais mitigados “.
Se for requerido, quando a sentença declare aberto o incidente de qualificação
com carácter limitado, o complemento da sentença, deve o juiz dar cumprimento
integral ao art. 36.º, observando-se em seguida o disposto nos art.s 37.º e
38.º, sob as epígrafes «Notificação da sentença e citação» e «Publicidade e
registo», e prosseguindo com carácter pleno o incidente de qualificação da
insolvência (n.º 4 do citado art. 39. º).
Mas caso não seja requerido o complemento da sentença, acrescenta o n.º 7
daquele art. 39.º:
a) O devedor não fica privado dos poderes de administração e disposição do seu
património, nem se produzem quaisquer dos efeitos que normalmente correspondem à
declaração de insolvência, ao abrigo das normas deste Código;
b) O processo de insolvência é declarado findo logo que a sentença transite em
julgado, sem prejuízo da tramitação até final do incidente limitado de
qualificação da insolvência;
c) O administrador da insolvência limita a sua actividade à elaboração do
parecer a que se refere o n.º 2 do art. 188.º.
d) Após o respectivo trânsito em julgado, qualquer legitimado pode instaurar a
todo o tempo novo processo de insolvência, mas o prosseguimento dos autos
depende de que seja depositado à ordem do tribunal o montante que o juiz
razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das custas e das
dívidas previsíveis da massa insolvente, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5.
Ora, no caso presente, foi declarada a insolvência da sociedade Brisings e
declarado aberto o incidente de qualificação com carácter limitado, dando-se,
consequentemente, cumprimento somente às alíneas a) a d) e h) do art. 39.º do
CIRE.
Sucede que as Requerentes se apresentaram a requerer que a sentença que decretou
a insolvência fosse complementada com as restantes menções do art. 36.º visto
que nisso alegaram ter interesse.
O n.º 3 do citado art. 39.º exige, porém, ao requerente do complemento da
sentença o depósito à ordem do Tribunal do montante que o juiz razoavelmente
entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas e dívidas –
que são as custas do processo e as dívidas previsíveis da massa insolvente – ou
o caucionamento desse pagamento mediante garantia bancária, sendo o depósito
movimentado ou a caução accionada apenas depois de comprovada a efectiva
insuficiência da massa, e na medida dessa insuficiência.
As Requerentes comprovaram que pediram a concessão benefício do apoio judiciário
na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, e
requereram a dispensa do depósito e do caucionamento aludidos no citado n.º 3 do
art. 39.º, aduzindo que, se assim não fosse entendido, dado não possuírem meios
económicos para o efeito, ficariam impedidas de exercer o seu direito,
designadamente, não poderiam aceder aos benefícios a que tinha direito através
do Fundo de Garantia Salarial.
Ora, o fim por elas visado é a obtenção de documento comprovativo dos créditos
reclamados, indispensável à instrução do requerimento para o Fundo de Garantia
Salarial proceder ao pagamento dos créditos garantidos.
De acordo com o disposto no art. 380.º Código do Trabalho, “a garantia do
pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou
cessação, pertencentes ao trabalhador, que não possam ser pagos pelo empregador
por motivo de insolvência ou de situação económica difícil é assumida e
suportada pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação
especial”.
O art. 324º, al. a), da Lei n.º 3 5/2004, de 29/7, que regulamentou aquele art.
380.º estabelece que “o requerimento previsto no número anterior é instruído,
consoante as situações, com os seguintes meios de prova:
a) Certidão ou cópia autenticada comprovativa dos créditos reclamados pelo
trabalhador emitida pelo tribunal competente onde corre o processo de
insolvência (...)”.
Deste modo, o trabalhador, para poder beneficiar da garantia que o referido
Fundo proporciona, necessita que, no processo de insolvência, os seus créditos
possam ser reclamados. E, tendo a declarada insolvência sido, como foi,
qualificada com carácter limitado, o trabalhador vê-se na contingência de ter de
requerer a complementação da sentença com as restantes menções do art. 36.º do
CIRE, designadamente a fase de reclamação de créditos.
Mas o requerimento de complemento da sentença exige, como já foi dito, o
depósito do montante que o juiz especificar para garantir o pagamento das custas
e dívidas ou o respectivo caucionamento, mediante garantia bancária.
Ora, se o trabalhador não tem meios económicos para fazer tal depósito ou
prestar a garantia bancária correspondente, fica impedido de aceder aos
benefícios a que tem direito por via do Fundo de Garantia Salarial.
Tal situação, “afrontaria flagrantemente o princípio ínsito no art. 20.º, n.º 1,
da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “a todos é assegurado o
acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses
legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de
meios económicos”.
O direito de acção é pacificamente entendido como um “direito público”
totalmente independente da existência da situação jurídica para a qual se pede a
tutela jurídica, “afirmando-se” como existente: ainda que ela na realidade não
exista, a afirmação basta à existência do processo, com o consequente direito à
emissão da sentença (Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 1996,
79).
Quer para o autor, quer para o réu, o direito ao acesso aos tribunais engloba a
inexistência de entraves económicos ao seu exercício.
Tal implica, designadamente, a concessão de apoio judiciário a quem dele careça
e a proibição de disposições da lei ordinária que limitem o direito à jurisdição
por não satisfação de obrigações alheias ao objecto do processo (idem, 91).
Destarte, entendemos que a norma constante do n.º 3 do art. 39.º do CIRE, quando
interpretada no sentido de que o requerente do complemento da sentença, quando
careça de meios económicos, designadamente, por beneficiar do apoio judiciário
na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo, se
não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a garantia bancária
alternativa, não pode requerer aquele complemento da sentença, viola o princípio
constitucional do acesso ao direito consagrado no citado art. 20.º n.º 1, da
Constituição.
Por isso, ocorrendo essa falta de meios, como no caso presente ocorre, não deve
o tribunal aplicar aquela norma” (cfr. o Ac. da Relação do Porto de 26 de Junho
de 2007, relatado pelo Sr. Desembargador Emídio José da Costa, in www.dgsi.pt).
Já assim se havia entendido no Ac. da Relação do Porto de 08 de Junho de 2006,
relatado pelo Sr. Desembargador Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos, no qual
se havia entendido que caso a Requerente beneficiasse de apoio judiciário,
sempre estaria ultrapassado o problema colocado quanto a custas, dado que aquele
apoio a dispensaria desse depósito, mas que a questão continuaria premente
quanto ao depósito das dívidas previsíveis.
No caso vertente, as requerentes comprovaram que foram trabalhadoras da
insolvente e que se encontram em situação de desemprego, tendo requerido a
concessão do benefício do apoio judiciário.
Assim, atenta a sua inconstitucionalidade, decido não aplicar o estatuído no
artigo 39. º, n.º 3 do CIRE, dispensando as Requerentes do depósito e
caucionamento ali referidos.
Notifique. [...]»
2. É desta decisão que o Ministério Público interpõe recurso obrigatório para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 70.º n.º 1 alínea a)
e 72.º n.ºs 1 alínea a) e 3 da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos
seguintes termos:
A Magistrada do Ministério Público nesta comarca, nos autos supra-referenciados,
não se conformando com o teor da sentença datada de 15/07/2009, no âmbito da
qual a Mm.ª Juiz recusou a aplicação do art. 39.º, n.º 3 do CIRE, considerando
esta norma inconstitucional por violação do disposto no art. 20.º, n.º 1 da CRP,
vem nos termos dos art. 70º, n.º 1, al. a) da Lei n.º
28/82 de 15/11, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 13-A/98 de
26/02, interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
Assim e por ter legitimidade e estar em tempo, requer se admita o presente
recurso obrigatório nos termos dos art. 72º, n.º 1, ai. a) e n.º 3, 75º e 75º-A,
da Lei n.º 28/82 de 15/11, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 1
3-A/98 de 26/02.
3. O recurso foi admitido. Já no Tribunal Constitucional a partes foram
convidadas a alegar.
O Ministério Público recorrente concluiu da seguinte forma a sua alegação:
1.º– A norma constante no n.º 3, do artigo 39º, do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 5 3/2004, de 18 de Março –
conjugada com o preceituado no artigo 324º, alínea a), da Lei nº 3 5/04, de 29
de Julho, que regulamentou o artigo 380º do Código de Trabalho – enquanto impõe
ao trabalhador que pretenda instaurar novo processo de insolvência (num caso em
que o anteriormente pendente terminou com a prolação de sentença
“simplificada”), para nele ver reconhecido o seu direito ao pagamento de
créditos laborais, a efectivar contra o Fundo de Garantia Salarial, o ónus de
depositar ou garantir o montante fixado pelo juiz, como condição do direito de
acção, mesmo nos casos de comprovada insuficiência económica —, colide com o
direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, afirmado pelo artigo
20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
2.º – Pelo que, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida.
Por seu turno, as recorridas B. e C. concluíram:
A) - As ora Recorridas, para poderem beneficiar da garantia que o referido Fundo
proporciona, necessitavam que, no processo de insolvência, os seus créditos
possam ser reclamados (vide art. 380.º do C.T. e 324º al. a) da L 34/2004 de
29/07)
B) - E tendo a declarada insolvência sido qualificada com carácter limitado, as
Recorridas tinham interesse em requerer a complementação da sentença com as
restantes menções do art. 36º do CIRE, designadamente a fase de reclamação de
créditos.
C) - Tendo as ora recorridas requerido junto da segurança social, a concessão de
apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça
inicial e demais encargos com o processo, requereram a dispensa de depósito e do
caucionamento aludidos no n.º 3 do art. 39º do CIRE, por insuficiência
económica.
D) - A norma constante do artigo mencionado na alínea anterior violaria o
princípio constitucional do acesso ao direito consagrado no art. 20.º, n.º 1 da
C.R.P. enquanto impõe às recorridas o ónus de depositar ou garantir o montante
fixado pelo juiz como condição do seu direito de acção.
E) - Sendo que o único objectivo das Recorridas com o complemento da sentença
foi a obtenção de documento comprovativo dos créditos reclamados, o qual se
mostra necessário para instruir o requerimento junto do Fundo de Garantia
Salarial.
F) - Pelo que deve confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela
decisão recorrida.
Nestes termos, e nos demais de direito que V/Exas. mui doutamente suprirão, deve
o presente recurso ser procedente e ser confirmada a decisão recorrida, com o
que se fará a mais lídima Justiça!
4. Em causa está, portanto, a norma constante do n.º 3 do artigo 39.º do CIRE,
quando interpretada no sentido de que o requerente do complemento da sentença,
quando careça de meios económicos e, designadamente, beneficiar do apoio
judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o
processo, se não depositar a quantia que o juiz especificar nem prestar a
garantia bancária alternativa, não pode requerer aquele complemento da sentença,
norma que, no entender da decisão recorrida, viola a garantia do acesso ao
direito consagrado no citado artigo 20.º n.º 1 da Constituição.
Na opinião do Ministério Público aqui recorrente, essa norma, enquanto impõe –
mesmo nos casos de comprovada insuficiência económica – ao trabalhador que
pretenda instaurar novo processo de insolvência para nele ver reconhecido o seu
direito ao pagamento de créditos laborais o ónus de depositar ou garantir o
montante fixado pelo juiz como condição do direito de acção colide com o direito
fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, afirmado pelo artigo 20.º nº 1
da Constituição.
Também as recorridas B. e C. afirmam o mesmo entendimento, pelo que a sentença
deveria ser confirmada neste ponto.
5. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar sobre questão
semelhante no Acórdão n.º 602/06 e na Decisão Sumária n.º 496/07 proferida,
todavia, antes da vigência da Lei nº 7/2009 de 12 de Fevereiro que aprovou o
novo Código de Trabalho (www.tribunalconstitucional.pt). Tal diploma revogou a
Lei n.º 35/2004 de 29 de Julho mas, por força do seu artigo 12.º n.º 6 alínea
o), continuaram em vigor os artigos 317.º a 326.º do anterior Regulamento do
Trabalho, aprovado pela Lei n.º 35/2004 de 29 de Julho, enquanto não for
publicada legislação especial sobre o Fundo de Garantia Salarial.
No citado Acórdão decidiu o Tribunal julgar inconstitucional, por violação do
n.º 1 do artigo 20.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º, ambos da
Constituição, a norma vertida no preceito da alínea d) do n.º 7 do artigo 39.º
do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 53/2004 de 18 de Março, quando interpretada no sentido de que “nos casos em
que foi proferida sentença nos termos do n.º 1 daquele artigo, a imposição, ao
trabalhador que não desfrute de condições económicas suficientes e que pretenda
instaurar novo processo de insolvência para efeitos de nele ser reconhecida a
reclamação do seu crédito por salários não pagos pela entidade insolvente, com
vista ao disposto na alínea a) do artigo 324.º da Lei nº 35/2004 de 29 de Julho
do depósito de um montante que o juiz razoavelmente entenda necessário para
garantir o pagamento das dívidas previsíveis da massa insolvente, não
contemplando o benefício de apoio judiciário a possibilidade de isenção desse
depósito.”
A norma ora em causa – artigo 39.º n.º 3 do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas – dispõe que “o requerente do complemento da sentença
deposita à ordem do tribunal o montante que o juiz especificar segundo o que
razoavelmente entenda necessário para garantir o pagamento das referidas custas
e dívidas, ou cauciona esse pagamento mediante garantia bancária, sendo o
depósito movimentado ou a caução accionada apenas depois de comprovada a
efectiva insuficiência da massa, e na medida dessa insuficiência”. Apesar de não
ser exactamente a mesma norma que então foi apreciada, é de entender que a
jurisprudência adoptada é transponível para o caso em presença, em que está em
causa um crédito laboral, que fundamenta um pedido ao Fundo de Garantia
Salarial, de que são titulares as trabalhadoras requerentes cuja situação
económica não lhes permitiu custear despesas processuais, pelo que tal exigência
representa um obstáculo inultrapassável da realização do “pressuposto de acção”
que o depósito ou a garantia constituem. Com efeito, por força dos artigos 1.º e
7.º, n.º 1 da Lei nº 7/2009 de 12 de Fevereiro, é aplicável à situação em apreço
o artigo 336.º do novo Código do Trabalho, que dispõe que “o pagamento de
créditos de trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação
ou cessação, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência
ou de situação económica difícil, é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial,
nos termos previstos em legislação específica”. O artigo 12.º n.º 6 alínea o) da
Lei nº 7/2009 de 12 de Fevereiro ressalvou a vigência da regulamentação
decorrente da Lei nº 35/2004, que se reportava ao artigo 380.º do anterior
Código do Trabalho, com igual redacção. Por força da regulamentação já aludida,
o requerimento do interessado ao Fundo de Garantia Salarial deve ser acompanhado
de certidão comprovativa dos créditos reclamados pelo trabalhador, emitida pelo
tribunal onde corre o processo de insolvência, nos termos do artigo 324.º alínea
a) da citada Lei nº 35/2004.
Escreveu-se no citado Acórdão n.º 602/06:
«[...] Com alguns pontos de contacto com a questão agora em apreço,
convocar-se-ão os Acórdãos deste Tribunal números 269/87, 345/87, 412/87, 30/88
e 417/89 (os dois primeiros publicados, respectivamente, no Diário da República,
II Série, de 3 de Setembro de 1987 e de 28 de Novembro de 1987, o terceiro
inédito, o quarto já atrás mencionado, o quinto publicados no mesmo jornal
oficial, II Série, de 15 de Setembro de 1989), arestos esses em que se postavam
em apreciação normativos de onde resultava a imposição do depósito prévio da
coima aos recorrentes que, pretendendo impugnar a sua aplicação, não desfrutavam
de meios económicos bastantes para proceder a tal depósito.
Assim, lê-se, a dado passo, no aludido Acórdão nº 30/88 que “ao arguido, pobre
de fortuna, não é possível ultrapassar a obrigação de depositar previamente a
coima (...)“ “mediante recurso ao instituto de assistência judiciária, de todo
inaplicável a situações deste tipo”, pelo que não se podia deixar “de concluir
pela inconstitucionalidade da norma em apreço, na parte em que obsta ao
seguimento do recurso judicial, quando o recorrente, por insuficiência de meios
económicos, não procede ao prévio depósito do quantitativo da coima” já que “o
reconhecimento do direito de recorrer aos tribunais seria meramente teórico se
não se garantisse que o direito à via judiciária não pode ser prejudicado pela
insuficiência de meios económicos”.
O raciocínio levado a efeito naqueles indicados Acórdãos é transponível para a
questão em análise, não se deixando de vincar que o «pressuposto de acção», que
funciona como um ónus sobre a «parte» que deseja, quer o «complemento» da
sentença «simplificada» decretadora da insolvência (e esse será o caso a que se
refere o nº 3 do artº 39º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa),
quer requerer novo processo de insolvência [o caso a que respeita a alínea d) do
nº 7 do mesmo artigo, que é o que agora nos importa], ónus esse que, em face da
norma em apreciação, impõe a adopção de comportamento necessário para o
exercício do direito de acção.
Ora, tendo em atenção o direito que resulta do nº 1 do artigo 20º da Lei
Fundamental, é patente que o normativo em causa, nos casos em que o interessado
desprovido de condições económicas que lhe permitam efectuar o depósito
garantístico do pagamento das custas e das dívidas previsíveis da massa
insolvente, pretenda levar a cabo o impulso processual com vista à obtenção de
uma decisão judicial comprovativa de que reclamou no processo de insolvência,
para, com essa comprovação, poder garantir o pagamento, pelo Fundo de Garantia
Salarial, dos seus salários, incumpridos pela entidade patronal declarada
insolvente, traduz uma solução excessiva, desadequada e limitadora, não só
daquele direito, como ainda daqueloutro consignado na alínea a) do nº 1 do
artigo 59º da Constituição.
Como tem dito este Tribunal (cfr., verbi gratia, o seu Acórdão nº 238/97 (In
Diário da República, II Série, de 14 de Maio de 1997), sempre que seja
postergada a defesa dos direitos dos particulares e, nomeadamente, o direito de
acção, que se materializa através de um processo, é violado o direito
fundamental de acesso aos tribunais.
É que, a especificidade procedimental imposta pela dita alínea d) do nº 7 do
artº 39º, dada a forma como se encontra concebida – e tendo em conta que o
sistema jurídico exige que o trabalhador, para efeitos de recebimento pelo Fundo
de Garantia Salarial dos seus salários não pagos pela entidade patronal
insolvente, demonstre ter reclamado esses créditos no processo de insolvência –
não permite àquele trabalhador, que seja economicamente desfavorecido, uma
concreta conformação na utilização de um regime processual que realize o seu
direito ou interesse na percepção daqueles salários (cfr., sobre a conformação
de regimes processuais por sorte a que sejam realizados direitos fundamentais, o
Acórdão deste Tribunal n.º 348/98, publicado no Diário da República, II Série,
de 30 de Novembro de 1998, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, Tomo I, 176, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, 91,
e Lopes do Rego, O Direito Fundamental de acesso aos tribunais, in Estudos sobre
a jurisprudência do Tribunal Constitucional, pág. 735, Lisboa, 1993).”
São estas as razões que o Tribunal Constitucional igualmente perfilha, no
presente caso.
6. Assim, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º e da alínea a)
do n.º 1 do artigo 59.º, ambos da Constituição, a norma do artigo 39.º n.º 3 do
Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, quando interpretada no
sentido de que o requerente do complemento da sentença, quando careça de meios
económicos e, designadamente, beneficiar do apoio judiciário na modalidade de
isenção da taxa de justiça e demais encargos com o processo, se não depositar a
quantia que o juiz especificar nem prestar a garantia bancária alternativa não
pode requerer aquele complemento de sentença.
b) Julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 3 de Março de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos