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Processo n.º 831/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Cantanhede, em que é
recorrente A., e recorrido B., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação da
constitucionalidade das normas «que se obtêm, pela interpretação, do artigo 12.°
da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho (define direitos dos utentes nas vias
rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários
principais e itinerários complementares) e, ainda, as constantes dos artigos 4.°
a 12.° da mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente visadas,
tenham relações sistemáticas de implicação.»
2. A recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«I - Quanto à matéria em discussão:
1ª No dia 31 de Outubro de 2007, o veículo ..-..-.., embateu num cão; houve
danos materiais, sendo demandada a concessionária A..
2ª Verificou-se que a auto-estrada estava devidamente vedada e que a A. fizera
as patrulhas regulamentares, nada tendo detectado de anormal.
3ª A 1.ª Instância entendeu que a A., enquanto Ré, não ilidira uma presunção de
culpa que, sobre ela, empenderia, condenando-a;
4ª Fazendo aplicação da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho, entretanto publicada,
entendeu o Tribunal a quo que a discussão sobre a responsabilidade da A. perdera
o interesse, condenando-a.
II— Quanto à Lei n°24/2007, de 18 de Julho:
5ª A A. é uma sociedade concessionária da construção, manutenção e exploração de
auto-estradas, caindo nos deveres previstos nas bases anexas ao Decreto-Lei n.°
247-C/2008, de 30 de Dezembro.
6ª Na sequência de obras de alargamento na A1 (auto — estrada do Norte), a
Assembleia da República aprovou a Resolução n.° 14/2004, de 31 de Janeiro (DR I
Série-A, N.° 137, DE 31-Jan.-2004, p. 550), na qual pede ao Governo a alteração
das bases da concessão, de modo a suspender as portagens nas vias em obras e a
melhor informar os utentes da sua ocorrência.
7ª Seguiram-se negociações entre o Governo e as concessionárias: inconclusivas,
por falta de disponibilidades orçamentais.
8ª Posto o que foram, no Parlamento, apresentados dois projectos de Lei:
Projecto n.° 145/X (PCP) e n.° 164/X (BE); veio a ser aprovado o primeiro
(Decreto n.°1 22/X), o qual deu azo à Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho,
destinada, no fundo, a conseguir, sem contrapartidas, o que não fora possível
pela negociação.
9ª A Lei n.° 24/2007 veio, no essencial, fixar um esquema mais denso e mais
gravoso, para as concessionárias, na hipótese de obras nas auto-estradas: sem
compensação.
10ª Além disso, adoptou um sistema que pode conduzir, na hipótese de obras, à
suspensão das taxas e ao afastamento do princípio do equilíbrio financeiro:
também sem compensação.
11ª Finalmente e perante um certo tipo de acidentes (entre os quais os derivados
do atravessamento de animais) estabeleceu uma denominada “presunção de
incumprimento”, contra as concessionárias: igualmente sem compensação.
III — Quanto aos juízos de inconstitucionalidade
A - Primeiro fundamento: violação dos princípios do Estado de direito
democrático e da separação de poderes (artigo 2.°)
12ª A Lei n.° 24/2007 vem invadir os poderes nucleares do Governo enquanto órgão
superior da administração pública — 182.° — incumbido da direcção da
administração directa do Estado — 199.°, d).
13ª Com efeito, cabe apenas ao Governo negociar os contratos públicos de
concessão, tanto mais que apenas ele tem os meios técnicos e humanos necessários
para o efeito; nesse sentido, de resto, o próprio Parlamento adoptou a já
referida Resolução n.° 14/2004.
14ª A Lei n.° 24/2007 traduz, logo por aí, uma intromissão do Parlamento na área
própria do Governo, pondo em crise o princípio da separação dos poderes e
violando o artigo 2.° da Constituição.
15ª Além disso, a Lei n.° 24/2007, designadamente através do seu artigo 12.°/1,
veio interferir na composição de litígios já em curso, surgidos entre
particulares.
l6ª Tais litígios só podem ser dirimidos pelos tribunais (202.°/2), sob pena de
se pôr também em causa o direito de acesso aos mesmos, para defesa dos direitos
(20.°/1).
17ª A Lei n.° 24/2007 equivale a uma intromissão do Parlamento no núcleo do
poder judicial; põe em causa, num ponto estruturante do nosso ordenamento, o
princípio da separação de poderes, violando, também por aqui, o artigo 2° da
Constituição.
18ª Também o principio da protecção da confiança, num outro aspecto, seria
violado por aquela Lei, enquanto põe em causa o particular mundo das empresas
que planeiam a longo prazo com o maior rigor os proveitos que vão obter e os
custos em que vão incorrer.
B — Segundo fundamento: violação do princípio da igualdade (artigo 13.º)
19ª O Direito assenta no postulado básico de tratar o igual de modo igual e o
diferente de modo diferente, de acordo com a medida da diferença: a essa luz, as
soluções desarmónicas são, já por si, contrárias ao princípio da igualdade.
20ª O Direito civil, na sequência de um esforço milenário de equilíbrio,
distingue a responsabilidade obrigacional da aquiliana: a obrigacional,
emergente da violação de deveres concretos pré-existentes, prevê uma presunção
de culpa, perante o incumprimento (mais severo); a aquiliana, correspondente à
inobservância de deveres gerais de respeito, não comporta tal presunção (mais
leve): artigos 799.°/1 e 487.°/1, do Código Civil.
21ª A cominação de um ou outro tipo de responsabilidade não é arbitrária:
depende da materialidade em jogo, sob pena de atingir a igualdade.
22ª No caso de acidentes em auto-estrada, mostrando-se cumpridos os deveres
específicos a cargo da A., apenas queda verificar se, com violação do dever
genérico de respeito, foram violados direitos dos utentes: a responsabilidade é,
pela natureza das coisas, aquiliana.
23ª A “presunção de incumprimento”, ao interferir (e na medida em que interfira)
nessa questão, viola o artigo 13.°/l, da Constituição. Sem conceder,
24ª A igualdade constitucional projecta-se no princípio da igualdade rodoviária:
nas diversas vias e aos vários utentes aplicam-se regras genéricas e nunca ad
hominem.
25ª Daí que não seja compaginável, nas auto-estradas, uma regra de maior
protecção (ou menor risco) dos utentes, em função de gerar coordenadas
jurídicas: ser ou não um lanço concessionado; haver ou não portagem; estar em
causa o condutor ou o passageiro, como exemplos: seria violado o artigo 13.°/1.
Sem conceder,
26ª O artigo 12.°/1 da Lei n.° 24/2007 veio, de facto, fixar uma presunção de
“não- cumprimento” (e, não, de culpa); com isso estabelece, de facto, um regime
de imputação objectiva: mesmo cumprindo todos os seus deveres, a concessionária
ainda será responsabilizada pelo resultado, numa manifestação de puro risco.
27ª A responsabilidade pelo risco é expoliativa: só se admite em casos
especiais, para o futuro, com limitação das indemnizações e acompanhamento por
seguros. In casu, nada disso foi ponderado: há nova via de
inconstitucionalidade, por discriminação subjectiva, atingindo-se o artigo
13.°/1 da Lei Fundamental. Sem conceder,
28ª A Lei n.° 24/2007, em vários dos seus preceitos, designadamente o artigo
12.°/1, veio atingir selectivamente os direitos das concessionárias; fê-lo fora
de quaisquer pressupostos tributários, violando, também por aqui, a igualdade
prevista no artigo 13.°/1, da Constituição.
C — Terceiro fundamento: violação da tutela da propriedade privada.
29ª A recorrente A. detém um acervo patrimonial enquanto parte num contrato de
concessão; tal acervo, ainda que contratual, é protegido pela Constituição, por
reconduzir-se a uma noção ampla de propriedade (artigo 62.°/1, da Constituição).
30ª A Lei n.° 24/2007, em vários dos seus preceitos e, designadamente, no seu
artigo 12.°, veio atingir direitos patrimoniais pré-existentes, sem compensação:
violou a propriedade privada.
31ª No caso do artigo 12.° em causa, esse fenómeno mais flagrante se toma: foi
criada, com referência a situações pré-existentes, uma situação objectiva de
risco, que é substancialmente amputante de valores patrimoniais: a violação do
artigo 62.°/1, da Constituição, surge apodíctica.
IV — Quanto à relevância nos autos:
32ª A Lei n.° 24/2007 levou o Tribunal a abdicar da sua judicação: não atentou
nos factos apurados, designadamente nos que traduziram, por parte da A., o
cumprimento das suas obrigações.
33ª A não se aplicar a Lei n.° 24/2007, a saída para o litígio em discussão
seria a inversa.
Nestes termos e naqueles que, suprindo, os Venerandos Conselheiros
Constitucionais queiram subscrever, deve ser declarada a inconstitucionalidade
material da Lei n.° 24/2007 e, designadamente, do seu artigo 12.°, por violação,
inter alia, dos artigos 2.°, 13.°/1 e 62.°/1, da Constituição, assim se dando
provimento ao presente recurso.»
3. O recorrido não contra-alegou.
4. O presente recurso emerge de acção declarativa de condenação com processo
sumaríssimo, intentada por B. contra A., SA, na qual o autor pede a condenação
da ré no pagamento de indemnização por ter sofrido um acidente de viação, em
virtude de choque entre o seu veículo e um canídeo, ocorrido em auto-estrada de
que é concessionária a ré.
Por sentença do Tribunal Judicial de Cantanhede, a acção foi julgada
parcialmente procedente e a ré condenada a pagar ao autor a quantia de
€3.523,06, acrescida de juros legais.
É desta sentença que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Delimitação do objecto do recurso
5. No requerimento de interposição do recurso, a recorrente afirma pretender a
apreciação da constitucionalidade das normas “resultantes da interpretação do
artigo 12.° da Lei n.° 24/2007, de 18 de Julho”, e, ainda, das “constantes dos
artigos 4.° a 12.° da mesma Lei, na medida em que, com as normas directamente
visadas, tenham relações sistemáticas de implicação”.
Nas conclusões das alegações de recurso, termina pedindo que seja declarada a
«inconstitucionalidade material da Lei n.° 24/2007 e, designadamente, do seu
artigo 12.°, por violação, inter alia, dos artigos 2.°, 13.°, n.º 1, e 62.°, n.º
1, da Constituição».
O recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC, apenas pode ter por objecto normas ou interpretações
normativas, cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pela recorrente
perante o tribunal recorrido, e que tenham por efectivamente aplicadas na
decisão recorrida, como sua ratio decidendi.
Acresce que o objecto do recurso é delimitado no respectivo requerimento de
interposição, não podendo ser alargado na fase das alegações.
Por isso, não podem integrar o presente recurso todas normas da Lei n.º 24/2007
não referidas nesse requerimento (que, como vimos, alude apenas aos artigos 4.º
a 12.º da lei).
No caso em apreço, a sentença recorrida, ao apreciar os pressupostos da
responsabilidade civil, de que depende o direito de indemnização, considerou
aplicável ao caso o disposto no artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º
24/2007 (cfr. fls. 195 dos autos). Pelo que o objecto do recurso terá que se
considerar limitado à apreciação da constitucionalidade desta norma.
B) Mérito do recurso
6. O artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 24/2007 reza assim:
«Artigo 12.º
Responsabilidade
1 — Nas auto -estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente
rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do
cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a
respectiva causa diga respeito a:
a) (…);
b) Atravessamento de animais;
c) (…).
2 — (…).
3 — (…):
a) (…);
b) (…);
c) (…).»
A norma do n.º 1 deste artigo 12.º foi já apreciada por esta 2.ª Secção do
Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.ºs 596/2009 e 597/2009 (este restrito à
alínea b) daquele preceito legal), ambos de 18.11.2009.
Nestes arestos, motivados por recursos igualmente interpostos pela aqui
recorrente, o Tribunal, apreciando casos idênticos ao dos presente autos,
pronunciou-se unanimemente pela não inconstitucionalidade da norma em causa,
considerando, além do mais, que a mesma não violava os princípios do Estado de
direito e da separação de poderes, nem o princípio da igualdade, nem a tutela da
propriedade privada.
Não colocando o presente caso qualquer questão nova que deva ser apreciada,
reitera-se aqui esta jurisprudência, inteiramente aplicável ao caso em apreço, e
à qual já aderimos no Acórdão n.º 629/2009.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea b), da
Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lisboa, 3 de Março de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos