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Processo n.º 124/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
(Conselheiro João Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do 4.º Juízo, 3.ª Secção, dos Juízos Cíveis do Porto, o Ministério Público interpôs recurso da decisão daquele tribunal, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, a), da LTC, na parte em que recusa a aplicação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, com a interpretação defendida pelo Tribunal da Relação do Porto - segundo a qual compete aos Juízos Cíveis do Porto preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do regime processual civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, quando o respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da Relação, e não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo -, com fundamento em inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 112.º, n.º 2 e l65.º, alínea p), da CRP.
2. O presente recurso emerge de processo de injunção que A., Lda., propôs contra B., S.A., nos Juízos Cíveis do Porto. A ré contestou, deduzindo reconvenção.
O recurso vem interposto do despacho, proferido em 21.12.2009, com o seguinte teor:
«A presente acção iniciou-se como processo injuntivo, tendo-lhe a autora atribuído o valor de € 53.765,27.
Por ter sido deduzida oposição, onde também foi formulado pedido reconvencional ao qual foi dado o valor de € 25.000,00, foram os autos remetidos ao Tribunal da Pequena Instância Cível do Porto. Este Tribunal através do despacho de fls. 22 e 23 fixou o valor da acção em € 78.841,77 e declarou-se incompetente para a tramitação e julgamento da presente lide, fundamentando tal decisão, em suma, no valor da acção, na medida em que apenas lhe compete julgar e preparar as causas cíveis a que lhe corresponda a forma de processo sumaríssimo e as causas cíveis não previstas no Código de Processo Civil a que corresponda processo especial e cuja decisão não seja susceptível de recurso ordinário atento o disposto nos arts. 20º, 97º, 99º e 101º da LOFTJ e o disposto nos arts 7º, 16º, nº 1, 18º do regime anexo ao DL, 269/98, de 1.9 e art 1º do citado DL nº 269/98.
Contudo, contrariamente ao entendimento sufragado no aludido despacho na parte em que se refere que a presente acção continuará a correr termos sob a forma do regime processual experimental aprovado pelo DL nº 108/2006, de 8 de Junho, atento o disposto no art. 1º do citado diploma e no artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13 de Setembro (e por isso, a competência atribuída aos Juízos Cíveis do Porto), os presentes autos, a partir da oposição, tendo em conta o valor que lhe foi atribuído (€ 78.841,77) terão de seguir nos termos da lei, a forma de processo ordinário (art. 462º do CPC e art. 24º, nº 1 da Lei nº 3/99, de 13.01). E, nos termos do art. 97º, nº 1 al. a) da supra citada Lei, compete às Varas Cíveis preparar e julgar as acções declarativas cíveis de valor superior à alçada da Relação e não aos Juízos Cíveis.
É facto que a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto tem vindo a sufragar o entendimento de que a competência para preparar e julgar uma acção declarativa proposta nos termos do regime processual civil experimental instituído pelo DL. nº 108/2006, de 8/06, quando o respectivo valor exceder a alçada da Relação e não tiver sido requerida a intervenção do tribunal colectivo, deve ser atribuída, no Tribunal da Comarca do Porto, os Juízos Cíveis (o que não é, porém, como acima se referiu, a situação dos presentes autos, visto que os mesmos se iniciaram como processo injuntivo, pese embora tenha sido esse o entendimento sufragado no despacho proferido a fls. 22 e 23).
Neste sentido foi já decidido nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08/04/2008, 05/06/2008 e 30/09/2008, proferidos nos processos nºs 0820596, 0831362 e 0855853, respectivamente, disponíveis em ww.dgsi.pt.
A referida Jurisprudência apoia-se nos seguintes argumentos:
O DL nº 108/2006, de 08/06, que aprovou o regime processual experimental, não estabeleceu qualquer limite de valor para as acções declarativas cíveis instauradas ao abrigo de tal regime, pelo que as mesmas podem ter valor superior à alçada da relação.
O regime processual experimental aplica-se, designadamente, nos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e nos Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal da Comarca do Porto, de acordo com o disposto nas als. b) e c) do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09.
Não está prevista a aplicação de tal regime nas Varas Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto.
O DL nº 108/2006, de 08/06, não prevê que no decurso da acção declarativa cível instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a seguir, a partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário.
Conclui, assim, que a acção cível instaurada nos termos do referido diploma nunca poderá observar, em nenhum momento da sua tramitação, a forma de processo comum ordinário, pelo que a competência originária para conhecer deste tipo de acções pertence aos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e só no caso das partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo é que os Juízos Cíveis deverão remeter o processo às Varas Cíveis para julgamento e posterior devolução, de acordo com o artº 97º, nº 4 da L.O.F.T.J.
Discordamos, com o devido respeito, da argumentação expendida, por se nos afigurar que a mesma é susceptível de infringir o texto constitucional.
Com efeito, não se retira do teor do DL. nº 108/2008, de 08/06, que fosse intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais, que continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava anteriormente.
Do mesmo modo, não pretendeu a Portaria nº 955/2006, de 13/09, alterar a competência dos Tribunais, mas apenas definir quais os tribunais em que seria aplicado o regime processual experimental, mantendo os tribunais a que alude, a competência que já detinham, tal como resulta, aliás, do respectivo preâmbulo.
De acordo com o disposto no artº 112º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de autorização legislativa.
Dispõe por sua vez o artº 165º, al. p) do mesmo diploma que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre organização e competência dos tribunais, salvo autorização ao Governo.
Não pode, assim, o Governo, sem autorização legislativa, alterar as normas de competência dos tribunais, aprovadas por Lei.
A organização e competência dos tribunais sempre seria, de resto, matéria de reserva de “acto legislativo”, entendendo-se como tal, nos termos do artº 112º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais e nunca matéria de simples portaria.
Todavia e se assim é, constata-se que a norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09, quando interpretada no sentido defendido nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima referidos, infringe o disposto nos artsº 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, ao considerar-se, por não estar prevista a aplicação do regime processual experimental nas Varas Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto por não se prever, no DL. nº 108/2006, de 08/06, que no decurso da acção declarativa cível instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a seguir, a partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário, que a competência para conhecer das acções cíveis instauradas na Comarca do Porto, de valor superior à alçada da Relação, na sequência da soma do valor dos pedidos do autor e do reconvinte, pertence aos Juízos Cíveis e, só no caso das partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo, é que as referidas acções deverão ser remetidas às Varas Cíveis para julgamento e posterior devolução, de acordo com o artº 97º, nº 4 da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, está a infringir-se, em nosso entender e ressalvando o devido respeito por opinião contrária, a regra de competência estabelecida no artº 97º, nº 1, al. a) da referida Lei.
Dispõe este último normativo que compete às Varas Cíveis a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo.
É certo que o nº 4 do mencionado preceito refere que são ainda remetidos às Varas Cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
Afigura-se, no entanto, que tal disposição se encontra formulada para os processos especiais, originariamente da competência dos Juízos Cíveis.
Ora o regime processual experimental não configura um processo especial, já que nos Juízos Cíveis do Porto, tal regime aplica-se na falta de outra forma de processo aplicável, tal como resulta desde logo do artº 1º do DL. nº 108/2006 e não poderá considerar-se especial uma forma de processo que, num certo tribunal, se aplica na falta de outras.
O regime processual experimental configura-se antes como um processo comum nos Juízos Cíveis do Porto.
Assim sendo e na medida em que tal regime não visou alterar as regras de competência e não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, às quais terá de recorrer-se enquanto legislação subsidiária, nomeadamente às normas dos artsº 98º, nº 2 e 305º e segs. do referido diploma, impõe-se uma interpretação da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006 conforme com o disposto nos artsº 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República Portuguesa.
Tal interpretação, em nosso entender e ressalvando sempre o devido respeito por opinião contrária, apenas poderá ser feita no sentido de que, quando, por força da reconvenção, o valor da acção instaurada nos Juízos Cíveis da Comarca do Porto ultrapasse o valor para o qual detinham competência, os Juízos Cíveis deixam de ser os competentes em razão do valor, devendo a acção ser remetida ao tribunal competente, com a consequente alteração da forma do processo aplicável nesse tribunal, no caso, o processo ordinário previsto no Código de Processo Civil, aplicável nas Varas Cíveis do Porto.
Decisão:
Na sequência do exposto:
a) recusa-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por infracção do disposto nos artsº 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República Portuguesa, da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09, com a interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima referidos e, consequentemente,
b) julga-se aplicável à presente acção a forma de processo comum ordinário, por força do disposto nos artsº 308, nº 2, 461º e 462º do Código de Processo Civil e determina-se, em conformidade, que a presente acção passe a prosseguir os seus termos sob a referida forma de processo.»
3. Por despacho de fls. 59, do primitivo Relator, foram as partes notificadas para alegar, bem como para se pronunciarem sobre a possibilidade de o recurso não ser conhecido com fundamento em não se verificar uma verdadeira recusa de aplicação de norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações, onde concluiu do seguinte modo:
«1. A norma constante do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13 de Setembro, na interpretação segundo a qual compete aos Juízos Cíveis do Porto preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do regime processual civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei nº 108/2006 de 08 de Junho, quando o respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da Relação e não tenha sido requerida a intervenção do Tribunal Colectivo – concretizando o disposto, nomeadamente, nos artigos 1º e 21º do Decreto-Lei nº 108/2006 – ao alterar inovatoriamente o âmbito da competência reservada às varas cíveis pelo artigo 97º, nº 1, alínea a), da lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, sem que existisse credencial parlamentar bastante, é organicamente inconstitucional, por violação do artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição.
2. Na verdade, não sendo a competência das varas cíveis delimitada pela referida Lei nº 3/99 em torno da forma de processo aplicável (o que as tornaria em “tribunais de competência específica”), não pode a dita alteração no âmbito das competências entre varas e juízos cíveis, decorrente da interpretação normativa desaplicada, configurar-se como simples decorrência de uma alteração de carácter processual, excluída do âmbito da “reserva de parlamento”.
3. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida.»
5. Os recorridos não contra-alegaram.
6. Tendo o primitivo relator ficado vencido, quanto à questão do conhecimento do objecto do recurso, houve lugar à mudança de relator.
II – Fundamentação
7. Questão prévia: do conhecimento do objecto do recurso
O presente recurso foi interposto, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC, do despacho proferido neste processo em 21.12.2009.
O despacho recorrido recusou a interpretação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, sustentada nos «Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 08/04/2008, 05/06/2008 e 30/09/2008, proferidos nos processos n.ºs 0820596, 0831362 e 0855853, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt».
Da leitura destas decisões, que decidiram conflitos negativos de competência, verifica-se que, mediante a interpretação do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, do qual o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, é uma simples concretização, se considerou que os Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto eram competentes para preparar e julgar as acções declarativas cíveis propostas nestes juízos, às quais tenha sido fixado um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, quando não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo.
É a esta interpretação que a alínea a) da decisão recorrida se reporta, quando determina a “recusa de aplicação” da “interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto”.
Todavia, e não obstante o conteúdo deste enunciado decisório, constata-se não ter havido uma autêntica recusa de aplicação por inconstitucionalidade, no sentido exigido pela alínea a) do artigo 70.º da LTC, para se poder dar por verificado o fundamento de recurso aí previsto.
Questão idêntica foi decidida no Acórdão n.º 652/09, relatado pelo ora Relator (assim como na Decisão Sumária n.º 27/2010, proferida no processo n.º 945/09), no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, com fundamento, em suma, no seguinte:
«I - O despacho recorrido recusou a interpretação do artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, sustentada nas decisões do Presidente do Tribunal da Relação do Porto, proferidas na resolução de conflitos de competência onde se considerou que os Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto eram competentes para preparar e julgar as acções declarativas cíveis propostas nestes juízos, às quais tenha sido fixado um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, quando não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo. É a esta interpretação que a decisão recorrida se reporta, quando determina a 'recusa de aplicação' da 'interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto'.
II - Todavia, e não obstante o conteúdo deste enunciado decisório, constata-se não ter havido uma autêntica recusa de aplicação por inconstitucionalidade, no sentido exigido pela alínea a) do artigo 70.º da LTC, para se poder dar por verificado o fundamento de recurso aí previsto. Na verdade, a decisão do tribunal filia-se, 'em primeira linha', num entendimento divergente, 'no exclusivo plano do direito ordinário', do alcance dos preceitos legais pertinentes. O tribunal considera a interpretação que resulta da aplicação dos normais cânones hermenêuticos. Suplementarmente, como razão adicional para o afastamento da interpretação do Tribunal da Relação do Porto, invoca o tribunal recorrido que ela está ferida de inconstitucionalidade, por infringir o disposto nos artigos 112.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP. Ou seja, não é só porque entende que essa interpretação é inconstitucional que a sentença recorrida a não acolhe e aplica. Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo com a intenção do legislador e com o teor do preâmbulo da Portaria n.º 955/2006 é a de que não houve intenção de alterar a competência dos Tribunais.
III - Tendo perfilhado esta interpretação - cuja correcção não cabe a este Tribunal sindicar - o tribunal recorrido não tinha mais do que aplicá-la, no pleno exercício da sua competência própria e ao abrigo da garantia de independência que lhe está constitucionalmente assegurada. O Juiz da causa não precisava de recorrer a uma 'aparente' recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, de uma interpretação alternativa (ainda que também emita sobre ela essa apreciação) - interpretação que não é a sua -, pela única razão de que se trata daquela a que um tribunal superior adere. Só seria assim se ele estivesse obrigado a seguir essa interpretação - o que, evidentemente, não acontece, no nosso quadro constitucional. Só nessas circunstâncias, e como último recurso para evitar a eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, de uma interpretação tida por inconstitucional, estava ele habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo 204.º da Constituição lhe confere.
IV - Um tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma interpretação que ele próprio faça - interpretação que seria a inevitável ratio decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que não é a sua, mas a de um outro tribunal. E foi isto o que o tribunal recorrido fez. Não estão, pois, preenchidos os pressupostos do recurso previsto na alínea a) da LTC.»
Os fundamentos do citado Acórdão n.º 652/09 são inteiramente aplicáveis ao caso em apreço, pois também aqui a decisão do tribunal se filia, em primeira linha, num entendimento divergente, no exclusivo plano do direito ordinário, do alcance dos preceitos legais pertinentes.
Assim, reiterando a jurisprudência citada, conclui-se pelo não preenchimento dos pressupostos do recurso previsto na alínea a) da LTC.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Maio de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Catarina Sarmento e Castro
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano (vencido, conforme declaração
que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por interpretar de modo diferente da posição que fez vencimento o conteúdo da decisão recorrida.
Da leitura que fiz desse despacho entendi que o juiz a quo recusou expressamente, por considerar violadora de parâmetro constitucional, a interpretação normativa sustentada pela jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto sobre a questão em causa, e só perante a constatação desse vício é que procurou efectuar uma interpretação conforme à Constituição que pudesse aplicar, após ter assumido tal recusa.
Esta última interpretação normativa só é assumida pelo julgador, após ter recusado seguir a interpretação dominante, com fundamento na sua inconstitucionalidade, pelo que não estamos perante uma recusa artificial de aplicação de normas, mas sim face a uma verdadeira recusa que não podia deixar de ser sindicada pelo Tribunal Constitucional.
Além disso, conforme se sustentou nos acórdãos deste Tribunal n.º 159/93 (publicado em ATC, 24.º vol., pág. 371), n.º 256/04 (publicado em ATC, 59.º vol., pág. 155), e 162/09, (publicado em ATC, 74.º vol., pág. 653), contrariamente ao que sucede nos recursos da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, o facto do despacho recorrido se basear num duplo fundamento – incorrecção da interpretação seguida pelo Presidente do Tribunal da Relação do Porto e sua inconstitucionalidade – não deve impedir o seu conhecimento.
Como se disse no segundo destes arestos:
“…ao imporem ao Ministério Público a obrigação de interpor recurso das decisões dos tribunais que hajam recusado a aplicação de norma constante, designadamente, de acto legislativo (como é o presente caso), com fundamento em inconstitucionalidade e ao estabelecerem a regra da subida imediata desses recursos, sem prévia exaustão dos recursos ordinários no caso cabíveis, a Constituição e a lei pretendem que o «conflito entre o poder judicial e o poder legislativo», vislumbrável naquela recusa judicial de aplicação de norma legal, seja rapidamente dirimido pelo órgão constitucional competente para dizer a última palavra em questões de constitucionalidade – o Tribunal Constitucional –, impedindo a consolidação, na ordem jurídica, de decisões judiciais de inconstitucionalidade de normas legais sem que o Tribunal Constitucional possa controlar esses juízos.”
Conhecendo do recurso, confirmaria o juízo de inconstitucionalidade adoptado pela decisão recorrida relativamente à interpretação do disposto no artigo 21.º, do Decreto-lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, do qual o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, é uma simples concretização, segundo o qual os Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto eram competentes para preparar e julgar as acções declarativas cíveis propostas nestes juízos, às quais tenha sido fixado um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, quando não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo.
Na verdade, o Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, em mais uma tentativa de simplificar e flexibilizar o processo civil, criou um novo regime aplicável a todas as acções declarativas cíveis, a que não corresponda processo especial, e ainda às acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (artigo 1.º).
Este regime, nas palavras de LUÍS LAMEIRAS, “surge, portanto, com uma vocação universal, destinada a abraçar a generalidade dos processos declarativos cíveis, antes cobertos pelo procedimento declarativo comum” (In. “Comentário ao Regime Processual Experimental”, pág. 10, da ed. de 2007, da Almedina).
O processo civil declarativo comum deixa de ter várias formas (ordinário, sumário e sumaríssimo) para obedecer a um regime único.
Contudo, conforme consta da declaração preambular deste diploma, de forma a permitir testar e aperfeiçoar o funcionamento deste novo regime, optou-se, num primeiro momento, por circunscrever a sua aplicação a um conjunto de tribunais a determinar por Portaria, tendo em consideração a elevada movimentação processual que apresentem, atentos os objectos de acção predominantes.
Daí que o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, dando cumprimento ao disposto no n.º 1, do artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, tenha determinado que este novo regime só era aplicável em alguns Juízos Cíveis, nomeadamente nos do Tribunal da Comarca do Porto.
Nos casos como o presente, em que numa acção instaurada num destes Juízos Cíveis é-lhe fixado um valor superior ao da alçada do Tribunal da Relação, mormente por força de dedução de pedido reconvencional, tem alguma jurisprudência entendido que a competência para apreciar essa acção se mantém nesses Juízos Cíveis, uma vez que a sua tramitação deve continuar a obedecer ao novo regime processual experimental (vide as decisões do Presidente do Tribunal da Relação do Porto proferidas em 8-4-2008, 5-6-2008 e 30-9-2008, acessíveis em www.dgsi.pt).
Foi esta interpretação do disposto no artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, o qual se limitou a concretizar a previsão contida no n.º 1, do artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, que a decisão recorrida recusou, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
Na verdade, ao considerar-se que os Juízes Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto mantém a competência para apreciar acções cujo valor processual foi fixado, posteriormente à sua instauração, em montante superior à alçada do Tribunal da Relação, está a ampliar-se o âmbito da competência destes Juízos, aos quais, segundo os artigos 97.º, n.º 1, a), e n.º 3, e 99.º, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), está subtraída a competência para preparar e julgar acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação, mesmo quando a fixação desse valor só ocorre no decurso do processo já pendente nos Juízos cíveis.
Nos termos do artigo 165.º, n.º 1, p), da C.R.P., é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a organização e competência dos tribunais.
O Tribunal Constitucional tem dito que esta reserva relativa abrange «para além da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais … a distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou específica» (v.g. os Acórdãos n.ºs 36/87, em ATC, 9.º vol., pág. 243, 356/89, em ATC, 13.º vol. I, pág. 443, 72/90, em ATC, 15.º vol, pág. 67, 271/92, em ATC, 22.º vol. pág. 807, 163/95, em ATC, 30.º vol, pág. 849, 198/95, no D.R., II Série, de 22-6-1995, e 268/97, no BMJ n.º 465, pág. 252).
Quer as Varas, quer os Juízos cíveis, são tribunais da mesma competência especializada em questões de natureza civil, tendo uma competência específica definida essencialmente pelo valor processual das causas civis.
A interpretação sindicada intromete-se na definição desta denominada competência intrajudicial ou funcional das Varas e Juízos cíveis, em que estão em causa as condições da intervenção dum tribunal de estrutura colectiva ou de estrutura singular, fundamentalmente assente no critério do valor da causa.
Não há razão para que esta repartição de competências entre tribunais da mesma especialidade, tendo como critério essencial o valor da causa, e que se diferenciam pela sua estrutura e pelas condições de acesso exigidas aos juízes que os integram, também não se inclua na reserva relativa da Assembleia da República definida na alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., uma vez que também ela respeita à organização e competência dos tribunais.
Sendo estes um órgão de soberania (artigo 110.º, da C.R.P.), compreende-se que a organização judiciária e a repartição das competências por todos os diferentes tipos de tribunais que integram essa organização, para além do estatuído na própria Constituição (artigos 209.º e seg.), seja tarefa reservada ao legislador parlamentar.
Ora, verifica-se que a interpretação sob fiscalização consagra uma regra de repartição de competências entre as Varas e os Juízos cíveis que altera os termos em que a Assembleia da República regulou tal matéria na LOFTJ, tendo essa interpretação sido extraída do disposto no artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, concretizado pelo artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro.
Não tendo aquele diploma do Governo sido emitido ao abrigo de autorização concedida pela Assembleia da República, a referida interpretação normativa infringe o disposto no artigo 165.º, n.º 1, p), da C.R.P., pelo que deveria ser confirmada a recusa da sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, julgando-se improcedente o recurso.
João Cura Mariano