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Processo n.º 101/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por decisão da 1ª instância proferida em 3 de Abril de 2009 foi o arguido A.
condenado, pela autoria material de dois crimes, um de tráfico de
estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22
de Janeiro, na pena de 5 anos de prisão, e outro de uso de documento alheio, p.
e p. pelo artigo 261.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 5 anos e 2 meses
de prisão, para além de expulsão do território nacional pelo período de 10 anos.
Não se conformando com o assim decidido interpôs o arguido recurso para o
Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 8 de Outubro de
2009, confirmou a decisão sumária do relator que rejeitara o recurso por ele
interposto, com o fundamento em que o recorrente, depois de convidado a
sintetizar as conclusões da sua motivação, não correspondeu ao solicitado e não
fez as especificações previstas no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de
Processo Penal.
O arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Desembargador
Relator, por despacho proferido em 11 de Dezembro de 2009, não admitido o
recurso, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, devido ao acórdão
recorrido ter confirmado a decisão condenatória da 1ª instância.
Desse despacho apresentou o Recorrente reclamação para o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça.
Por decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferida em 22 de
Dezembro de 2009 foi indeferida esta reclamação.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, nos
seguintes termos:
“Assim, nos termos do disposto no art. 70º nº 1, al. b) da Lei do Tribunal
Constitucional, por violação, da disciplina legal dos artigos 400º al. f), 412º
nº 1, 417 nº 3 e 429 nº 1 todos do CPP, por ilegalidade e inconstitucionalidade
da interpretação que lhes foi dada por este Venerando Supremo Tribunal de
Justiça, por violarem frontalmente o consignado nos artigos 18º nº 2 e 32º n.º 1
da CRP ao permitirem a recusa sumária do recurso baseada num critério puramente
subjectivo e insindicável previsto no art. 412º, nº 1 do CPP, quando o que está
em causa é uma decisão condenatória em pena efectiva e, como tal, privativa da
liberdade do Recorrente. E isto porque, sendo inquestionável que a decisão
proferida em conferência pelo Tribunal da Relação põe termo à causa, ainda que
se tenha decidido de pura forma pois que não decidiu do mérito, a prevalecer tal
decisão, a condenação do ali Recorrente torna-se definitiva, por lhe ficar
vedada a possibilidade da sua reapreciação por um tribunal superior (Cf. acórdão
do Tribunal Constitucional nº 597/2000 - DR 2ª S/A de 25/6/01), confirmando-se a
condenação proferida em 1ª Instância de modo meramente formal, razão pela qual,
no entendimento do Recorrente, poderá ser tida como confirmativa daquela, não
preenchendo, assim, o pressuposto de irrecorribilidade da chamada dupla conforme
nos termos da al. f) do art. 400º do CPP.”
O Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu este recurso, por
despacho proferido em 13 de Janeiro de 2010, com a seguinte fundamentação:
“…como se disse na parte final do despacho de fls. 80 e segs., a norma da alínea
f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP não foi aplicada na decisão ora impugnada e das
restantes não foi tomado conhecimento da inconstitucionalidade que lhes foi
imputada, por respeitarem ao acórdão recorrido, e não aos termos e fundamentos
da reclamação.
Assim, fica inviabilizado qualquer julgamento sobre a inconstitucionalidade das
normas referidas, por parte do TC, porquanto os recursos de constitucionalidade
desempenham uma função instrumental. Daí o Tribunal Constitucional só poder
conhecer de uma questão de constitucionalidade quando ela é susceptível de se
repercutir na decisão impugnada, o que não se verifica na situação dos autos.”
O Recorrente reclamou desta decisão para o Tribunal Constitucional, invocando as
seguintes razões:
“Vem a presente reclamação do douto despacho do Venerando Supremo Tribunal de
Justiça que, por entender que a douta decisão que recaiu sobre a reclamação
apresentada junto do Presidente do STJ não havia aplicado os art.s 400º, al. f)
do CPP e que sobre as disposições do art.s 412º, nº 1, 417º, nº 3 e 420º, nº 1
do CPP “... não foi tomado conhecimento da inconstitucionalidade que lhes foi
imputada por respeitarem ao Ac. recorrido, e não aos termos e fundamentos da
reclamação”, não admitiu o recurso interposto para este venerando Tribunal
Constitucional.
O certo é que o ora Reclamante não pode conformar-se com a decisão reclamada,
porquanto, é falso que o ora Reclamante não tenha suscitado a
inconstitucionalidade da interpretação operada sobre as normas supra
identificadas junto do Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, a alegada e
imputada inconstitucionalidade foi suscitada pelo ora Reclamante em todas as
instâncias de recurso, e dentro destas, para a respectiva conferência do
Tribunal da Relação de Lisboa e Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Dispõe o art. 204º da Lei Fundamental que “Nos feitos submetidos a julgamento
não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição
ou os princípios nela consignados.”
Não é porque, conforme vem sublinhado no despacho reclamado, “... não foi tomado
conhecimento da inconstitucionalidade que lhes foi imputada por respeitarem ao
Ac. recorrido, e não aos termos e fundamentos da reclamação” que ao ora
Reclamante pode ser coarctada a possibilidade de ver apreciada a
inconstitucionalidade que desde sempre vem alegando,
São duas as questões que o Reclamante pretende ver apreciadas por este douto
Tribunal Constitucional, a saber:
a) A inconstitucionalidade decorrente da interpretação que foi dada à disciplina
legal dos art.s 412º, nº 1 e 420º, nº 1 al. a) do CPP operada pelo Tribunal da
Relação de Lisboa para recusar conhecer do mérito do recurso ai apresentado por
manifesta violação dos art.s 18º, nº 2 e 32º, nº 1 da CRP, pois que tal
interpretação rejeita o recurso por razões de ordem puramente subjectiva e
insindicável;
b) A inconstitucionalidade decorrente da interpretação dada à disciplina legal
dos art.s 400º, al. f), 412º, nº 1, 417º, nº 3 e 420º, nº 1 do CPP operada pelo
Tribunal da Relação de Lisboa e reiterada pelo Supremo Tribunal de Justiça,
quando consideraram existir, com o Acórdão da Relação, confirmação da decisão
proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, a chamada dupla conforme, quando aquele
Acórdão apenas se havia pronunciado sobre questões formais e insindicáveis e não
do mérito, por manifesta violação dos arts 18º, nº 2 e 32º, nº 1 da CRP;
Tudo nos termos do art. 70, al b) da Lei do Tribunal Constitucional.
É que do Acórdão proferido em 1ª Instância, recorreu o Reclamante para o
Tribunal da Relação de Lisboa.
Porque as conclusões de recurso ai apresentadas foram consideradas contrárias ao
comando insito no art. 412º, nº 1 e 2, als a), b) e c) do CPP foi o ali
Recorrente convidado a suprir tais omissões.
A tal convite o ali Recorrente respondeu com novas conclusões, reduzindo estas a
metade das inicialmente apresentadas.
O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que, ainda assim, o Recorrente só não
deu cumprimento ao disposto no art. 412º, nº 1 do CPP. E só este.
Dessa decisão o Recorrente reclamou para conferência daquele Tribunal da
Relação, que manteve a decisão.
Desta decisão o Recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Tribunal da Relação de Lisboa recusou a admissão de recurso por considerar que
o art. 400, nº 1, al. f) do CPP não o admitia.
Da decisão que não admitiu aquele recurso para o Supremo Tribunal de Justiça o
Recorrente reclamou para o Presidente desse mesmo Tribunal.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça entendeu não receber o recurso por
tal decisão ser irrecorrível nos termos da al. c) do nº 1 do art. 400º.
A reclamação apresentada junto do Presidente do STJ suscitava, sublinhada e
claramente, as questões que pretende agora o Reclamante venham apreciadas por
este venerando Tribunal Constitucional.
A decisão sobre a reclamação não julgou das inconstitucionalidades aí levantadas
e já anteriormente levantadas junto da conferência do Tribunal da Relação de
Lisboa.
A decisão que não admite agora o recurso para este Tribunal Constitucional não
tem qualquer cabimento legal ou outro! Pois que,
Tendo-se esgotado todas as instâncias capazes de apreciar as
inconstitucionalidades que resultaram da interpretação das citadas disposições
do CPP, só resta ao Reclamante o recurso para este Tribunal Constitucional. O
que requer. É que,
Do que AQUI SE TRATA é de uma condenação em pena efectiva de prisão superior a
cinco anos sem que ao Reclamante seja dada a possibilidade de ver tal decisão
apreciada em segundo grau de jurisdição, o que afronta o próprio Estado de
direito democrático, que é o português, e os mais elementares direitos de defesa
de Arguido constitucionalmente consagrados e bem assim a condição e a dignidade
da pessoa humana (art. 8º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art.
2º, nº 1 do Protocolo n.º 7 à Convenção para e Protecção dos Direitos do Homem o
das Liberdades Fundamentais)”.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação
apresentada.
*
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência
atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já
não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões
judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º
1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC),
e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das
dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
É o requerimento de interposição de recurso que define inicialmente o objecto do
recurso.
Nesse requerimento o Recorrente expressou a sua vontade de ver apreciada a
legalidade e a constitucionalidade da interpretação que foi feita pela decisão
recorrida dos artigos 400.º al. f), 412.º nº 1, 417.º, nº 3 e 429.º, nº 1 todos
do CPP.
Relativamente ao controle da correcção infraconstitucional da decisão recorrida
não cumpre ao Tribunal Constitucional efectuá-la.
Quanto à questão de constitucionalidade, conforme se constata da leitura da
decisão recorrida, o indeferimento da reclamação apresentada ao Presidente do
Supremo Tribunal de Justiça não se fundamentou em qualquer interpretação dos
dispositivos indicados pelo Recorrente, mas sim por se ter entendido que o caso
em questão integrava a previsão do artigo 400.º, al. c), do C.P.P. – não é
admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não
conheçam, a final, do objecto do processo.
Foi, pois, esta, a norma aplicada como fundamento do indeferimento da reclamação
e não qualquer interpretação dos mencionados preceitos.
Não integrando o objecto do recurso proposto pelo Recorrente a ratio decidendi
da decisão recorrida, não pode o mesmo ser conhecido, atenta a natureza
instrumental do recurso de constitucionalidade. Na verdade, qualquer pronúncia
sobre as questões colocadas pelo Recorrente não teria qualquer efeito sobre a
decisão recorrida, uma vez que o fundamento desta é estranho a essas questões,
pelo que recurso interposto carece de qualquer utilidade.
Assim sendo, importa julgar improcedente a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão que não
admitiu o recurso para o tribunal Constitucional proferida nestes autos em 13 de
Janeiro de 2010.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 3 de Março de 2010
João Cura Mariano
Catarina Sarmento e Castro
Rui Manuel Moura Ramos