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Processo n.º 653/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional,
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura
como recorrente A., SA, e como recorrida a Fazenda Pública, foi proferida
decisão, em 20 de Maio de 2009, que negou provimento ao recurso que o ora
recorrente havia interposto de uma anterior decisão do Tribunal Tributário de
Lisboa, de 16 de Janeiro de 2008, através do qual, para o que agora importa, a
mesma havia impugnado a liquidação de IRC referente ao exercício de 2003.
2. É daquela decisão do Supremo Tribunal Administrativo que vem interposto, ao
abrigo da alínea b), do nº 1, do artigo 70º da LTC, o presente recurso de
constitucionalidade, através do seguinte requerimento:
“[...], vem, ao abrigo dos artigos 70º e ss da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro,
interpor recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 20 de Maio de
2009, na medida em que julgou não haver violação do art.° 103°, n° 3 da
Constituição da República Portuguesa, nem violação do princípio constitucional
da Segurança Jurídica, nem, ainda, violação do art.° 104°, n° 2 da Constituição
da República Portuguesa.
O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n° 1 do art.° 70° da
supracitada Lei n.° 28/82 de 15/11.
Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da
norma estabelecida no art.° 42°, n° 3 do Código do IRC, efectivamente aplicada
ao caso. Consideram-se violados os seguintes princípios constitucionais:
a) Não aplicação retroactiva da lei fiscal, com previsão no art.° 103°, n° 3 da
Constituição da República Portuguesa;
b) Segurança jurídica, com previsão no artigo 2° da Constituição da República
Portuguesa;
c) Tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real, com
previsão no art.° 104°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa – consoante
se suscitou na Impugnação Judicial (artigos 12° a 31°) e no Recurso para o
Supremo Tribunal Administrativo (conclusões 2ª a 16ª).
Termos em que se requer a admissão do recurso agora interposto”.
3. Notificada para alegar, veio a recorrente concluir da seguinte forma:
“1ª) A Lei n° 32-B/2002, de 30 de Dezembro, introduziu uma alteração ao Código
do IRC, passando a este a estabelecer que “a diferença negativa entre as
mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de
partes de capital (...) concorre para a formação do lucro tributável em apenas
metade do seu valor” (art° 42°, n° 3);
2ª) Decorre, da referida norma, que perdas efectivas, reais, sofridas pelos
contribuintes, apenas são dedutíveis em 50% do seu valor;
3) Sendo embora certo que a recorrente alienou participações sociais em 2003,
altura em que já estava em vigor o referido n° 3 do art° 42° do CIRC, e que
essas alienações geraram perdas (menos-valias), a aplicação de tal norma viola o
disposto no art° 103°, n° 3 da Constituição da República Portuguesa;
4ª) Estamos perante uma retroligação ou retroconexão de efeitos jurídicos, na
medida em que a norma – o referido n° 3 do art° 42° do Código do IRC – atinge
situações e direitos desenvolvidos do passado e que permanecem no presente;
5ª) É que as referidas participações sociais, embora alienadas em 2003, tinham
sido adquiridas antes da entrada em vigor da nova norma;
6ª) Aliás, o legislador, nas alterações aos regimes das mais e menos-valias,
sempre ressalvou esses efeitos do passado, determinando que os novos regimes só
se aplicavam aos bens adquiridos após a sua entrada em vigor (cf. art° 5° do
Decreto-Lei no 442-A/88, de 30/11; art° 18°-A, do Decreto-Lei n° 442-B/88, de
30/11; art°s 3º, n.º5 e 10°, n° 4 da Lei n° 30—G/2000, de 29/12);
7ª) A aplicação do regime do art° 42°, n° 3 do Código do IRC a participações
adquiridas antes da sua entrada em vigor, viola, assim, o princípio
constitucional da não aplicação retroactiva da lei fiscal;
8ª) A referida aplicação do art° 42°, n° 3 do Código do IRC a participações
sociais adquiridas antes da sua entrada em vigor, viola, também, o princípio da
segurança jurídica, estabelecido no art° 2° da Constituição da República
Portuguesa;
9ª) Os contribuintes adquiriram participações sociais com base num determinado
quadro legal, que era, aliás, o quadro normal ou típico, segundo o qual os
ganhos da alienação dessas participações eram tributados e as perdas eram
dedutíveis;
10ª) A alteração anormal, imprevisível, mudando, radicalmente, o quadro legal,
de modo que as perdas passaram a ser deduzidas apenas em metade, violou,
frontalmente, o princípio da segurança e da confiança;
11ª) A não aceitação de metade das perdas geradas na alienação de participações
sociais viola o princípio da tributação do rendimento real, estabelecido no art°
104°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa;
12ª) A tributação pelo rendimento real, efectivo, é uma decorrência do princípio
da capacidade contributiva, segundo o qual os contribuintes só podem ser
tributados pela sua efectiva e real capacidade e esta mede-se pelos seus ganhos
ou acréscimos;
13ª) A não aceitação de metade das perdas, implica, obviamente, a tributação
sobre um ganho/acréscimo que o contribuinte não teve.
Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente, considerando-se
inconstitucional o art° 42°, n° 3 do Código do IRC nos termos indicados.”
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
4. A recorrente pretende ver apreciada a “norma estabelecida no art.° 42°, n° 3
do Código do IRC”, invocando três fundamentos de inconstitucionalidade: a
proibição de retroactividade na criação de impostos, a violação da protecção da
confiança e a proibição de tributação por um rendimento não real. Importa,
então, determinar qual a norma efectivamente em causa.
Na versão original do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas
Colectivas (CIRC – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro),
nenhuma regra se estabelecia, designadamente no artigo 42º, quanto ao montante
de menos valias cuja dedução se autorizava. Apenas se afirmava, na alínea i) do
seu artigo 23º, que se consideravam custos ou perdas “as menos valias
realizadas”. Por força da entrada em vigor da Lei n.º 32-B/2002, de 30 de
Dezembro, o mencionado artigo 42º passou a estatuir, no seu n.º 3, que: “A
diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a
transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização
com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas
metade do seu valor”.
Entretanto, por força da vigência da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, e
através do seu artigo 44º, o referido n.º 3 do artigo 42º do CIRC recebeu a
seguinte redacção: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias
realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua
remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou
variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras
componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares,
concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Finalmente, após a republicação do CIRC, efectuada pelo Decreto-Lei n.º
159/2009, de 13 de Julho, a solução manteve-se na íntegra, apesar de ter sido
deslocada para o actual artigo 45º, por via da renumeração entretanto operada. É
esta a redacção actual da totalidade do preceito em causa:
1 – Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os
seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de
tributação:
a) O IRC e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre
os lucros;
b) Os encargos evidenciados em documentos emitidos por sujeitos passivos com
número de identificação fiscal inexistente ou inválido ou por sujeitos passivos
cuja cessação de actividade tenha sido declarada oficiosamente nos termos do nº
6 do artigo 8º;
c) Os impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que o
sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar;
d) As multas, coimas e demais encargos pela prática de infracções, de qualquer
natureza, que não tenham origem contratual, incluindo os juros compensatórios;
e) As indemnizações pela verificação de eventos cujo risco seja segurável;
f) As ajudas de custo e os encargos com compensação pela deslocação em viatura
própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturados a
clientes, escriturados a qualquer título, sempre que a entidade patronal não
possua, por cada pagamento efectuado, um mapa através do qual seja possível
efectuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos,
designadamente os respectivos locais, tempo de permanência, objectivo e, no caso
de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do
respectivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, excepto
na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo
beneficiário;
g) Os encargos não devidamente documentados;
h) Os encargos com o aluguer sem condutor de viaturas ligeiras de passageiros ou
mistas, na parte correspondente ao valor das depreciações dessas viaturas que,
nos termos das alíneas c) e e) do nº 1 do artigo 34º, não sejam aceites como
gastos;
i) Os encargos com combustíveis na parte em que o sujeito passivo não faça prova
de que os mesmos respeitam a bens pertencentes ao seu activo ou por ele
utilizados em regime de locação e de que não são ultrapassados os consumos
normais;
j) Os juros e outras formas de remuneração de suprimentos e empréstimos feitos
pelos sócios à sociedade, na parte em que excedam o valor correspondente à taxa
de referência Euribor a 12 meses do dia da constituição da dívida ou outra taxa
definida por portaria do Ministro das Finanças que utilize aquela taxa como
indexante;
l) As menos-valias realizadas relativas a barcos de recreio, aviões de turismo e
viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, que não estejam afectos à exploração
de serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da
actividade normal do sujeito passivo, excepto na parte em que correspondam ao
valor fiscalmente depreciável nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 34º
ainda não aceite como gasto;
m) Os gastos relativos à participação nos lucros por membros de órgãos sociais e
trabalhadores da empresa, quando as respectivas importâncias não sejam pagas ou
colocadas à disposição dos beneficiários até ao fim do período de tributação
seguinte;
n) Sem prejuízo da alínea anterior, os gastos relativos à participação nos
lucros por membros de órgãos sociais, quando os beneficiários sejam titulares,
directa ou indirectamente, de partes representativas de, pelo menos, 1 % do
capital social, na parte em que exceda o dobro da remuneração mensal auferida no
período de tributação a que respeita o resultado em que participam.
2 – Tratando-se de sociedades de profissionais sujeitas ao regime de
transparência fiscal, para efeitos de dedução dos correspondentes encargos,
poderá ser fixado por portaria do Ministro das Finanças o número máximo de
veículos e o respectivo valor.
3 – A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas
mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e
amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações
patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do
capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a
formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
4 – A Direcção-Geral dos Impostos deve disponibilizar a informação relativa à
situação cadastral dos sujeitos passivos relevante para os efeitos do disposto
na alínea b) do nº 1.
5 – No caso de não se verificar o requisito enunciado na alínea m) do nº 1, ao
valor do IRC liquidado relativamente ao período de tributação seguinte
adiciona-se o IRC que deixou de ser liquidado em resultado da dedução das
importâncias que não tenham sido pagas ou colocadas à disposição dos
interessados no prazo indicado, acrescido dos juros compensatórios
correspondentes.
6 – Para efeitos da verificação da percentagem fixada na alínea n) do nº 1,
considera-se que o beneficiário detém indirectamente as partes do capital da
sociedade quando as mesmas sejam da titularidade do cônjuge, respectivos
ascendentes ou descendentes até ao 2º grau, sendo igualmente aplicáveis, com as
necessárias adaptações, as regras sobre a equiparação da titularidade
estabelecidas no Código das Sociedades Comerciais.
Assim, a norma cuja constitucionalidade a recorrente questiona é a que se retira
do segmento normativo incluído no referido n.º 3 -“a diferença negativa entre as
mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de
partes de capital [...] concorre para a formação do lucro tributável em apenas
metade do seu valor -, na medida em que tal se traduz numa redução das
menos-valias dedutíveis.
5. No seu Acórdão n.º 128/09 (disponível na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional
afirmou:
“[...] foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou
a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio
geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos.
Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da
protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º
da CRP (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável
(não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e
em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando
assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em
sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova,
desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal
revogada (a lei antiga) e mais favorável.
[...]
Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de
irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal
desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela
Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração
fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de
inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não
dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos
circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação
jurídico-tributária.
[...]
A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a
retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que
se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários)
antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova)”.
E acrescentou, ainda, que:
“questão diferente da que se deixou resolvida é a de saber se a decisão
recorrida deve ser mantida quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade
(violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito
consagrado no artigo 2.º da Constituição).
O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal
Constitucional. Contudo – e em matéria tributária – a jurisprudência do Tribunal
sobre o que queira dizer «a necessária protecção da confiança legítima» não pode
deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido antes
ou depois da revisão Constitucional de 1997. Na verdade – e como o tem dito a
doutrina –, com a formulação actual do nº 3 do artigo 103º da CRP alterou-se o
lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2º ocupa em matérias
de natureza fiscal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de
irretroactividade da lei fiscal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a
relevância do princípio. Quer isto dizer exactamente o seguinte.
A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a
eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção
da confiança. Como diz Casalta Nabais (Cfr. “Direito Fiscal”, 3ª Edição,
Almedina, Coimbra, p. 149), a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo
preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais
retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio,
corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que
ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou
autêntico. Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente – não
há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do nº 3 do artigo 103º,
inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado
ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode
haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não
retroactividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela
tutela da confiança”.
[...]
“No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites
do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual
inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica,
retrospectiva». Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da
aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior
à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi
neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que
deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a
conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se,
tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do
princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na
vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário
que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve
recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado,
a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da
Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra
jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes
requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela
jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o
Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar
nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser
legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os
privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade
do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram
razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade
do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e
da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do
Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não
reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe
atribui protecção.
Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito
presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das
leis, «não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a
manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a
factos complexos já parcialmente realizados»”.
6. Ora, o que se retira do que antecede permite concluir sobre as questões da
proibição da retroactividade e da protecção da confiança colocadas pela ora
recorrente.
6.1. No que se refere à problemática da proibição da retroactividade, parece
claro que a hipótese de uma qualquer aplicação retroactiva do disposto no artigo
42º, n.º 3, do CIRC, no caso concreto e nos termos proibidos pelo n.º 3 do
artigo 103º da Constituição – retroactividade própria ou autêntica, ou seja,
aplicação de lei nova a factos anteriores à entrada em vigor da lei nova –, não
se pode colocar. Na verdade, por um lado, o facto gerador da obrigação – a
alienação – ocorre indubitavelmente na vigência da lei nova. Por outro, não é
sustentável afirmar a existência de um facto jurídico-fiscal complexo de
formação sucessiva. Na verdade, não basta que se verifique uma aquisição
anterior e uma alienação posterior para que se possa afirmar a existência de um
único facto, embora complexo. A ser assim, qualquer aquisição que, no futuro,
próximo ou longínquo, desse origem a uma alienação seria um facto complexo, não
obstante serem distintos o primeiro alienante e o segundo adquirente, não
obstante o conteúdo da contratação ser diverso na primeira e na segunda
alienação, não obstante ocorrer um lapso de tempo mais ou menos prolongado entre
tais operações. A intermediação meramente casual de uma pessoa (no caso, o
primeiro adquirente/segundo alienante) não pode ser elemento suficientemente
capaz de produzir a união de factos que são juridicamente distintos, quer do
ponto de vista dos intervenientes, quer, acima de tudo, do ponto de vista da sua
substância.
Não havendo sequer conexão fáctica entre a aquisição e a posterior alienação – o
que, de resto, sendo alegado pela ora recorrente, não surge demonstrado – a
aplicação a esta última do regime em vigor no momento em que ela ocorreu, ou
seja daquele que resulta da citada disposição legal, não se traduz em nenhuma
aplicação retroactiva.
6.2. E quanto à alegada violação da protecção da confiança e da segurança
jurídica, também não é possível sufragar a tese da recorrente. De facto, a
protecção das alegadas expectativas invocadas pela ora recorrente jamais pode
colidir, nem impedir, o funcionamento do princípio da livre revisibilidade das
leis. A menos que os requisitos de protecção da confiança, tal como têm sido
reconhecidos e aceites na jurisprudência constitucional, estejam integralmente
verificados. E, na realidade, não estão. Vejamos.
Em primeiro lugar, não se pode dizer que o Estado, através da Administração
Fiscal, ao permitir durante certo período a dedução da totalidade das
menos-valias obtidas em determinada alienação, possa ter criado uma expectativa
de manutenção de idêntico regime para o futuro. Admitir o contrário seria
aceitar um princípio de imutabilidade das leis, que se não pode reconhecer. Em
segundo lugar, também não se antevê como possa a expectativa da recorrente ser
havida como legítima, já que tal implicaria uma como que «proibição de
retrocesso» em matéria de deduções fiscais, igualmente inaceitável. Em terceiro
lugar, tão-pouco se pode dizer que a ora recorrente possa ter feito,
legitimamente, um plano de vida assente no pressuposto de continuidade do
“comportamento” da Administração Fiscal. Na realidade, afigura-se insustentável
afirmar que a ora recorrente ao adquirir as participações sociais em causa o fez
no pressuposto de, posteriormente, independentemente até de qualquer
“proximidade temporal” entre a aquisição e a alienação – que poderá vir a
ocorrer décadas após –, as vir a alienar com prejuízo, deduzindo, nesse caso, a
totalidade das menos-valias. Em quarto e último lugar, parece existir uma razão
de interesse público subjacente à alteração legislativa em causa: obter uma mais
justa e equilibrada repartição de encargos fiscais entre as diversas espécies de
contribuintes, dado que o regime resultante do artigo 42º, n.º 3, do CIRC,
apenas se aplica, por definição, a contribuintes que tenham a natureza de pessoa
colectiva ou afim.
Não é, assim, possível concluir, como pretende a recorrente, pela violação do
“princípio da segurança jurídica, estabelecido no art° 2° da Constituição da
República Portuguesa”.
7. No que toca à questão da “proibição de tributação por um rendimento
presumido” é a própria letra do artigo 104º, n.º 3, da CRP, que fornece uma
resposta segura: “a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu
rendimento real” (itálico aditado). Como se afirmou no Acórdão n.º 162/2004
(igualmente disponível na página Internet do Tribunal Constitucional),
“[...] o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma
realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente
modelado e contabilisticamente mensurável, [...].
Por outro lado, a injunção constitucional da tributação segundo o rendimento
real não pode deixar de atender, necessariamente, aos princípios da
praticabilidade e de operacionalidade do sistema, pelo que não pode deixar de se
lhes reconhecer natureza constitucional, sob pena dos arquétipos legalmente
construídos não conseguirem realizar, com a aproximação possível, o princípio da
universalidade e da igualdade no pagamento dos impostos.
Um sistema inexequível ou um sistema que não permita o controlo dos rendimentos
e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha
recta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da
tributação segundo o rendimento real.
São estas as dificuldades que explicam que a Constituição se tenha limitado a
prever que a imposição fiscal deve incidir fundamentalmente sobre o rendimento
real, não «excluindo com tal disposição o recurso a outras formas fiscais
estranhas ao mito do apuramento declarativo-contabilístico do rendimento real» -
José Guilherme Xavier de Basto (O princípio da tributação do rendimento real e a
Lei Geral Tributária, in Fiscalidade, n.º 5) (cfr. também, João Pedro Alves
Ventura Silva Rodrigues, Algumas reflexões em torno da efectiva concretização do
princípio da capacidade contributiva, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro
José Manuel Cardoso da Costa, 2003, pp. 906 e ss.).
No dizer de Casalta Nabais, «a CRP, ao exigir que a tributação das empresas se
norteie pelo rendimento real, está apenas a “recortar” o quadro típico ou
caracterizador do sistema fiscal (...) e não [a] “estabelecer” ou “desenhar a
cheio” esse mesmo quadro» (cfr. “Alguns aspectos do quadro constitucional das
empresas”, in Fisco, n.os 103/104, pp. 19).”
Por conseguinte, não só não é constitucionalmente imperioso que o rendimento
tributável consista sempre e apenas no rendimento real, tal como aparentemente
resulta da contabilidade empresarial, mas também tal rendimento não é, em si
próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, antes sendo um conceito
normativamente modelado. Nestes termos, não viola o preceito constitucional um
regime fiscal que se traduza numa menor ponderação, para efeitos tributários, de
determinadas menos valias contabilizadas pelas empresas.
Aliás, a impossibilidade de dedução integral de alguns custos ou perdas, como
tal contabilizados pelos contribuintes, para efeitos de determinação da base
tributável, não só resulta de diversos números do actual artigo 45º do CIRC,
como já tem sido objecto de recurso para este Tribunal, nomeadamente nos
processos decididos pelos Acórdãos n.ºs 418/2000 e 451/2002 (disponíveis na
página Internet do Tribunal Constitucional em
http://www.tribunalconstitucional.pt/), os quais não julgaram inconstitucional a
solução encontrada. Jurisprudência que se entende dever agora igualmente
reiterar.
III – Decisão
Em face do exposto, o Tribunal decide negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 3 de Março de 2010
Gil Galvão
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos