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Processo n.º 979/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, nos termos do n.º 1 do
artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, mediante requerimento
assim formulado:
“A., recorrente nos autos em epígrafe referenciados, notificado do douto acórdão
neles proferido e subsequente decisão sobre o pedido de aclaração, vem interpor
respeitoso recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes
termos:
1. O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º l do art.º 70.º da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro.
2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas contidas nos:
> art.º 24º, n.ºs 2 e 3, do Decreto–Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro;
> art.º 33º, n.º 4, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho;
> art.ºs 120º, n.º 1, alínea a) do Código Penal;
> art.ºs 68.º, n.º 3, alínea b), 287.º, e 379.º, n.º 1, alínea c), 380.º, n.º 1,
alínea b), e n.º 3, 401.º, n.º 1, alíneas b) e d), 414.º, n.ºs 2 e 3, 417.º, n.º
5, alínea b), e 420.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal;
> art.º 666.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil;
na sua aplicação conjugada e concomitante, com as interpretações alcançadas das
decisões recorridas, que se podem sumariar em que:
a) é licito ao tribunal conhecer de matéria que lhe não foi colocada
expressamente, declarando a não prescrição do
procedimento criminal, quando esta havia sido determinada em dia certo, por
decisão anterior transitada em julgado – tese que se alcança do conjunto
decisório, que não foi objecto de apreciação pelo Venerando Tribunal da Relação;
b) a pendência do incidente de protecção jurídica impede o início do prazo de
prescrição do procedimento cautelar – entendimento que se retira do texto
decisório de 1.ª instância – ainda que imperfeitamente expresso;
c) o prazo para a constituição como assistente em processo penal não está
interrompido durante o recurso jurisdicional tirado sobre a decisão de apoio
judiciário – confusa teoria jurídica que se alcança, com idêntica imperfeição,
do teor das decisões;
d) o ofendido, com pendência de admissão como assistente, não tem legitimidade,
por falta de interesse em agir, para interpor recurso de decisão tirada sobre
prescrição do procedimento criminal com ofensa de caso julgado.
3. Esta interpretação normativa afigura-se como violadora dos imperativos dos
art.ºs 3.º, n.º 2, 9.º, alínea b), 13º, n.ºs 1 e 2, l6.º, n.º 2, 18.º, n.º 1,
20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 32.º, n.ºs 1 e 7, 202.º, n.º 2, e 203.º, da Constituição da
República Portuguesa.
4. A questão de inconstitucionalidade foi suscitada expressa e cautelarmente,
ainda que de forma sucinta e resumida, nas conclusões 2.ª, 9.ª e 11.ª do recurso
apresentado ante o tribunal a quo, bem como no requerimento de aclaração, ali
quanto à matéria jurídica imprevista e inusitada quanto à ilegitimidade para
recorrer, as quais se têm aqui por integralmente reproduzida para todos os
efeitos legais como se estivessem transcritas.
5. A interpretação considerada correcta das sobreditas normas legais, na sua
correlatividade, concomitância e complementaridade está diluída ao longo das
conclusões 1.ª 3.ª a 8.ª e 10.ª do sobredito recurso e ao longo do requerimento
de aclaração, mas que se podem resumir, por referência a cada uma delas:
a) não pode o tribunal conhecer de questão que lhe não foi expressamente
colocada, quanto à prescrição do procedimento criminal, já determinada em dia
fixo por decisão transitada em julgado;
b) O procedimento jurisdicional de apoio judiciário é autónomo dos processos
para onde foi requerido o instituto, sem qualquer repercussão no andamento
desta, sob pena de violar direitos dos arguidos, sendo que no regime do
Decreto-Lei n.º 387-B/87 o recurso de agravo interposto pelo seu requerente
tinha efeitos suspensivos da eficácia da decisão, e só desta.
b) o prazo para admissão como assistente, e só este, está interrompido durante o
procedimento incidental de apoio judiciário, começando a correr de novo com o
seu termo.
c) O ofendido, que é chamado a pagar taxa de justiça para ser admitido como
assistente após a ocorrência da prescrição do procedimento criminal, tem a
legitimidade, advinda do seu interesse em agir, para interpor recurso de decisão
que, ofendendo caso julgado, não reconhece essa prescrição e o pretende obrigar
a pagar tal taxa de justiça.
6. O presente recurso deverá subir imediatamente, nos próprios autos e com
efeito devolutivo.
Nestes termos e nos mais de direito, se requer a sua admissão para os demais
termos processuais, onde aprofundadamente se alegará sobre a matéria submetida
ao superior juízo constitucional.”
2. Pelo acórdão de 24 de Junho de 2009 (fls. 324 e segs.), o Tribunal da Relação
de Lisboa decidiu (a) não tomar conhecimento do recurso interposto pelo
recorrente (queixoso), na parte respeitante à (não) prescrição do procedimento
criminal e (b) negar provimento ao recurso no mais, isto é, na parte respeitante
à liquidação da taxa de justiça e da multa (taxa de justiça sanção) relativas ao
pedido de constituição de assistente. O acórdão de 28 de Outubro de 2009
limitou-se a indeferir o pedido de aclaração ou de correcção do acórdão
anterior.
No que respeita à primeira questão – aquela a que directamente respeita o
recurso de constitucionalidade – o Tribunal da Relação disse o seguinte:
“(…)
A. O procedimento criminal mostra-se extinto?
1. Alega o recorrente que existe violação do caso julgado, no que ao despacho em
apreço se refere, pelas seguintes razões:
Por aí se ter entendido que o prazo de prescrição suspendeu a instância em
processo penal, ao abrigo do disposto no artº24.º n.º 3 do Decreto-Lei 387-B/87
de 29 de Dezembro (então em vigor), o que determinava que o procedimento não
podia prosseguir seus termos por falta de autorização legal para o efeito, o que
configura uma causa de suspensão da prescrição prevista na alínea a) do 120.º do
C.Penal.
Assim, tal causa suspensiva só cessou com a decisão definitiva proferida sobre
esta matéria – o acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em
09/09/2008, pelo que forçoso se torna, pois, concluir que ainda não decorreu o
prazo de prescrição.
Mais alega que esta decisão contraria uma anterior, proferida em 29 de Dezembro
de 2006, em que consta o seguinte: “(...) certo é que até à presente data não
decorreu ainda o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime em
causa, o que ocorrerá apenas em 19 de Janeiro de 2009 (...).
2. A questão aqui proposta tem uma resposta simples que é tão-somente a
seguinte:
O queixoso não tem legitimidade para recorrer da decisão proferida pelo tribunal
“a quo” no que se refere ao segmento relativo ao indeferimento da pretensão de
declaração de prescrição.
Senão, vejamos:
O queixoso não se mostra constituído assistente nos autos, o que desde logo
determina que lhe é apenas aplicável o vertido no artº401 nº1 al. d) do
C.P.Penal.
Significa isto que, nos termos de tal dispositivo legal, o queixoso tem apenas
legitimidade para recorrer de decisões que o condenem no pagamento de uma
determinada importância (nos termos do C.P.Penal) ou se tiver a defender um
direito afectado por uma determinada decisão.
Ora, a questão suscitada – não declaração de prescrição do procedimento criminal
– não determina o pagamento de qualquer importância prevista no C.P.Penal nem,
no caso dos autos, de qualquer montante previsto no regulamento das custas
judiciais, pois o tribunal “a quo” nada determinou a esse respeito.
Por outro lado, o queixoso não tem nenhum direito que tenha sido afectado pela
decisão que impugna, já que a declaração de não prescrição de um procedimento
criminal fundado numa queixa por si apresentada, não se engloba, de forma
manifesta, em tal conceito.
Aliás, e ainda que o queixoso se tivesse constituído assistente, de igual modo
lhe faleceria legitimidade para recorrer de tal segmento do despacho, pois o
mesmo não pode ser entendido como decisão contra si proferida (na verdade, seria
precisamente o oposto), não se mostrando assim preenchido o requisito previsto
no artº 401 nº1 al. b) do C.P.Penal.
Conclui-se, pois, que quanto a esta questão, não tem o queixoso legitimidade
para da mesma recorrer, razão pela qual o recurso não pode ser apreciado neste
segmento, devendo ser rejeitado nesta parte, o que obsta a que se conheça de
mérito, nos termos do disposto nos arts. 401.º n.º1, al. d), 414 n.º 2 e 3, 417
nº6 al. b) e 420 nº1 al. b), todos do C.P.Penal.
(…).”
3. Procedendo à indicação do objecto do recurso, como é seu ónus, o recorrente
enumera uma série de preceitos legais que entende aplicados “conjugada e
concomitantemente, com as interpretações alcançadas nas decisões recorridas” que
seguidamente sumaria.
Sucede que o acórdão de 24 de Junho de 2009 (o segundo acórdão, indeferindo o
pedido de aclaração ou correcção, nada acrescenta) não apreciou a questão da
prescrição. Limitou-se a não tomar conhecimento do objecto do recurso. Para
tanto fez aplicação das normas que enuncia e apenas dessas. Não apreciou
qualquer das questões a que o recorrente se refere nas alíneas a), b) e c) do
n.º 2 do requerimento de interposição do recurso.
Resta, portanto, como objecto possível do presente recurso a dimensão normativa
referida na aliena d) do n.º 2 do requerimento de interposição. Mas ainda aí há
que notar que o enunciado não é rigorosamente aquele que o recorrente apresenta.
Há um elemento da dimensão normativa concretamente aplicada que não é
dispiciendo e o recorrente omite. Com efeito, não está em causa a legitimidade
do ofendido para impugnar qualquer decisão sobre a prescrição do procedimento
criminal. O que se julgou foi que o ofendido (ainda que se constitua assistente)
não tem legitimidade para recorrer de decisões que não julgam prescrito o
procedimento criminal.
A omissão deste elemento no enunciado da norma, constituindo um ponto fulcral da
ratio decidendi e sendo susceptível de modificar radicalmente a perspectiva
constitucional da questão, levanta sérias dúvidas sobre a possibilidade de
conhecer do objecto do recurso, mesmo quanto a esta questão da legitimidade para
recorrer.
4. Admitindo, porém, que possa conhecer-se do recurso nesta parte, a questão de
constitucionalidade afigura-se manifestamente infundada. Do elenco de normas
constitucionais que o recorrente indica como violadas, só as dos artigos 20.º e
32.º poderiam apresentar-se como tendo o mínimo de relação com a matéria em
disputa. As demais são flagrantemente impertinentes.
Com efeito, é o n.º 7 do artigo 32.º da Constituição que confere dignidade
constitucional ao direito do ofendido de intervir no processo penal. Mas não
especifica o seu conteúdo, remetendo expressamente para o legislador ordinário a
sua concretização, conferindo a este larga margem de conformação. O que a lei
não pode, por força deste preceito, é retirar ao ofendido, directa ou
indirectamente, o direito de participar no processo penal que tenha por objecto
a ofensa de que alegadamente tenha sido vítima (Jorge Miranda e Rui Medeiros,
Constituição Portuguesa Anotada, Tomo 1, p. 361).
Esse direito de intervenção no processo – que no nosso processo penal se
processa mediante a figura de constituição como assistente – é concedido por
causa ou em defesa de interesses próprios do ofendido, contrapostos ao do
arguido, não para defender os interesses deste ou para defesa da legalidade
objectiva. Ora, o ofendido, mais a mais quando pretende constituir-se
assistente, não tem interesse em impugnar decisões que não julguem verificada a
prescrição do procedimento criminal. Numa perspectiva jurídica, essas decisões
não podem senão considerar-se como sendo-lhe favoráveis, uma vez que permitem a
continuação do processo para perseguição penal da alegada violação dos
interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Pela mesma razão, não afectando a decisão que não julga extinto o procedimento
criminal contra o arguido direitos ou interesses legalmente protegidos do
ofendido ou de terceiro que ao ofendido incumba defender, não pode dizer-se
violado o direito à tutela jurisdicional ou o direito a um processo equitativo
(n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição) pelo facto de este não ser admitido
a impugnar tal decisão judicial. Perante o sentido da decisão, a circunstância
de porventura estar pendente pedido de constituição como assistente é
irrelevante. A posição jurídica do recorrente enquanto titular da pretensão de
constituição como assistente não é afectada por tal decisão. Aliás, se o
interessado reconhece que o procedimento criminal está extinto, bastar?lhe?á
desistir das diligências relativas ao pedido de constituição como assistente,
designadamente do pagamento das quantias a que se refere o artigo 80.º do Código
das Custas Judiciais (n.º 3 do artigo 80.º do CCJ).
4. Decisão
Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (LTC), por manifesta improcedência, decide-se negar provimento ao
recurso e condenar o recorrente nas custas, com 7 (sete) Ucs de taxa de justiça,
sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.”
2. O recorrente reclamou desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo
78.º-A da LCT, sustentando, em síntese, que “a questão da incorrecta aplicação
das normas invocadas no seu recurso perante este Tribunal merece tutela efectiva
com pleno conhecimento das invocadas violações de todos os imperativos
constitucionais arguidos, numa perspectiva de que tem direito absoluto e
inderrogável a mais sã aplicação do direito e a uma administração da justiça que
não olvide os direitos fundamentais, em especial os que tangem com a dignidade
humana da vítima de um crime”.
3. O Ministério Público responde que a reclamação é manifestamente improcedente,
não tendo adiantado quaisquer novos argumentos que possam abalar o teor da
decisão sumária proferida
4. A improcedência da reclamação é flagrante, nada do que o recorrente alega
sendo susceptível de pôr em crise os fundamentos da decisão sumária, que aqui se
reiteram.
Àquilo que se diz na decisão reclamada acresce – suposto, a benefício de
raciocínio, que ao ofendido coubesse, nessa qualidade, legitimidade (ou fosse
reconhecido interesse) para pugnar pela extinção do procedimento criminal contra
o arguido – que, mesmo que se tivesse constituído como assistente no processo,
não estaria constitucionalmente garantido o direito a um segundo grau de
jurisdição. Efectivamente, constitui entendimento corrente o de que o direito de
acesso aos tribunais não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos
interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus
direitos e interesses legalmente protegidos. A existência de limitações à
recorribilidade funciona como um mecanismo de racionalização do sistema
judiciário e por isso se aceita que o legislador disponha de liberdade de
conformação quanto à definição dos requisitos e graus de recurso (acórdãos
125/98, 72/99 e 431/02). Mesmo em processo penal, um duplo grau de jurisdição
está constitucionalmente consagrado unicamente para o arguido e, ainda assim,
não relativamente a todas as decisões proferidas, mas em relação às decisões
condenatórias e às decisões respeitantes à situação do arguido em face da
privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais
(acórdãos 353/91, 373/99, 387/99, 459/00, 417/03, 390/04, 610/04, 104/05,
616/05, 2/06, 36/07 e 313/07; veja-se sobre estes aspectos, também, Gomes
Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I,
4ª edição revista, pág. 418; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa
Anotada, Tomo I, 2005, pág. 200).
Contraria o sentido comum das coisas e o uso sério das instituições
que se invoque a protecção constitucional da “dignidade humana da vítima de um
crime” para ver reconhecido ao ofendido o direito de impugnar a decisão judicial
de que o procedimento criminal contra o pretenso ofensor não está extinto. Esse
é seguramente um conteúdo que nunca poderá considerar-se incluído na tutela que
ao ofendido é conferido pelo n.º 7 do artigo 32.º da Constituição, porque o
sentido deste direito de intervenção no processo penal é de defesa dos seus
direitos e interesses, não dos direitos ou interesses do arguido ou de defesa
objectiva da ordem jurídica. Pretensão essa que também manifestamente exorbita
de qualquer das demais normas e princípios constitucionais invocados pelo
reclamante no requerimento de interposição do recurso.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas
custas com 25 (vinte e cinco) UCs de taxa de justiça.
Lx., 24/2/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão