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Processo n.º 14/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por sentença do Tribunal da Comarca de Santo Tirso foi fixada a indemnização
a pagar pela expropriante, ora recorrida, à expropriada, ora recorrente.
Inconformados, recorreram expropriante e expropriada para o Tribunal da Relação
do Porto, tendo esta última concluído as suas alegações, para o que ora releva,
do seguinte modo:
“[...] 3. - O direito constitucional ao pagamento da “justa indemnização” em
caso de expropriação constitui um corolário lógico do princípio do Estado de
Direito Democrático consagrado no art. 2.° CRP e traduz uma garantia fundamental
dos cidadãos relativamente a qualquer acto privativo da propriedade que se
justifique em função da utilidade pública da expropriação.
4. - É evidente que a estatuição do n.° 2 do art. 62°, ao referir apenas o
critério de “justiça” reparadora, não fornece critério(s) precisos para a
concretização da indemnização a pagar ao expropriado, relegando-se para o
legislador ordinário a opção e a densificação de tais critérios: é a supra
referida ideia de uma justa indemnização constitucional aberta;
5. - No entanto, será irrecusável, como pressuposto básico da conformidade
constitucional das normas expropriativas (por imposição do próprio princípio
constitucional do Estado de Direito Democrático), a submissão do conteúdo dessas
normas aos princípios materialmente plasmados na Constituição, de entre os quais
destacamos os princípios da igualdade (com especial destaque para as ideias de
não discriminação dos cidadãos expropriados face aos não expropriados e de
repartição equilibrada dos encargos públicos por todos cidadãos) e da
proporcionalidade ou da proibição do excesso (traduz a ideia de pagamento, pela
entidade expropriante, de um valor equivalente àquele que o bem subtraído
possuía à data da expropriação), o princípio da legalidade e o princípio da
utilidade pública. [...]
26. - Este desequilíbrio é, por si só, elucidativo quanto à violação do
princípio constitucional da justa indemnização: o mercado de que o Exmo. Sr.
Juiz a quo fala é, efectivamente, o real e num mercado real as posições
relevantes são a do comprador e a do vendedor (e não apenas a do vendedor, como
por lapso, se elabora na sentença recorrida). [...]
28. - Qualquer indemnização que negue a realidade e, tal como incoerentemente
refere a sentença, esqueça o mercado real, é violadora do princípio da justa
indemnização e da proibição do enriquecimento sem causa, pelo que, sem mais
delongas, forçoso é concluir que a sentença recorrida viola o vertido nos arts.
62° e 13.° da CRP.
29. - É absurdo, com o devido respeito (que é muito), que se exija ao
expropriado, perante estas evidências, a prova (uma impossibilidade total...) de
“que ao elaborar o PDM de 1994 a entidade expropriante já previa que iria ter de
expropriar a parcela para ampliar o cemitério e que então tinha classificado a
parcela como RAN precisamente para a desvalorizar em sede de expropriação” (fls.
764, in fine): se previa ou não, esse sim é um mundo hipotético, fantasioso e de
prova impossível ou, pelo menos, desproporcional; exigir esse ónus ao
expropriado é negar a justiça que a CRP exige na expropriação... O que importa,
para o cálculo indemnizatório, é o verdadeiro, o que existe, a realidade, e esta
é só uma: a Câmara expropriou, pagando um terreno para agricultura, mas
destinando-lhe um fim incompatível com tal utilização (obrigatória para si, para
qualquer ente público e para os particulares).
30. - Só aplicando o vertido no n° 12 do art.º 26° do CE pode a indemnização em
causa ser justa e compaginar-se com os ditames constitucionais: na verdade, se
uma indemnização justa (na perspectiva do expropriado) é aquela que, repondo a
observância do princípio da igualdade violado com a expropriação, compense
plenamente o sacrifício especial suportado pelo expropriado, de tal modo que a
perda patrimonial que lhe foi imposta seja equitativamente repartida entre todos
os cidadãos, então forçoso será concluir que ela será, para além de uma
categoria jurídica, um elemento de natureza económica, pois deverá corresponder
ao valor económico do bem e este traduz a soma de dinheiro que alguém se dispõe
a pagar para adquiri-lo ou para o vender. [...]
32. Parece-nos claro, face à configuração que maioritariamente as expropriações
hoje têm (maxime, certos projectos expropriantes permitem avultadas vantagens
financeiras a entidades privadas…) e ao mercado imobiliário existente num mundo
global, que o princípio da justa indemnização tal qual consagrado na CRP foi
desrespeitado na sentença recorrida, violando-se abertamente um princípio geral
do direito, da proibição do enriquecimento sem causa e os princípios que o
suportam, maxime da justiça, igualdade e proporcionalidade (cfr. arts. 62.º, n.º
2 e 266º da CRP). [...]
42 - A justiça na indemnização a pagar ao expropriado, no caso sub judice, passa
obrigatoriamente, tal como resulta da maioria dos Senhores Peritos, pela
aplicação (analógica) do n° 12 do art.º 26° do CE, pelo que deve, neste sentido,
ser alterada a sentença recorrida, que viola o vertido nos arts. 23.° n.° 1 e 2,
24.° n.° 1, 25.° e 26.° do CE, nos arts. 11.º da LBPOTU (Lei 48/98, actualizada)
e 3.°, n.° 2 do RJIGT (DL 3 80/99, devidamente actualizado) e art. 8.º do DL
196/1989, bem como nos arts. 62.°, n.° 2 e 266.° da CRP.
43. - Ao não decidir assim, a sentença recorrida permite um locupletamento à
custa alheia, inadmissível num Estado de Direito Democrático, como supostamente
é Portugal, violando, dessa forma, também, o art. 62.º da CRP.
44. - Na verdade, a ponderação do princípio da proibição do enriquecimento sem
causa na relação expropriativa tutelada no artigo 62.° da Constituição sai
particularmente reforçada pelas exigências de uma específica manifestação do
princípio da igualdade nesta relação jurídica: a igualdade a estabelecer entre o
credor e o devedor indemnizatório. [...]
48. - Ao decidir como decidiu, o Juiz a quo cometeu grave erro e injustiça,
inconstitucional, sendo a diferença entre o referido valor agrícola e o valor
económico retirado pela expropriante a medida do seu enriquecimento (sem causa).
[...]
52. - A sentença recorrida viola, pois, não só o Princípio da Justa e Igual
Indemnização, previsto nos arts. 62. ° e 13.º da CRP, mas também as mais
elementares regras urbanísticas, designadamente as definidas na LBPOTU e RJIGT
(arts. 11.º da LBPOTU - Lei 48/98, actualizada - e 3.°, n.° 2 do RJIGT - DL
380/99, devidamente actualizado) bem como o disposto no art. 8.° do DL 196/1989
(entretanto revogado pelo DL 73/2009).
2. O Tribunal da Relação do Porto decidiu negar provimento ao recurso da
expropriada e considerar parcialmente procedente a apelação da expropriante.
3. Deste acórdão foi interposto este recurso, através do seguinte requerimento:
“[...], notificada do Acórdão da Relação do Porto de fls. .., de 26-11-2009, vem
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com os fundamentos seguintes:
1. O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n° 1 do art. 70°, da Lei n.°
28/82, de 15 de Novembro, vulgarmente designada por Lei do Tribunal
Constitucional (LTC);
2. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da decisão que recusou a
aplicação de norma do actual Código das Expropriações - art. 26.°, n.° 12 -
violando não só o Princípio da Justa e Igual Indemnização, previsto nos arts.
62.° e 13.° da CRP, mas também as mais elementares regras urbanísticas,
designadamente as definidas na LBPOTU e RJIGT (arts. 11.0 da LBPOTU - Lei 48/98,
actualizada - e 3.°, n.° 2 do RJIGT - DL 380/99, devidamente actualizado) bem
como o disposto no art. 8.° do DL 196/1989 (entretanto revogado pelo DL
73/2009).
3. O entendimento que é feito na decisão recorrida sobre a norma do n.º 12 do
art. 26.º e sobre a aplicação em concreto do disposto nos arts. 25.°, n.º 1 b) e
27.°, todos do Código das Expropriações, viola o Princípio da Justa e Igual
Indemnização e os arts. 2.°, 13.°, 62.° e 266.° da Constituição da República
Portuguesa.
4. A questão da inconstitucionalidade foi expressamente suscitada nos autos, nas
alegações de recurso, a fis.., conforme se pode constatar nas conclusões
apresentadas sob os n.°s. 3, 4, 5, 26, 28, 29, 30, 32, 42, 43, 44, 48 e 52 (ver
sua transcrição na própria sentença aqui em causa). [...]”.
4. Na sequência, foi proferida pelo relator neste Tribunal, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na
redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária de não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte agora
relevante, o seu teor:
“Importa, antes de mais, decidir se se pode conhecer do objecto do recurso, uma
vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr.,
art. 76º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional - LTC).Vejamos.
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, que delimita
o respectivo objecto, a recorrente refere pretender ver apreciada “a
inconstitucionalidade da decisão que recusou a aplicação de norma do actual
Código das Expropriações [...]”. É evidente, contudo que, por mais do que uma
razão, como veremos já de seguida, se não pode conhecer de um recurso com este
objecto. Na verdade, nos termos do artigo 72º, nº 2, da LTC, o recurso previsto
na alínea b) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma respeita à
constitucionalidade de normas e só pode ser interposto “pela parte que haja
suscitado a questão de inconstitucionalidade […] de modo processualmente
adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida […]”. Quer isto
dizer, em síntese, que a admissibilidade do recurso ali previsto depende de se
tratar de uma questão de constitucionalidade normativa e de o recorrente ter
confrontado o tribunal a quo, antes de ter sido proferida a decisão recorrida,
com a questão da inconstitucionalidade da norma – ou, se for o caso, da
interpretação normativa – que, nos termos do requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade pretende ver apreciada. Ora, nestes autos, é
manifesto que tal se não verifica.
4.1. Em primeiro lugar, porque a forma como a requerente delimita o objecto do
recurso no seu requerimento de interposição não corresponde, sequer, à
formulação de uma questão de constitucionalidade normativa. De facto, do
requerimento supra transcrito resulta que a recorrente questiona, do ponto de
vista da sua constitucionalidade, não uma norma jurídica, mas sim a decisão
judicial que decidiu a causa em sentido que lhe é adverso. Ora, como o Tribunal
tem reiteradamente afirmado, estando em causa a própria decisão em si mesma
considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto no artigo
280º da Constituição e no artigo 70º da Lei n.º 28/82.
4.2. Em segundo lugar, porque, mesmo que a recorrente tivesse pretendido, embora
sem porventura o conseguir, questionar não uma decisão judicial, mas uma norma
jurídica, sempre seria necessário, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 72º
da LTC, que tivesse suscitado, “de modo processualmente adequado perante o
Tribunal que proferiu a decisão recorrida”, a questão de constitucionalidade
normativa que agora pretendesse ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Afirma o recorrente que o terá feito nas conclusões do recurso apresentadas sob
os n.°s. 3, 4, 5, 26, 28, 29, 30, 32, 42, 43, 44, 48 e 52, que supra
transcrevemos. Sem razão, porém. Na verdade, basta ler as conclusões transcritas
para concluir, de modo absolutamente óbvio, que nenhuma questão de
constitucionalidade normativa é aí suscitada, apenas se questionando a decisão
que lhe fora desfavorável.
5. Em face do exposto, torna-se evidente que não estão preenchidos os
pressupostos de admissibilidade do recurso para este Tribunal, pelo que dele se
não pode conhecer.”
5. Inconformada, a recorrente reclama para a conferência, dizendo, nomeadamente,
o seguinte:
“[...] foi intenção da Recorrente a apreciação da constitucionalidade dessa
norma do art. 26.°, n.° 12 do Código das Expropriações, com a interpretação
restritiva que o Tribunal de 1ª Instância lhe deu e a Relação confirmou, o que,
conforme claramente demonstra o despacho da Relação do Porto de admissão do
recurso para o Tribunal Constitucional, foi sempre convicção de todos os agentes
de Justiça envolvidos...
7. A questão da constitucionalidade levantada pela Recorrente, embora se admita
que a forma de a suscitar não foi a mais clara, foi sendo desatendida pelos
Tribunais Judiciais, redundando em sentenças que violam a Constituição da
República Portuguesa na exacta medida em que interpretam restritivamente o n.°
12 do art. 26.° do Código das Expropriações...
8. Foi isso e apenas isso que se quis demonstrar no Recurso para a Relação e,
depois, no recurso para o Tribunal Constitucional, pelo que pugnamos pela
admissão do recurso. [...]
[...] admitindo-se, como se disse, que a forma de a suscitar não foi, de facto,
a mais clara e evidente, não pode deixar de admitir-se, também, que pela leitura
de todo o processado resulta clara a intenção da Recorrente: pôr em causa a
interpretação que o Tribunal a quo dá do art. 26.°, n.° 12 do Código das
Expropriações no caso concreto (estamos em sede de fiscalização concreta e não
abstracta, pelo que necessariamente, até para explicar os fundamentos pelos
quais se julga a inconstitucionalidade da norma com a interpretação que dela se
dá, teria de ser invocada a decisão judicial em apreço),
11. Interpretação restritiva que gera a inconstitucionalidade da norma, como se
pretendeu explicar sumariamente nas conclusões do recurso para a Relação, sob os
n. °s 42, 43 e 44.[...]
[...] 13. Concluindo, embora se admita a menor clareza do recurso, forçoso é
conceder que o mesmo deverá ser admitido, até pela importância da questão
suscitada, pois a constitucionalidade do art. 26. °, n.° 12 do Código das
Expropriações, em casos como o aqui em crise, assume especial relevância
jurídica, económica e social. [...]”
6. Notificado para responder, querendo, o Município de Santo Tirso, ora
reclamado, sustentou, no essencial, que o recurso não deveria ser admitido, o
que implica a improcedência da reclamação.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
7. Na decisão sumária reclamada decidiu-se não conhecer do objecto do recurso
com um duplo fundamento: não estar colocada qualquer questão de
constitucionalidade normativa, nem ter sido suscitada, em caso algum, de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
qualquer questão de constitucionalidade normativa susceptível de integrar o
recurso interposto.
Vem agora a ora reclamante afirmar que tinha a intenção de “pôr em causa a
interpretação que o Tribunal a quo dá do art. 26.°, n.° 12 do Código das
Expropriações no caso concreto” e sustentar que, “embora com menor clareza do
recurso”, suscitou expressamente uma questão de constitucionalidade que deve ser
conhecida. Sem razão, porém.
Na verdade, como já se afirmara na decisão reclamada e aqui se reitera, ainda
que se admitisse que a ora reclamante pretendera pôr em causa uma “norma”, o
facto é que o recurso não pode, nos termos do artigo 72º, n.º 2, da LTC,
prosseguir. De facto, lendo as conclusões (acima transcritas) onde,
alegadamente, terá sido suscitada a questão de constitucionalidade, verifica-se
que, conforme se verificou na decisão reclamada, nenhuma questão de
constitucionalidade normativa foi nelas suscitada, pelo que ao recurso falta um
pressuposto de admissibilidade, sem o qual está vedado ao Tribunal
Constitucional conhecer do respectivo objecto.
Apenas duas notas sobre a reclamação: a primeira para referir que o facto de uma
alegada inconstitucionalidade da decisão ter sido eventualmente discutida nas
instâncias, como o deve ser, não abre via de recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade para este Tribunal; a segunda para esclarecer que, entre os
pressupostos de admissibilidade deste recurso de fiscalização concreta da
constitucionalidade não está presente uma alegada “especial relevância jurídica,
económica e social” da questão.
III. Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando-se a
decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos