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Processos n.ºs 733/07 e 1186/07
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I - Relatório
A) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º 733/07
1. Requerente e objecto do pedido
Um grupo de trinta e três deputados à Assembleia da República apresentou um
pedido de apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade e ilegalidade da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, que
estabelece a “Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da
gravidez”.
Para além de terem suscitado a inconstitucionalidade formal da referida Lei,
alegaram os requerentes que ela “consagra diversas soluções inconstitucionais”.
Ainda que se requeira genericamente, no pedido, a apreciação da conformidade
constitucional da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, sem especificar as
disposições alegadamente feridas de inconstitucionalidade material, é possível
extrair do teor da fundamentação que as soluções impugnadas são as contidas no
artigo 1.º, que dá nova redacção ao artigo 142.º do Código Penal – na parte em
introduz, neste preceito, a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 –, no
artigo 2.º, n.º 2, e no artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
Uma vez que um perfeito entendimento do alcance dos preceitos visados pelo
pedido postula a intelecção do contexto normativo em que eles se inserem,
transcrevemos integralmente, de seguida, a Lei n.º 16/2007, com excepção da
parte em que deixa intocado o artigo 142.º do Código Penal:
Artigo 1.º
Alteração do Código Penal
O artigo 142.º do Código Penal, com a redacção que lhe foi introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, e pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho,
passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 142.º
[…]
1- Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua
direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido
e com o consentimento da mulher grávida, quando:
a) ………………………………………………….. .
b) ………………………………………………….. .
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma
incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas
primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos
inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) ………………………………………………….. .
e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez.
2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da
gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da
intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a
interrupção é realizada, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
3 - Na situação prevista na alínea e) do n.º 1, a certificação referida no
número anterior circunscreve-se à comprovação de que a gravidez não excede as 10
semanas.
4 - O consentimento é prestado:
a) Nos casos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 1, em documento assinado pela
mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima
de três dias relativamente à data da intervenção;
b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher
grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até
ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a
três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a
facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua
decisão livre, consciente e responsável.
5 - No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz,
respectiva e sucessivamente, conforme os casos, o consentimento é prestado pelo
representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por
quaisquer parentes da linha colateral.
6 - Se não for possível obter o consentimento nos termos dos números anteriores
e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico
decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do
parecer de outro ou outros médicos.
7 - Para efeitos do disposto no presente artigo, o número de semanas de gravidez
é comprovado ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges
artis.»
Artigo 2.º
Consulta, informação e acompanhamento
1 - Compete ao estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido onde
se pratique a interrupção voluntária da gravidez garantir, em tempo útil, a
realização da consulta obrigatória prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo
142.º do Código Penal e dela guardar registo no processo próprio.
2 - A informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal é definida por portaria, em termos a definir pelo Governo, devendo
proporcionar o conhecimento sobre:
a) As condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção
voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher;
b) As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à
maternidade;
c) A disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de
reflexão;
d) A disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o
período de reflexão.
3 - Para efeitos de garantir, em tempo útil, o acesso efectivo à informação e,
se for essa a vontade da mulher, ao acompanhamento facultativo referido nas
alíneas c) e d) do número anterior, os estabelecimentos de saúde, oficiais ou
oficialmente reconhecidos, para além de consultas de ginecologia e obstetrícia,
devem dispor de serviços de apoio psicológico e de assistência social dirigidos
às mulheres grávidas.
4 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se
pratique a interrupção voluntária da gravidez garantem obrigatoriamente às
mulheres grávidas que solicitem aquela interrupção o encaminhamento para uma
consulta de planeamento familiar.
Artigo 3.º
Organização dos serviços
1 - O Serviço Nacional de Saúde deve organizar-se de modo a garantir a
possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez nas condições
e nos prazos legalmente previstos.
2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos em que
seja praticada a interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma
adequada para que a mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente
previstos.
Artigo 4.º
Providências organizativas e regulamentares
1 - O Governo adoptará as providências organizativas e regulamentares
necessárias à boa execução da legislação atinente à interrupção voluntária da
gravidez, designadamente por forma a assegurar que do exercício do direito de
objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde não resulte
inviabilidade de cumprimento dos prazos legais.
2 - Os procedimentos administrativos e as condições técnicas e logísticas de
realização da interrupção voluntária da gravidez em estabelecimento de saúde
oficial ou oficialmente reconhecido são objecto de regulamentação por portaria
do Ministro da Saúde.
Artigo 5.º
Dever de sigilo
Os médicos e demais profissionais de saúde, bem como o restante pessoal dos
estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, em que se
pratique a interrupção voluntária da gravidez, ficam vinculados ao dever de
sigilo profissional relativamente a todos os actos, factos ou informações de que
tenham conhecimento no exercício das suas funções, ou por causa delas,
relacionados com aquela prática, nos termos e para os efeitos dos artigos 195.º
e 196.º do Código Penal, sem prejuízo das consequências estatutárias e
disciplinares que no caso couberem.
Artigo 6.º
Objecção de consciência
1 - É assegurado aos médicos e demais profissionais de saúde o direito à
objecção de consciência relativamente a quaisquer actos respeitantes à
interrupção voluntária da gravidez.
2 - Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de
consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção
voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do
n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas
a que haja lugar durante o período de reflexão.
3 - Uma vez invocada a objecção de consciência, a mesma produz necessariamente
efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o
objector preste serviço.
4 - A objecção de consciência é manifestada em documento assinado pelo
objector, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao director clínico ou
ao director de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objector
preste serviço e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez.
Artigo 7.º
Revogação
São revogadas as Leis n.ºs 6/84, de 11 de Maio, e 90/97, de 30 de Julho.
Artigo 8.º
Regulamentação
O Governo procede à regulamentação da presente lei no prazo máximo de 60 dias.
2. Fundamentação do pedido
Os requerentes fundamentaram o pedido nos seguintes termos:
2.1. Inconstitucionalidade formal da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril
- A Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, foi aprovada na sequência de um referendo
sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, realizado a 11 de Fevereiro de 2007,
o qual não logrou obter a participação de votantes necessária para que o mesmo
revestisse carácter juridicamente vinculativo.
- Na verdade, o artigo 115.º, n.º 11, da CRP, estabelece que “o referendo só tem
efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos
eleitores inscritos no recenseamento”, o que não se verificou.
- Não tendo sido obtido esse “quorum”, a proposta de alteração legislativa
apresentada aos eleitores não colheu legitimação referendária para prosseguir.
- A CRP não admite o referendo consultivo e o princípio da legalidade, a que
estão sujeitos os órgãos de soberania, exige que sejam retiradas consequências
de um referendo não vinculativo.
- No cumprimento do estatuído na CRP, o resultado eleitoral do Referendo sobre o
aborto não permite alterar a respectiva Lei (ou o Código Penal), sob pena de
inconstitucionalidade formal por violação do disposto no artigo 115.º, n.ºs 1 e
11, da CRP.
- A Assembleia da República tem legitimidade parlamentar para fazer leis,
podendo alterar o Código Penal.
- Contudo, no caso do aborto, a maioria dos deputados não está materialmente
mandatada pelo Povo para alterar a respectiva Lei.
- A soberania reside no povo e este exerce-a, entre outras formas, através do
voto, nomeadamente na escolha que faz dos programas partidários submetidos a
sufrágio.
- Os partidos que compõem a larga maioria do Parlamento (PS e PSD), nos últimos
programas eleitorais com que se apresentaram a eleições legislativas, declararam
submeter esta matéria à deliberação directa do Povo, tendo-se comprometido a só
alterar a Lei em causa por referendo.
- Através do respectivo programa eleitoral, os partidos celebram pactos com os
eleitores.
- O mandato conferido ao actual parlamento não legitima a alteração da Lei da
Interrupção Voluntária da Gravidez no decurso da mesma legislatura em que foi
realizado o referendo que não teve efeito vinculativo.
- A aprovação da Lei n.º 16/2007 à revelia do voto vinculativo do Povo fere a
soberania popular, correspondendo à violação do disposto nos artigos 1.º a 3.º,
108.º e 109.º da CRP.
2.2. Inconstitucionalidade material das normas constantes dos artigos 1.º, 2.º,
n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril
2.2.1. Artigo 1.º
- No seu artigo 24.º, n.º 1, a CRP estatui que a vida humana é inviolável, não
excepcionando as primeiras dez semanas de gestação.
- Consequência da garantia da vida humana intra-uterina é o reconhecimento de
que o Estado Português está, não só obrigado a abster-se de violar a vida humana
pré-natal, como também a instituir formas destinadas à sua protecção.
- O ordenamento jurídico português confere protecção à vida humana desde a
concepção, incluindo a atribuição de direitos, o que foi já reconhecido por este
Tribunal (Acórdão n.º 617/2006).
- A Lei Fundamental da República Portuguesa não deixa quaisquer dúvidas sobre a
indispensabilidade de uma base antropológica constitucionalmente estruturante do
Estado de Direito (artigos 1.º e 2.º), contemplando a afirmação da integridade
física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade
autonomamente responsável (CRP, artigos 24.º, 25.º e 36.º), bem como a garantia
da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da
personalidade (cfr. a consagração explícita desse direito no artigo 26.º da CRP,
introduzido pela LC n.º 1/97, e a refracção do mesmo direito no artigo 73.º, n.º
2, da CRP).
- A alteração ao artigo 142.º do Código Penal introduzida pelo artigo 1.º da Lei
n.º 16/2007, de 17 de Abril, consistente no aditamento da alínea e) ao
respectivo n.º 1, permite a uma mulher pôr fim à vida de um ser humano em
desenvolvimento intra-uterino sem que para tal invoque fundamentos, o que
significa deixar totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas.
- A possibilidade de se praticar aborto sem alegação de motivos, equivale a
conferir a uma ser (Mãe) o direito a decidir da vida de outrem, ainda que por
motivos fúteis.
- Tal alteração impõe ao Estado que contribua para a eliminação de vidas humanas
(através, por exemplo, do SNS e das prestações sociais inerentes – artigo 35.º,
n.º 6, do Código do Trabalho) sem que para tal seja necessário alegar quaisquer
razões ou fundamentos, o que atenta contra a base antropológica
constitucionalmente estruturante do Estado de Direito, violando desse modo o
disposto nos artigos 26.º e 73.º, n.º 2, da CRP.
- O aborto constitui para a mulher uma fonte de doença gravíssima – o trauma
pós-aborto.
- Ao Estado cabe fazer cumprir e implementar o direito à saúde.
- Ao admitir-se a realização do aborto nas condições fixadas no artigo 142.º,
n.º 4, alínea b), do Código Penal, na versão conferida pela Lei n.º 16/2007, de
17 de Abril, permite-se que as mulheres corram este risco de doença para o resto
da vida, colocando-se em causa o disposto no artigo 66.º, n.º 1, bem como o
disposto no artigo 64.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), da CRP.
- Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e
mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o
regime fixado na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função
de solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando, assim, o
disposto nos artigos 64.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), e 66.º, n.º 1, da CRP.
- Em matéria de tutela da vida, o Estado limita-se a informar a mulher das
condições de apoio que lhe pode prestar, concedendo-lhe três dias para que
reflicta sobre a sua decisão.
- Atendendo à dignidade constitucional da vida humana, não parece que a sua
lesão irreversível possa ser compatibilizada com um prazo tão curto de reflexão.
- Através do seu artigo 67.º, alínea d), a Constituição garante o exercício da
maternidade e paternidade conscientes, estabelecendo, por sua vez, o respectivo
artigo 68.º que a maternidade e a paternidade constituem valores sociais
eminentes.
- O princípio da igualdade fixado para o exercício da parentalidade trespassa
todo o direito constitucional (artigos 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5, 67.º e 68.º, da
CRP).
- A Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, deixa o progenitor masculino totalmente
arredado da responsabilidade e processo de formação da decisão no aborto,
violando-se desta forma os artigos 1.º, 2.º, 24.º, 67.º, alínea d), da CRP, bem
como o princípio da igualdade fixado nos artigos 13.º e 36.º, n.ºs 3 e 5, da Lei
Fundamental.
2.2.2. Artigo 2.º, n.º 2
- Ao permitir a realização do aborto até às 10 semanas, por opção da mulher, o
legislador resolveu excluir a reacção penal como instrumento de tutela da vida
humana pré-natal, dentro desse período.
- Ao estabelecer como condição única dessa realização uma prévia consulta médica
informativa, a Lei assegura a liberdade da mulher mas despreza, de forma
constitucionalmente intolerável, o cumprimento do dever que vincula o Estado à
protecção da vida humana do nascituro.
- A solução assim encontrada pelo legislador para o conflito entre os bens
constitucionais vida humana pré-natal por um lado, e personalidade e liberdade
da mulher, por outro, satisfaz apenas uma das partes do conflito.
- Ainda que se admita, em última análise, que estamos em presença de uma
situação de conflito e ponderação de valores – o da liberdade da mãe e o da vida
do embrião – e, em tal perspectiva, que o primeiro deverá prevalecer sobre o
segundo, isso não significa que se não deva procurar o equilíbrio possível e,
portanto, o menor sacrifício possível da vida embrionária.
- A consulta informativa não é idónea ao fim a que se destina – tutela da vida
humana intra-uterina –, privilegiando desnecessariamente um dos bens
constitucionais em conflito – o valor da liberdade de escolha da mulher – e em
nada acautelando o outro dos valores em presença – a vida do feto.
- A consulta meramente informativa não permite ter por cumprido o dever de
protecção da vida intra-uterina a que o Estado Português se encontra vinculado,
o qual não ficará plenamente cumprido sem que a mulher grávida tenha acesso a um
aconselhamento prestado por uma entidade diferente daquela que se propõe
realizar a interrupção da gravidez.
- É dever do Estado aconselhar a mulher a não realizar o aborto e a decidir pela
preservação da vida.
- Sem a realização deste aconselhamento, o Estado Português queda-se indiferente
e neutro perante a ameaça à vida humana, posição que não é compatível com o
dever de protecção da vida humana.
- O artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 atenta, por isso, contra os artigos 24.º, 66.º
e 67.º, da CRP, bem como contra a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
- No artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, na redacção da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril, diz-se que a primeira consulta é destinada a facultar à
mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão
livre, consciente e responsável.
- Porém, da disciplina no n.º 2 do artigo 2.º resulta ser apenas obrigatório
proporcionar à mulher o conhecimento sobre as consequências da efectuação, no
caso concreto, de eventual interrupção voluntária da gravidez e suas
consequências para a saúde da mulher, nada se dizendo quanto ao embrião.
- A informação a prestar pelo Estado não contempla a indicação das condições de
apoio que instituições não estaduais prestam à prossecução da gravidez e à
maternidade, nem do regime de adopção vigente em Portugal, tal como não prevê a
exibição de imagem ecográfica do feto.
- A exclusão de tais indicações do âmbito do conteúdo informativo da consulta
constitui uma violação do princípio da proporcionalidade.
- Da mesma disciplina decorre, relativamente à informação relativa às condições
que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da maternidade (alínea b)) e à
disponibilidade de acompanhamento por técnico do serviço social, durante o
período de reflexão (alínea d)), que: não é obrigatório fornecê-la, mas apenas
informar a grávida acerca dos meios de a obter; mesmo que esta escolha tê-la,
tal informação não será fornecida directamente, mas através de um técnico
social; tal informação será prestada dentro de um acompanhamento de contornos
indefinidos à partida.
- O artigo 2.º, n.º 2, estabelece, assim, um sistema baseado na selectividade da
informação prévia ao consentimento, na assimetria informativa e na natureza
triplamente indirecta da informação a prestar, consagrando um regime
discriminado de informação face aos princípios constitucionais da igualdade e da
proporcionalidade, que proíbem diferenciações legais arbitrárias e, desse modo,
atentando contra o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1,
da CRP.
- Uma vez que se baseia na incompletude da informação a prestar à grávida e
aquela consiste num meio de manipulação e de obliteração da liberdade, o sistema
informativo estabelecido no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, não preserva o valor constitucional que pretende tutelar, ou seja, a
liberdade de escolha da mulher.
- O regime consagrado nos artigos 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal e 2.º
da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, conflitua por isso com os direitos
constitucionais à liberdade e proporcionalidade, tornando-se deste ponto de
vista sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1 e 27.º, n.º 1, da
CRP.
- Através do disposto no respectivo artigo 2.º, n.º 2, a Lei n.º 16/2007, de 17
de Abril, permite a sua regulamentação por portaria, o que, estando em causa
matéria de direitos fundamentais, fere o disposto nos artigos 67.º, n.º 1,
112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
2.2.3. Artigo 6.º, n.º 2
- A disciplina constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, ao excluir das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º,
do Código Penal, os médicos objectores de consciência – e por isso mais próximos
da principiologia do artigo 24.º da Constituição –, contém, relativamente a
estes, um tratamento discriminatório, designadamente no que toca ao acesso a
cargos em estabelecimentos públicos.
- Tal regime, para além de desconforme à Declaração Universal dos Direitos do
Homem e Convenções Internacionais, aplicáveis por força do artigo 8.º da CRP,
viola, quer o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, quer os
artigos 25.º (integridade pessoal dos médicos), e 26.º (bom nome e reputação dos
médicos) da CRP.
3. Resposta do autor das normas
Notificada para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, a Assembleia da
República, por intermédio do respectivo Presidente, entregou cópia do Projecto
de Lei n.º 19/X, dos Diários da Assembleia da República em que foram publicados
os demais trabalhos preparatórios da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e do
Diário da República, 1ª Série, de 17 de Abril de 2007, onde esta veio a ser
publicada.
No mais, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
B) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º 1186/07
4. Requerente e objecto do pedido
O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira veio
requerer a declaração de inconstitucionalidade e ilegalidade, com força
obrigatória geral, dos artigos 1.º – este na parte em que acrescenta a nova
alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código Penal, e dá origem às restantes
normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei
n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º,
7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º,
23.º e 24.º da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
As normas da Lei n.º 16/2007 impugnadas já foram reproduzidas (supra, ponto 1.).
Os preceitos da Portaria objecto do pedido de declaração de
inconstitucionalidade (todos eles, excepto os expressos nos artigos 12.º e 20.º)
têm o seguinte teor:
Portaria n.º 741-A/2007 de 21 de Junho
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Objecto e âmbito de aplicação
A presente portaria estabelece as medidas a adoptar nos estabelecimentos de
saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos com vista à realização da
interrupção da gravidez nas situações previstas no artigo 142.º do Código Penal.
Artigo 2.º
Estabelecimentos de saúde
A interrupção da gravidez pode ser efectuada nos estabelecimentos de saúde
oficiais e nos estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos.
Artigo 3.º
Acesso
1 - A mulher pode livremente escolher o estabelecimento de saúde oficial onde
deseja interromper a gravidez, dentro dos condicionamentos da rede de
referenciação aplicável.
2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de saúde primários devem
actuar de acordo com os protocolos estabelecidos pela respectiva unidade
coordenadora funcional.
Artigo 4.º
Consentimento livre e esclarecido
O consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez é prestado
pela mulher grávida, ou seu representante nos termos da lei, em documento
escrito, normalizado, cujo modelo consta do anexo I a esta portaria, que dela
faz parte integrante.
Artigo 5.º
Presença de outra pessoa
A mulher grávida pode fazer-se acompanhar por outra pessoa durante os actos e
intervenções regulados pelo presente diploma, desde que seja essa a sua vontade.
Artigo 6.º
Acompanhamento e apoio psicológico e social
1 - Se for essa a vontade da mulher, deve ser disponibilizado o acesso atempado
a acompanhamento por psicólogo ou por assistente social.
2 - Para garantir o disposto no número anterior, o conselho de administração do
estabelecimento de saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de
cuidados de saúde primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde
oficialmente reconhecido, conforme o caso, assegura a existência de
profissionais com as competências necessárias e adequadas para prestar apoio às
mulheres grávidas.
Artigo 7.º
Urgência
Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos para a
realização da interrupção da gravidez que não disponham de serviço de urgência
com atendimento permanente vinte e quatro horas por dia devem acordar, com, pelo
menos, um estabelecimento de saúde de cuidados diferenciados que esteja a uma
distância-tempo inferior a uma hora, a assistência médico-cirúrgica, sem
reservas, às mulheres com complicações decorrentes da interrupção da gravidez.
Artigo 8.º
Registo obrigatório
1 - Todas as interrupções de gravidez, cirúrgicas ou medicamentosas, efectuadas
ao abrigo do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, são de declaração
obrigatória à Direcção-Geral da Saúde, através do registo da interrupção da
gravidez, cujo modelo consta do anexo II a esta portaria, que dela faz parte
integrante.
2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se
realize interrupção da gravidez devem solicitar à Direcção-Geral da Saúde o
registo e a senha de acesso ao formulário electrónico para o cumprimento dessa
obrigação.
3 - Os dados constantes do registo referido no n.º 1 são anónimos, confidenciais
e têm apenas fins estatísticos de saúde pública.
Artigo 9.º
Dados pessoais
1 - A mulher presta autorização escrita quanto à utilização posterior dos seus
dados pessoais relativos à interrupção da gravidez.
2 - Os dados pessoais que não façam parte do processo clínico nem tenham
relevância do ponto de vista clínico devem ser destruídos no prazo de três meses
a contar do dia da interrupção da gravidez.
Artigo 10.º
Dever de sigilo
Os médicos, outros profissionais de saúde e demais pessoas que trabalhem nos
estabelecimentos de saúde onde se realize a interrupção da gravidez, ou que com
eles colaborem, estão obrigados ao dever de sigilo relativamente a todos os
actos, factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas
funções, ou por causa delas.
Artigo 11.º
Cumprimento dos prazos
Em quaisquer circunstâncias, o conselho de administração do estabelecimento de
saúde oficial, o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde
primários ou o responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente
reconhecido, conforme o caso, adoptam todas as providências necessárias ao
cumprimento dos prazos previstos na lei para a interrupção da gravidez.
CAPÍTULO II
Estabelecimentos de saúde oficiais
Artigo 13.º
Organização
1 - Os responsáveis pelos estabelecimentos de saúde oficiais de cuidados de
saúde primários devem organizar o acesso e a realização de interrupções da
gravidez, nas situações previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 142.º
do Código Penal, de acordo com os protocolos estabelecidos pela respectiva
unidade coordenadora funcional.
2 - Os conselhos de administração dos estabelecimentos de saúde oficiais com
departamento ou serviço de ginecologia/obstetrícia, nos quais têm lugar as
interrupções cirúrgicas da gravidez, deve:
a) Organizar o departamento ou serviço de ginecologia/obstetrícia com vista à
realização de interrupções da gravidez nas situações previstas nas alíneas a) a
e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal;
b) Estabelecer, sob coordenação da administração regional de saúde
territorialmente competente, acordos de articulação com os cuidados de saúde
primários, no âmbito das unidades coordenadoras funcionais.
3 - Compete ao conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial
garantir os procedimentos administrativos e as condições técnicas e logísticas
apropriados à realização da interrupção da gravidez nas circunstâncias
legalmente permitidas, assim como os meios necessários ao imediato acesso a um
método contraceptivo após a interrupção, quando adequado.
CAPÍTULO III
Estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos
Artigo 14.º
Reconhecimento
1 - A Direcção-Geral da Saúde é a entidade competente para reconhecer a aptidão
dos estabelecimentos de saúde para a realização da interrupção da gravidez.
2 - Compete à administração regional de saúde territorialmente competente a
instrução do processo de reconhecimento e a verificação dos requisitos mínimos
de que depende o reconhecimento dos estabelecimentos de saúde para a realização
de interrupção da gravidez.
Artigo 15.º
Condições
1 - O reconhecimento referido no artigo anterior obedece às condições técnicas e
logísticas definidas no anexo VI a esta portaria, que dela faz parte
integrante.
2 - Sem prejuízo dos requisitos e procedimentos previstos na lei e na presente
portaria, nomeadamente nos artigos 6.º, 16.º e 19.º, consideram-se
reconhecidos:
a) Os estabelecimentos de saúde oficiais;
b) Os demais estabelecimentos de saúde que possuam bloco operatório e sala de
recobro já licenciados e que declarem, junto da Direcção-Geral da Saúde, o
cumprimento das disposições legais e regulamentares aplicáveis.
3 - A declaração referida na alínea b) do número anterior é afixada em local
visível e acessível aos utentes do estabelecimento em causa.
CAPÍTULO IV
Interrupção da gravidez por opção da mulher
Artigo 16.º
Consulta prévia
1 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o
responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o
responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o
caso, devem garantir a realização em tempo útil da consulta referida na alínea
b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal e dela assegurar registo em processo
próprio.
2 - Entre o pedido de marcação e a efectivação da consulta não deve decorrer um
período superior a cinco dias, sem prejuízo do cumprimento dos prazos legais.
3 - No âmbito da consulta, o médico, ou outro profissional de saúde habilitado,
deve prestar todas as informações e os esclarecimentos necessários à mulher
grávida ou ao seu representante legal, tendo em vista uma decisão livre,
consciente e responsável, designadamente sobre:
a) O tempo da gravidez;
b) Os métodos de interrupção adequados ao caso concreto;
c) As eventuais consequências para a saúde física e psíquica da mulher;
d) As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à
maternidade;
e) A existência de um período obrigatório de reflexão;
f) A disponibilidade de acompanhamento psicológico e por técnico de serviço
social durante o período de reflexão;
g) Os métodos contraceptivos.
4 - Os esclarecimentos referidos no número anterior devem, preferencialmente,
ser acompanhados de informação escrita, desde que tecnicamente validada pelo
Ministério da Saúde.
5 - O profissional de saúde que preste os esclarecimentos previstos no n.º 3
preenche a declaração que consta do anexo IV a esta portaria e que dela faz
parte integrante.
6 - O documento normalizado para prestar o consentimento, previsto no anexo I a
esta portaria, deve ser entregue à mulher grávida na consulta.
7 - Os atestados, relatórios e pareceres médicos legalmente exigidos devem ser
obtidos em tempo útil à realização da interrupção da gravidez dentro dos prazos
legalmente previstos.
Artigo 17.º
Comprovação da gravidez
A comprovação de que a gravidez não excede as 10 semanas é certificada por
médico, diferente daquele por quem ou sob cuja direcção a interrupção é
realizada, em documento normalizado, cujo modelo consta no anexo V a esta
portaria, que dela faz parte integrante.
Artigo 18.º
Período de reflexão
1 - Entre a consulta prévia e a entrega do documento sobre o consentimento livre
e esclarecido para a interrupção da gravidez deve decorrer um período de
reflexão não inferior a três dias.
2 - O documento a que se refere o número anterior pode ser entregue até ao
momento da interrupção da gravidez.
Artigo 19.º
Interrupção da gravidez
1 - Após a comprovação da gravidez e após a entrega do documento sobre o
consentimento livre e esclarecido para a interrupção da gravidez, assinado pela
mulher grávida, o conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial,
o responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o
responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o
caso, devem assegurar que a interrupção da gravidez se realiza dentro dos prazos
legais.
2 - Entre a entrega do documento sobre o consentimento livre e esclarecido para
a interrupção da gravidez e a interrupção da gravidez não deve decorrer um
período superior a cinco dias, salvo se a mulher solicitar um período superior,
dentro do prazo legal.
3 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos devem
garantir às mulheres que interrompam a gravidez:
a) A prescrição de um método contraceptivo, desde que adequado;
b) A marcação de uma consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar a
realizar no prazo máximo de 15 dias após a interrupção da gravidez.
4 - Os estabelecimentos de saúde oficiais hospitalares podem estabelecer, sob
coordenação da administração regional de saúde territorialmente competente,
acordos de articulação com os cuidados de saúde primários, no âmbito das
unidades coordenadoras funcionais, para garantir o seguimento posterior, em
consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar, das mulheres que realizaram
uma interrupção da gravidez.
5 - Os estabelecimentos de saúde oficialmente reconhecidos podem solicitar à
administração regional de saúde territorialmente competente a indicação de
estabelecimentos de saúde oficiais que garantam o seguimento posterior, em
consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar, das mulheres que realizaram
uma interrupção da gravidez.
CAPÍTULO VI
Disposições finais e transitórias
Artigo 21.º
Comunicação
1 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial, o
responsável pelo estabelecimento oficial de cuidados de saúde primários ou o
responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido, conforme o
caso, devem designar um responsável por contactar com a Direcção-Geral da Saúde
e com a administração regional de saúde territorialmente competente, quanto aos
assuntos respeitantes à interrupção da gravidez.
2 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial deve
comunicar à Direcção-Geral da Saúde e à administração regional de saúde
territorialmente competente, no prazo de 15 dias a contar da entrada em vigor
desta portaria, o responsável designado nos termos do número anterior.
3 - O responsável pelo estabelecimento de saúde oficialmente reconhecido deve
comunicar à Direcção-Geral da Saúde e à administração regional de saúde
territorialmente competente, com a antecedência de 15 dias relativamente ao
início dos processos com vista à realização da interrupção da gravidez, o
responsável designado nos termos do n.º 1.
4 - O conselho de administração do estabelecimento de saúde oficial deve
informar a Direcção-Geral da Saúde e a administração regional de saúde
territorialmente competente, no prazo de 15 dias, sobre:
a) A forma de acesso ao processo de interrupção da gravidez;
b) Os horários da consulta prévia.
Artigo 22.º
Sítio da Internet
A Direcção-Geral da Saúde disponibiliza, no seu sítio da Internet, uma área
destinada à interrupção da gravidez com os seguintes campos:
a) Lista actualizada dos estabelecimentos de saúde oficiais e oficialmente
reconhecidos que realizam interrupção da gravidez e respectivos contactos;
b) Informação sobre a forma de iniciar o processo de interrupção da gravidez;
c) Formulários e documentos normalizados;
d) Legislação aplicável.
Artigo 23.º
Auditoria, inspecção e fiscalização
1 - Compete à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde a realização de
auditorias, de inspecções e de fiscalizações aos estabelecimentos de saúde
oficialmente reconhecidos onde se realize interrupção da gravidez.
2 - A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde deve comunicar à administração
regional de saúde territorialmente competente e à Direcção-Geral da Saúde a
instauração dos processos relativos aos estabelecimentos de saúde oficialmente
reconhecidos onde se realize interrupção da gravidez, bem como a respectiva
conclusão.
Artigo 24.º
Entrada em vigor
A presente portaria entra em vigor no dia 15 de Julho de 2007.
5. Fundamentação do pedido
Os requerentes justificaram a sua legitimidade processual activa por estar em
causa a protecção de direitos autonómicos, no caso da Região Autónoma da
Madeira.
Arguem que a entidade que solicita este pedido de fiscalização – o Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira – é uma das entidades
mencionadas no artigo 281.º, n.° 2, alínea g), da Constituição da República
Portuguesa, como estando constitucionalmente habilitadas a requerer a
fiscalização da constitucionalidade – no tocante à defesa dos direitos regionais
– e da legalidade – no que é atinente à violação do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
Apontaram, quer vícios de inconstitucionalidade material, quer vícios de
inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal, com os fundamentos a seguir
indicados.
5.1. Inconstitucionalidade material
5.1.1. Por violação da norma constitucional que consagra o direito à vida
- As normas objecto do pedido de fiscalização da constitucionalidade violam o
direito fundamental à vida, consagrado no artigo 24.°, n.° 1, da Constituição,
no qual se afirma que “A vida humana é inviolável”.
- A substância das ditas normas – quer da norma legal principal de
despenalização do aborto livre ou a pedido, quer das normas periféricas,
legislativas e regulamentares, que tornam legitima e organizada tal prática –
jamais poderá conciliar-se com aquela protecção fundamental da pessoa humana.
- Tal prática abortiva – a partir de agora despenalizada e livre – configura a
destruição de uma vida humana.
- A Lei n.º 16/2007, ao permitir que a prática do aborto seja feita apenas por
opção da mulher, sem que para tanto apresente qualquer justificação material –
seja ela médica, económica ou social – transfere a decisão de abortar para o
mero arbítrio da mãe, sem qualquer protecção do bebé que vai ver o fim da sua
vida.
- A protecção penal é a resposta mais convincente que o Direito pode dar na
defesa daquilo que lhe é mais essencial, não parecendo que outra coisa mais
relevante surja do que a protecção da própria vida humana.
- A desprotecção penal, sendo uma legalização, não é substituída por qualquer
outra protecção equivalente que possa ombrear com a protecção penal, deixando o
valor em causa – a vida humana pré-natal – entregue à disponibilidade das
pessoas, sem que o Estado actue na sua defesa, que tem de ser legislativa,
administrativa e financeira.
- Sabendo-se que continua a ser crime a mesma prática abortiva feita, com os
mesmos fundamentos, em bebé que tenha 10 semanas e mais um dia, a despenalização
efectuada funda-se numa delimitação arbitrária e, por isso, juridicamente
insuportável.
- A norma constitucional em causa não deslinda entre vidas humanas “mais fortes”
e vidas humanas “mais fracas”, sabendo-se hoje com segurança, através da
Ciência, que a gravidez implica a existência de um novo ser humano, o qual é
gerado no momento da fecundação, não mais parando a sua evolução até ao momento
da sua morte física.
- É ontologicamente que se deve sempre conceber a vida humana, a qual deve
receber uma protecção qualitativamente idêntica desde o momento em que aparece,
que é a partir da concepção, mesmo ainda quando não há nidificação do óvulo
fecundado.
5.1.2. Por violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana
- A violação da inviolabilidade da pessoa humana, considerada no artigo 24.°,
n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, que consagra o «direito à vida»,
não se apresenta como uma ofensa localizada a um mero preceito constitucional,
dado que o aborto despenalizado livre ou a pedido, admitido pela Lei n.°
16/2007, coloca em crise os fundamentos do próprio Estado e do Direito em
Portugal, ao ser intolerável sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana.
- O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa não podia ser mais
peremptório nesta protecção, proclamando que «Portugal é uma República soberana,
baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na
construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.
- A violação da dignidade da pessoa humana cifra-se na condição a que o bebé,
dentro do ventre materno, se sujeitará, até às 10 semanas de vida, depois da
entrada em vigor da Lei n.° 16/2007: a redução a mero “objecto”, que passa a ser
descartável pela mãe a partir do momento em que Estado e a Sociedade não o
defendem, atribuindo o “poder de vida e de morte” sobre uma vida humana àquela
progenitora.
- A atribuição desse “poder de vida e de morte”, sem qualquer justificação, tem
a conivência do próprio Estado, que para tanto organiza procedimentos
administrativos e médicos.
5.2. Inconstitucionalidade e ilegalidade orgânico-formal
5.2.1. Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação da autonomia
legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional, estatutária e
legalmente configurada
- A Lei n.° 16/2007, assim como a Portaria n.° 741-A/2007, apresentam-se com uma
vocação de aplicação territorial global – logo também no território madeirense
–, o que resulta em qualquer dos casos evidente por se referir “os
estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos”, sem distinção
entre estabelecimentos estaduais e regionais.
- Aqueles diplomas estaduais – um legislativo e o outro regulamentar – impõem
uma prática de aborto despenalizado, livre ou a pedido aos órgãos regionais, sem
que estes tenham dito o que quer que fosse no tocante à organização dos cuidados
de saúde pertinentes, há muitos anos regionalizados.
- A pretensão estadual de obrigar o sistema regional de saúde à prática do
aborto despenalizado, livre ou a pedido fora dos quadros da competente decisão
regional não respeita as regras e os princípios, constitucionais e
infra-constitucionais, aplicáveis, violando o núcleo da autonomia regional, que
permite a livre decisão pública em muitos dos respectivos domínios.
- O acesso à prestação do aborto despenalizado, livre ou a pedido corresponde a
uma tarefa que se situa, do ponto de vista da sua regulação jurídica, no âmbito
da competência regional, pois a «saúde» está enunciada como matéria de interesse
regional na alínea m) do art. 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região
Autónoma da Madeira.
- Essa vem a ser a realidade da saúde no território madeirense, devidamente
enquadrada pelo Sistema Regional de Saúde, que é essencialmente executado pelo
serviço regional de saúde, em desenvolvimento da Lei de Bases da Saúde, nunca
ninguém tendo questionado essa regionalização legislativa da saúde na Madeira.
- Por outro lado, a matéria da saúde não integra o conjunto das competências que
são constitucionalmente reservadas aos órgãos de soberania, sendo que a única
matéria próxima desta é a das “Bases do Serviço Nacional de Saúde”, matéria
descrita no art. 165°, n.° 1, alínea f), da Constituição da República
Portuguesa, cuja lei estadual respectiva – a Lei de Bases da Saúde –
expressamente aceita a criação do sistema regional de saúde.
- Acresce que, estando no ambiente dos direitos económicos, sociais e culturais,
a competência estadual não é exclusiva, ao contrário do que sucede em matéria de
direitos, liberdades e garantias, pois que estes são directamente referidos no
artigo 165.°, n.° 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa.
5.2.2 Inconstitucionalidade e ilegalidade por violação do direito,
constitucional e legal, de audição prévia das regiões autónomas
- A Região Autónoma da Madeira não foi auscultada na instrução do procedimento
legislativo de elaboração da Lei n.° 16/2007.
- Porém, o texto da Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 229.°,
n.° 2, atribui às regiões autónomas um direito constitucional de audição nas
mais relevantes matérias: “Os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente
às questões da sua competência respeitantes às Regiões Autónomas, os órgãos de
governo regional”.
- O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado
pela Lei n.° 130/99, de 21 de Agosto, particularizou este direito nos seus
artigos 90.° e seguintes, designadamente definindo o seu âmbito e indicando a
inconstitucionalidade e a ilegalidade dos actos normativos produzidos com a
violação do mesmo.
- A Lei n.° 40/96, de 31 de Agosto, de um modo mais completo, ainda que sem a
força própria de uma lei estatutária, viria a concretizar este direito
constitucionalmente consagrado, melhor configurando os respectivos contornos, ao
estabelecer no seu art. 4° que, nas matérias de cunho legislativo, é a
Assembleia Legislativa o órgão competente para ser ouvido.
- O ênfase que o legislador da República quis dar a este direito constitucional
expressa-se no vício cominado para os actos jurídico-públicos desrespeitadores
de tal direito, impondo no artigo 9.º da Lei n.° 40/96, de 31 de Agosto, que «A
não observância do dever de audição, nos termos da presente lei, por parte dos
órgãos de soberania, determina, conforme a natureza dos actos, a sua
inconstitucionalidade ou ilegalidade”.
- A Assembleia da República nunca ouviu a Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira na elaboração do diploma que viria a tornar-se a Lei n.° 16/
2007.
- A omissão de audição prévia por parte da Assembleia da República infringiu a
totalidade deste direito de audição, ao não lhe ter sido dada a oportunidade
sequer de uma mínima pronúncia, e impedindo-se assim de levar à consideração do
decisor legislativo os argumentos que este eventualmente devesse ponderar para
assumir uma solução definitiva.
6. Resposta dos autores das normas
6.1. Da Assembleia da República
Notificada para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas da
Lei n.º 16/2007, de 16 de Abril, acima identificadas, a Assembleia da República,
por intermédio do respectivo Presidente, optou por limitar o exercício do
respectivo direito de resposta ao suscitado vício de inconstitucionalidade e
ilegalidade por violação do direito, constitucional e legal, de audição prévia
das Regiões Autónomas (ponto 5.2.2.), oferecendo, em tudo o mais, o merecimento
dos autos.
No que respeita à referida suscitação, apresentou os argumentos seguintes:
- A Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, globalmente considerada, não é
manifestamente uma questão respeitante às Regiões Autónomas, nem, em especial, à
Região Autónoma da Madeira, tratando-se, ao invés, de uma Lei que, pela sua
natureza e pelo seu objecto, se destina a todo o país, sem excepção de regiões
ou parcelas.
- Por outro lado, também a Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, não se apresenta com
alguma especificidade ou particularidade relevante no que toca às Regiões
Autónomas, que tivesse obrigado à existência de audição das mesmas no processo
legislativo.
- Conforme abundante jurisprudência deste Tribunal, “o direito de audição
constitucionalmente garantido às Regiões Autónomas refere-se a actos que, sendo
da competência dos órgãos de soberania, incidam de forma particular sobre uma ou
ambas as Regiões ou versem sobre interesses predominantemente regionais”
(Acórdãos n.ºs 42/85, 284/86, 403/89, 670/99, 684/99, 243/2002).
- Tal como meridianamente espelhado no Acórdão n.º 529/2001, deste Tribunal, em
evocação do Parecer n.º 20/77, da Comissão Constitucional, “são questões da
competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas,
aquelas que, excedendo a competência dos órgãos do governo regional, respeitem a
interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam no plano
nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em
função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se
revestem para esses territórios”.
- Do que deva entender-se por “respeitantes às regiões autónomas” reza o recente
Acórdão n.º 551/2007, de 7 de Novembro, do Tribunal Constitucional, ao
pronunciar-se do modo seguinte: “Assim a expressão “respeitantes às regiões
autónomas”, constante do n.º 2 do artigo 229.º da Constituição deve (continuar
a) ser interpretada no sentido de se tratar de matérias que, apesar de serem da
competência dos órgãos de soberania, nelas os interesses regionais apresentam
particularidades por comparação com os interesses nacionais, quer devido às
características geográficas, económicas, sociais e culturais das regiões, quer
devido às históricas aspirações autonomistas das populações insulares, que
justificam a audição dos órgãos de governo regional.
- A Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, é uma lei que, pela sua natureza e pelo seu
objecto globalmente considerados, se destina a todo o País, não sendo
manifestamente uma questão respeitante às Regiões Autónomas, nem muito menos à
Região Autónoma da Madeira.
- Devendo concluir-se que o direito de audição não existe em relação à mesma,
não se verificou qualquer violação do direito de audição dos órgãos do governo
regional.
6.2. Do Ministro da Saúde
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre o pedido de declaração de
inconstitucionalidade e ilegalidade, com força obrigatória geral, das normas da
Portaria n.º 741-A/2007, de 16 de Abril, identificadas supra, o Ministro da
Saúde, por intermédio do respectivo Gabinete, respondeu nos seguintes termos:
- Para que a Portaria n.º 741-A/2007, de 16 de Abril, seja considerada ilegal é
necessário que se demonstre que a mesma padece de desconformidade com a lei
habilitante.
- Contudo, a Portaria obedece estritamente aos requisitos de legalidade dos
regulamentos, já que foram observados os requisitos, objectivos materiais e
objectivos formais.
- A Portaria foi assinada pelo Ministro da Saúde ao abrigo da alínea c) do art.
109.º da Constituição, pelo que sempre se cumpre o requisito subjectivo de
autoria do regulamento.
- Quanto aos requisitos objectivos materiais, o regulamento não invade a reserva
da lei e é perfeitamente conforme com o “bloco de legalidade” que visa executar.
- Finalmente, no que respeita aos requisitos objectivos formais, verifica-se que
a forma de regulamento é a prescrita pelo diploma legislativo que autoriza a
actividade normativa consequente, conforme se verifica pelos artigos 2.º, 4.º e
8.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
- Acresce que, ao contrário do que é afirmado no requerimento do Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, a Portaria do Ministério
da Saúde não tem “uma vocação de aplicação territorial global, logo se aplicando
ao território madeirense”.
- De facto, não tendo a Assembleia da República, na Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, reservado o poder regulamentar, parece ser de entender, de acordo com o
disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República
Portuguesa, que a matéria em causa, no que à regulamentação diz respeito, tem
cariz concorrencial, pelo que a aplicação da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de
Junho, na Região Autónoma da Madeira, será apenas subsidiária.
7. Incorporação do Processo n.º 1186/07 no Processo n.º 733/07
O requerimento apresentado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Região
Autónoma da Madeira, com o objecto e os fundamentos acima assinalados, bem como
as respostas que sobre ele recaíram do Presidente da Assembleia da República e
do Ministro da Saúde, começaram por integrar os autos do Processo de
Fiscalização Abstracta n.º 1186/07 do Tribunal Constitucional.
Nesse Processo n.º 1186/07, o Presidente do Tribunal Constitucional lavrou um
despacho, ordenando, em conformidade com o disposto no artigo 64.º, n.º 1, da
Lei do Tribunal Constitucional, a incorporação dos correspondentes autos no
Processo n.º 733/07, dado que ambos «respeitam ao mesmo complexo normativo (o
que veio proceder à revisão do regime jurídico da interrupção voluntária da
gravidez)» – não fazendo sentido, por isso, que o Tribunal se pronuncie
separadamente sobre os respectivos pedidos».
8. Discussão do memorando
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º,
da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, nos
termos do n.º 2 do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a
orientação que o Tribunal fixou.
II – Fundamentação
9. Questões prévias
9. 1. Legitimidade dos requerentes
9.1.1. Dos deputados da Assembleia da República (Processo n.º 733/07)
O pedido que deu início aos presentes autos foi formulado ao abrigo do disposto
no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição, norma esta que confere
legitimidade a um décimo dos Deputados à Assembleia da República para requerer
ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade ou de
ilegalidade, com força obrigatória geral.
Conforme se verifica, o pedido apresentado encontra-se subscrito por trinta e
três deputados à Assembleia da República, o que permite dar por preenchido o
requisito de legitimidade constante da referida norma e consistente em um número
mínimo de vinte e três subscrições.
9.1.2. Do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira
(Processo n.º 1186/07)
A legitimidade do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira para requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação da
constitucionalidade e da legalidade de normas é-lhe conferida pelo disposto na
alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
Tal norma confere às entidades aí referidas um poder de iniciativa que, ao invés
do que sucede com aquele que é atribuído aos demais órgãos enumerados naquele
n.º 2, não é geral, mas limitado, uma vez que só é reconhecido quando apoiado em
certos fundamentos específicos.
Assim, se o pedido for de declaração de inconstitucionalidade, o respectivo
fundamento só poderá consistir na “violação dos direitos das regiões autónomas”;
se for de declaração de ilegalidade, apenas poderá basear-se na violação do
Estatuto da Região Autónoma em cujo âmbito se inscreva a entidade requerente.
Uma vez que a legitimidade do requerente depende directamente da causa de pedir
apresentada, importa verificar se os fundamentos do pedido em análise se
enquadram na previsão da referida norma constitucional.
Conforme decorre do já exposto, o pedido de declaração da inconstitucionalidade
de um conjunto de normas constantes da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, e da
Portaria n.º 741-A/2007, formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira, funda-se na violação da norma constitucional que
consagra o direito à vida (artigo 24.º, n.º 1, da CRP), do princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), bem como na
afectação do núcleo da autonomia regional.
Quanto às duas primeiras causas de pedir, o Presidente da Assembleia Legislativa
da Região Autónoma da Madeira não dispõe de legitimidade.
Com efeito, quando o requerente pede a declaração de inconstitucionalidade das
normas acima referidas, com fundamento na violação dos artigos 1.º e 24.º, n.º
1, ambos da CRP, não formula um pedido de 'declaração de inconstitucionalidade
fundado em violação dos direitos das regiões', uma vez que os direitos das
regiões são os direitos regionais constitucionalmente previstos – ou seja,
«aqueles que, no próprio texto constitucional, configuram e concretizam o
princípio da autonomia político-administrativa das Regiões Autónomas» (RUI
MEDEIROS, in JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada,
Coimbra, 2007, III, 807) – e no respectivo âmbito não se inscrevem os princípios
constitucionais da protecção do direito à vida e da dignidade da pessoa humana.
É, assim, manifesta a falta de legitimidade processual do Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira para fundamentar o pedido
de declaração de inconstitucionalidade em violação das normas dos artigos 1.º
e/ou 24.º, n.º 1, da CRP, já que tal fundamento não é subsumível na previsão do
artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da CRP.
No mais, o requerente dispõe de legitimidade.
9.2. Delimitação do objecto do pedido formulado pelo Presidente da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira
Na parte em que ao respectivo conhecimento se não opõe a falta de legitimidade
do requerente, o pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira tem em vista a declaração de inconstitucionalidade e
ilegalidade orgânico-formal do «art. 1º – na parte em que acrescenta a nova
alínea e) ao n.º 1 do art.142º, do Código Penal – da Lei n.º 16/2007, bem como
de todas as normas conexas com esta alteração legislativa, que são as restantes
normas da nova versão do art.142º do Código Penal, dada por aquele art.1º, além
dos arts. 2º, 3º, 4º, 5º, 7º, e 8º, da Lei n.º16/2007, de 17 de Abril”, e ainda
das “normas conexas da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho, que são as
normas dos respectivos artigos 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º,
13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º, 21º, 22º, 23º e 24º» (itálico nosso).
O conjunto dos preceitos convocados pelo requerente no âmbito da definição do
objecto do pedido compreende a totalidade dos enunciados contidos em ambos os
diplomas questionados, apenas excepcionando, quanto à Lei n.º 16/2007, o
respectivo artigo 6.º – que dispõe sobre a objecção de consciência – e,
relativamente à Portaria n.º 741-A/2007, os respectivos artigos 12.º e 20.º – o
primeiro igualmente dedicado à objecção de consciência e o segundo às comissões
técnicas de certificação no exclusivo âmbito da interrupção da gravidez por
grave doença ou malformação congénita do feto ou fetos inviáveis.
Com tal extensão, o conjunto dos preceitos convocados começa por integrar dois
tipos de normas: por um lado, aquelas que, procedendo juridicamente da alteração
consistente no aditamento ao elenco previsto no n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal da previsão agora constante da respectiva alínea e), gravitam directamente
em torno desta, tendo por isso o seu sentido e alcance funcionalmente
circunscritos à interrupção voluntária da gravidez (ou, na terminologia
utilizada pelo requerente, ao “aborto despenalizado, livre ou a pedido”); por
outro lado, aquelas normas que, na medida em que dispõem sobre todas as
interrupções da gravidez contempladas no elenco do n.º 1 do artigo 142.º do
Código Penal, se aplicam também à interrupção voluntária da gravidez prevista na
referida alínea e), embora não sejam privativas de tal fattispecie e subsistam,
portanto, para além dela.
Naquela primeira categoria de normas situam-se as insertas nos n.ºs 3 e 4,
alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo
1.º da Lei n.º 16/2007, nos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º, deste diploma, bem como
as constantes dos artigos 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Portaria n.º 741-A/2007.
Da segunda categoria fazem parte as normas dos n.º 2, 5, 6 e 7 do artigo 142.º
do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, bem
como os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º,
14.º, 15.º, 21.º, 22 e 23.º da Portaria n.º 741-A/2007.
Às categorias acabadas de enunciar será possível adicionar mais uma: a das
chamadas normas técnicas, auxiliares ou operacionais, aqui formada pelos artigos
7.º e 8.º da Lei n.º 16/2007 e 24.º da Portaria n.º 741-A/2007.
Em face dos múltiplos conteúdos normativos extraíveis dos preceitos legais
convocados pelo requerente, a questão que o pedido coloca consiste justamente em
saber se todas as normas acima referidas deverão considerar-se integrantes do
respectivo objecto ou se, incidindo este, como dos seus termos expressamente
resulta, sobre o “art. 1º - na parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º1
do art.142º, do Código Penal – da Lei n.º 16/2007” e “normas conexas com esta
alteração legislativa”, somente aquelas que, constando dos enunciados legais
indicados, se encontrem efectivamente conexionadas com a primeira deverão
considerar-se visadas pela declaração de inconstitucionalidade pretendida.
Dito de outro modo: trata-se de saber se a circunstância de a totalidade das
normas acima referidas se objectivar nos preceitos legais indicados no
requerimento as imporá automaticamente como objecto do pedido ou se a correcta
configuração do mesmo não suporá a sua restrição àquelas que, cabendo nos
preceitos apontados, desempenhem, relativamente à norma central constante da
alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo
artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, a função instrumental, complementar ou
regulamentar que é suposta pela relação de conexão perspectivada pelo
requerente.
Apenas esta segunda hipótese é consonante, quer com os termos em que o objecto
processual é apresentado, quer com a representação subjacente aos fundamentos
que sustentam o pedido.
Quanto ao objecto processual e sob esta mesma epígrafe, lê-se no requerimento o
seguinte:
«1) Em 17 de Abril de 2007, foi publicado no Diário da República, 1ª série, a
Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, que no seu preceito central, passou a admitir
uma nova forma de aborto despenalizado, o aborto livre ou a pedido, tal como se
lê no respectivo art. 1°, que acrescentou uma nova al. e) ao art. 142°, n.º1, do
Código Penal, nela se prescrevendo o seguinte: “Não é punível a interrupção da
gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de
saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher
grávida, quando: (...) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10
semanas de gravidez”.
2) Ora, esta norma da Lei n. °16/2007, de 17 de Abril, e por consequência as
restantes normas periféricas da mesma Lei n.º 16/2007, bem como as normas da
Portaria n.º 74 1-A/2007, de 21 de Junho, que as regulamentam, violam
frontalmente a Constituição da República Portuguesa, para além de diversas
convenções e textos internacionais a que Portugal se vinculou, sem ainda excluir
a infracção de preceitos constitucionais, estatutários e legais atinentes à
configuração da autonomia regional conferida aos arquipélagos dos Açores e da
Madeira com a aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1976.»
(itálico nosso).
A perspectiva subjacente à fundamentação do pedido confirma a relação de conexão
pressuposta na descrição do objecto respectivo.
Os argumentos aduzidos pelo requerente desenvolvem-se, com efeito, em torno de
afirmações como a de que «aqueles diplomas estaduais – um legislativo e o outro
regulamentar – impõem uma prática de aborto despenalizado, livre ou a pedido aos
órgãos regionais, sem que estes tenham dito o que quer que fosse no tocante à
organização dos cuidados de saúde pertinentes, há muitos anos regionalizados»; e
a de que a «pretensão estadual de obrigar o sistema regional de saúde à prática
do aborto despenalizado, livre ou a pedido fora dos quadros da competente
decisão regional não respeita as regras e os princípios, constitucionais e
infra-constitucionais, aplicáveis, violando o núcleo da autonomia regional, que
permite a livre decisão pública em muitos dos respectivos domínios»; e ainda a
de que «o acesso à prestação do aborto despenalizado, livre ou a pedido
corresponde a uma tarefa que se situa, do ponto de vista da sua regulação
jurídica, no âmbito da competência regional, pois a “saúde” está enunciada como
matéria de interesse regional na alínea m) do art. 40º do Estatuto
Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira» (itálico nosso).
Tais afirmações revelam claramente que a realidade normativa pretendida sujeitar
aos poderes de fiscalização da constitucionalidade é tão-somente aquela que,
respeitando à interrupção voluntária da gravidez, procede da norma central
contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção
conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, sendo completada pelas normas
desta Lei e da Portaria que directamente se lhe reportam e, na medida em que a
incluem também, ainda pelos conteúdos que em ambos aqueles diplomas regulam
aspectos comuns a todas as modalidades de interrupção da gravidez admitidas pelo
ordenamento.
A relação de conexão expressamente pressuposta no requerimento exerce, assim, um
efeito determinante da configuração última do objecto processual, funcionando
como fórmula delimitadora dos conteúdos normativos sob efectivo questionamento
e, por consequência, do próprio thema decidendum fixado ao Tribunal através do
pedido.
Em consonância com o sentido que o pedido globalmente evidencia, o respectivo
objecto deverá considerar-se, pois, limitado ao complexo normativo integrado:
(i) pela norma constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal,
na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007; (ii) pelas normas contidas
nos n.ºs 3 e 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção
conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007, nos artigos 2.º, 3.º, 4.º e 5.º,
deste diploma, e nos artigos 16.º, 17.º, 18.º e 19.º da Portaria n.º 741-A/2007,
todas daquela complementares; (iii) pelas normas objectivadas nos n.ºs 2, 5, 6 e
7 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1.º da Lei
n.º 16/2007, bem como nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º,
10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 21.º, 22.º e 23º da Portaria n.º 741-A/2007,
apenas na acepção que completa o regime procedente da primeira.
Por não se encontrarem conexionados com a “alteração legislativa” produzida
através da edição da norma constante do “preceito central” da alínea e) ao n.º 1
do artigo 142º, do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei n.º 16/2007,
deverão considerar-se excluídos do objecto do pedido os demais conteúdos
normativos reportáveis aos (restantes) preceitos legais indicados no
requerimento.
9.3. Ordem de apreciação dos pedidos
A fusão, num só, de dois processos com objectos múltiplos não coincidentes,
ainda que respeitantes à mesma área normativa, levanta problemas específicos
quanto à ordem de apreciação dos respectivos pedidos e dos fundamentos que os
sustentam. Para estabelecer uma estruturação consequente dos temas a tratar, há
que avaliar a forma como eles se relacionam entre si.
O pedido formulado pelo grupo de deputados da Assembleia da República tem em
vista a declaração, com força obrigatória geral, de inconstitucionalidade e
ilegalidade da regulação contida na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, em especial
das normas insertas nos respectivos artigos 1.º – esta na parte concernente ao
segmento que, revendo o artigo 142.º do Código Penal, acrescentou a alínea e) ao
respectivo n.º 1 e, na sequência de tal acrescento, introduziu o actual n.º 3 e
a alínea b) do n.º 4 –, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2.
Os fundamentos invocados para a pretendida declaração integram, no que diz
respeito à inconstitucionalidade formal que se lhes aponta, a violação dos
artigos 1.º a 3.º, 108.º, 109.º e 115.º, n.ºs 1 e 11, todos da CRP, e, no que
toca à inconstitucionalidade material, as normas constantes dos artigos 1.º,
2.º, 13.º, 18.º, n.º 2, 24.º 25.º, 26.º, 27.º, n.º 1, 36.º, 64.º, n.ºs 1 e 2,
alínea b), 66.º, n.º 1, 67.º, 68.º, n.º 2, 73.º, n.º 2, 112.º, n.º 5, 165.º, n.º
1, alínea b), também da Lei Fundamental.
Na parte em que ao respectivo conhecimento se não opõe a falta de legitimidade
do requerente, o pedido formulado pelo Presidente da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira tem em vista a declaração de inconstitucionalidade e
ilegalidade orgânico-formal dos artigos 1.º – este na parte em que acrescenta a
nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º, do Código Penal, e dá origem às
restantes normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º e 8.º, todos
da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º,
5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º,
21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
Os fundamentos para a contestação da validade orgânico-formal dos conteúdos
normativos inscritos nos mencionados diplomas consistem na violação da autonomia
legislativa, administrativa, financeira e regional, constitucional, estatutária
e legalmente configurada, bem como na violação do direito, constitucional e
legal, de audição prévia das regiões autónomas, consagrado no artigo 229.°, n.°
2, da CRP.
A resolução das questões de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da
Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira só reveste utilidade se a
aplicabilidade do complexo normativo impugnado não vier a resultar directamente
comprometida pelo eventual reconhecimento de vícios intrínsecos determinantes da
respectiva invalidade constitucional.
A questão central que é objecto do pedido legitimamente formulado pelo grupo de
deputados da Assembleia da República assume, manifestamente, natureza
prejudicial em relação à apreciação de vícios atinentes à alegada afectação das
competências da Região.
Assim, o conhecimento das questões sub judice principiará pela consideração do
pedido que deu origem aos presentes autos e respectivos fundamentos, pedido esse
que, pela razão acabada de apontar, precede, também logicamente, aquele que
cronologicamente lhe sucedeu.
A) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º 733/07 e respectivos fundamentos
10. Os vícios formais
São dois os vícios formais que, de acordo com os requerentes, afectam a Lei n.º
16/2006, de 17 de Abril: (i) a aprovação de acto legislativo correspondente à
pergunta objecto de resposta positiva no âmbito do referendo proposto na
Resolução n.º 54-A/06 da Assembleia da República e realizado no dia 11 de
Fevereiro de 2007, sem que este tivesse tido eficácia vinculativa; (ii) a
modificação pela Assembleia da República da disciplina jurídica contida em lei
que, no âmbito das eleições em que fizeram eleger os respectivos representantes,
os dois maiores partidos políticos com assento parlamentar se comprometeram a
alterar somente por via referendária.
10.1. A não vinculatividade do referendo e suas consequências
A Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, teve origem no Projecto de Lei n.º 19/X,
apresentado pelo grupo parlamentar do Partido Socialista.
Este projecto de lei foi apresentado em simultâneo com o Projecto de Resolução
n.º 148/X – “projecto de resolução convocando um referendo popular sobre o
aborto” –, o qual, tendo sido aprovado em reunião plenária da Assembleia da
República, realizada no dia 19 de Outubro de 2006, veio a dar lugar à Resolução
n.º 54-A/2006, publicada no DR, 1.ª série, de 20 de Outubro de 2006.
Previa tal Resolução que, através de referendo, os cidadãos eleitores
recenseados no território nacional fossem chamados a pronunciar?se sobre a
seguinte pergunta:
«Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se
realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento de
saúde legalmente autorizado?».
Convocado o referendo em tais termos aprovado e realizado este no dia 11 de
Fevereiro de 2007, os resultados viriam a ser os seguintes: a percentagem dos
votantes quedou-se pelos 43,57% dos eleitores inscritos no recenseamento,
correspondendo a resposta positiva 59,25% dos votos validamente expressos e a
negativa a 40,75% (cfr. Mapa Oficial, DR, 1.ª série, de 1 de Março de 2007).
Preceitua o n.º 11 do artigo 115.º da CRP (aditado, conforme é sabido, pela
revisão constitucional de 1997), que «o referendo só tem efeito vinculativo
quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no
recenseamento».
Este princípio encontra-se integralmente reproduzido no artigo 240.º da Lei n.º
15-A/98, de 3 de Abril (Lei Orgânica do Regime do Referendo).
Sob a epígrafe “Dever de não agir da Assembleia da República e do Governo”, o
artigo 243.º do referido diploma legal estabelece, por seu turno, que «a
Assembleia da República ou o Governo não podem aprovar convenção internacional
ou acto legislativo correspondentes às perguntas objecto de resposta negativa
com eficácia vinculativa, salvo nova eleição da Assembleia da República ou a
realização de novo referendo com resposta afirmativa» (itálico nosso).
Perante estes dados do regime jurídico-constitucional e legal do referendo,
fácil é concluir pela improcedência do vício formal apontado pelos requerentes.
Com efeito, encontrando-se definido um quórum de participação com base no número
de eleitores recenseados (cfr. os artigos 115.º, n.º 11, da CRP, e 240.º da Lei
n.º 15-A/98, de 3 de Abril) e não tendo este sido atingido, o referendo
realizado a 11 de Fevereiro de 2007 não foi vinculativo, o que, do ponto de
vista do condicionamento da actividade legislativa subsequente, o torna
juridicamente irrelevante.
De acordo com o regime jurídico do referendo, o órgão legiferante com
competência para editar a medida legislativa de sentido normativo correspondente
ao da proposta submetida ao eleitorado só ficará inibido de o fazer na mesma
legislatura caso se verifique um duplo condicionalismo: carácter vinculativo do
referendo e vencimento da resposta negativa. Nenhuma destas condições,
cumulativamente exigíveis, se verificou, pelo que a Assembleia da República não
se encontrava impedida de aprovar a Lei n.º 16/2007.
A Lei n.º 16/2007 não é, deste ponto de vista, formalmente inválida.
10.2. A ilegitimidade material da Assembleia da República
Sob invocação dos artigos 1.º a 3.º, 108.º e 109.º da CRP, os requerentes
contestam ainda a validade da Lei n.º 16/2007, com fundamento em alegada
ilegitimidade material da Assembleia da República para a respectiva aprovação,
ilegitimidade essa decorrente do facto de os dois maiores partidos políticos com
assento parlamentar haverem feito constar dos programas eleitorais com que se
apresentaram a eleições legislativas o compromisso de que somente por via
referendária aceitariam modificar o regime jurídico da interrupção voluntária da
gravidez.
A demonstração da insustentabilidade jurídico-constitucional da construção
seguida pelos requerentes quase dispensa a análise detalhada do alcance
normativo atribuível ao conjunto dos parâmetros constitucionais invocados.
Em face do respectivo enunciado, torna-se desde logo evidente a impossibilidade
de extrair deles qualquer regra ou princípio que juridicamente permita projectar
sobre a validade dos actos legislativos aprovados pela Assembleia da República a
responsabilidade, necessariamente política, que porventura possa associar-se à
hipotética inobservância ou incumprimento de compromissos assumidos pelos
titulares dos órgãos legiferantes através dos programas eleitorais apresentados
no âmbito das eleições em que se fizeram eleger.
No plano da construção jurídica possível, os princípios da soberania popular
(artigos 1.º a 3.º) e da democracia participativa (artigo 2.º), consagrados na
Constituição, não constituem fundamento idóneo de uma teoria que cruze o plano
da legitimidade constitucional dos órgãos com competência legislativa e da
validade dos actos praticados no exercício das respectivas competências com o
plano da eventual desconformidade do sentido ou conteúdo programático de tais
actos relativamente aos compromissos previamente assumidos perante o eleitorado.
A responsabilidade adveniente da inobservância de compromissos eleitorais, a
existir, será de natureza exclusivamente política, concretizando-se
primordialmente através do juízo de avaliação do desempenho dos titulares dos
órgãos legiferantes no termo dos respectivos mandatos, juízo esse que, no
exercício do poder político que lhes pertence, aos eleitores caberá formular e
exprimir através do voto.
O sentido para que apontam as normas constitucionais convocadas é, de resto,
inequivocamente contrário à tese sustentada pelos requerentes.
O invocado princípio da soberania popular – implicado já, enquanto fundamento da
acção e legitimação do Estado, quer no artigo 1.º (vontade popular), quer no
artigo 2.º (soberania popular) da Constituição (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007,
215) –, encontra-se particularmente densificado no n.º 1 do respectivo artigo
3.º, aí se estabelecendo que «a soberania, una e indivisível, reside no povo,
que a exercerá segundo as formas previstas na Constituição».
Como aqueles Autores explicitam (ob. cit., 216), «por formas previstas na
Constituição entender-se-ão as modalidades e os procedimentos
jurídico-constitucionalmente previstos para a manifestação da vontade política
do povo, nomeadamente as eleições e os referendos segundo os procedimentos
previstos na própria Constituição (…)».
O exercício da soberania que reside no povo e do poder político a este
pertencente far-se-á, portanto, através dos mecanismos tipificados na
Constituição, os quais, incluindo muito especialmente a eleição, por sufrágio
directo, dos membros da Assembleia da República (artigos 149.º s.), não
contemplam, porém, qualquer um que viabilize a sindicância de uma eventual
desconsideração de compromissos assumidos perante o eleitorado, através da
invalidação, por ilegitimidade do órgão legiferante, dos actos praticados em
desconformidade com o conteúdo do programa eleitoral sufragado pelos eleitores,
sob proposta dos respectivos titulares.
A argumentação desenvolvida pelos requerentes é, pois, a todos os títulos,
manifestamente improcedente.
11. Os vícios materiais
11.1. As questões de inconstitucionalidade material: seu objecto
Os vícios materiais que os requerentes apontam às normas impugnadas são
enunciados nas alíneas T) a Z) das conclusões do pedido, formuladas nos
seguintes termos:
«T) A possibilidade de se praticar o aborto sem alegação de fundamentos,
constitui o arbítrio que deixa a mulher e a criança totalmente desprotegidos,
violando-se, assim, o disposto nos arts. 1.°, 2.°, 24.°, 25.°, 36.°, 67.°, e
68.° da C.R.P.;
U) A Lei 16/2007, de l7 de Abril, deixa o progenitor masculino totalmente
arredado do processo de responsabilidade e processo de formação da decisão no
aborto, violando-se desta forma os arts. 1.°, 2.°, 24.°, 67.° al. d) da C.R.P. e
ainda o principio da igualdade fixado nos arts. 13.° e 36.° n.°s 3 e 5 da CRP;
V) A objecção de consciência prevista na Lei 16/2007, de 17 de Abril, parece
lesar a dignidade dos médicos, ao consagrar, no n.º 2 do seu art. 6.°, um
tratamento discriminatório desse mesmos médicos objectores à interrupção
voluntária da gravidez;
W) A informação fixada na Lei 16/2007, de 17 de Abril, como prévia ao
consentimento, assenta na selectividade de informação, na assimetria informativa
e triplamente indirecta, o que tange com os Princípios Constitucionais de
igualdade e proporcionalidade e, assim, com o disposto nos arts. 18.° n° 2, 25.°
n.°1 e 27.° n.°1, da C.R.P.;
X) A alteração ao art. 142.° do Código Penal, introduzindo uma al. e) no seu
n.º1, deixa totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas, impondo ao
Estado que contribua para a eliminação de vidas humanas (através, por exemplo,
do SNS e das prestações sociais inerentes — art.º 35.° n.° 6 do Código de
Trabalho), sem que para tal seja necessário alegar quaisquer razões ou
fundamentos;
Y) Tal disposição atenta, assim, contra a base antropológica constitucionalmente
estruturante do Estado de Direito, violando, desse modo, os arts. 1.°, 2.°,
24.°, 25.°, 26.°, 68.° n.° 2 e 73.° n.° 2, da C.R.P. e
Z) Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e
mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o
regime fixado na Lei 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função de
solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando, assim, o
disposto nos arts. 64.° n.°1 e 2, al. b), e 66.° n.°1 da C.R.P.»
Este articulado conclusivo, devidamente integrado pelas considerações
argumentativas que o antecedem e sustentam, permite certificar que o objecto do
pedido compreende normas da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, situadas em
distintos planos e dimensões da disciplina legal da interrupção voluntária da
gravidez.
Contestada é, desde logo, a validade constitucional de uma previsão de
impunibilidade da interrupção voluntária de gravidez não dependente da alegação
de motivos taxativamente descritos e de verificação objectivamente controlável.
Censura-se a própria mutação do sistema legal de não punibilidade desse acto,
com a consagração, por via da introdução da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º
do Código Penal, de uma solução ajustada ao “modelo de prazos”, deixando o
sistema de se conformar exclusivamente pelo “modelo das indicações”. Esta opção
de fundo, traduzida na despenalização da interrupção voluntária da gravidez,
quando realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas da gestação, sem
necessidade de invocação de razões justificativas, é, em si mesma, antes e
independentemente da apreciação do concreto regime vazado nas soluções
legislativas que lhe dão corpo, considerada incompatível com o dever de
protecção da vida intra-uterina.
Não escasseiam, na motivação do pedido, afirmações explicitantes desta posição
de princípio. É assim, por exemplo, que, a dado passo, os requerentes se
interrogam:
«Porém, se a Lei não exige que a mulher alegue os fundamentos pelos quais
procura o aborto, como pode o Estado exercer o seu papel social de protecção à
maternidade e à vida humana carenciada?».
E, mais adiante, acrescentam:
«Por isso, a alteração ao Código Penal que permita a uma mulher decidir da vida
ou morte de um ser humano, sem que para tal invoque fundamentos, é deixar
totalmente desprotegida a vida humana até às 10 semanas.
É conferir a um ser (Mãe) o direito a decidir da vida de outrem, ainda que por
motivos fúteis.
[…] Sobretudo, importa insistir em que se prevê um aborto “ad nutum”,
discricionário, sem qualquer necessidade de justificação, quando a restrição a
um direito fundamental como a vida, mesmo que pudesse ser admitida, tem sempre
de ser devidamente justificada.
O aborto, por outras palavras, não pode nunca ser um direito (espaço de uma
insindicável autonomia privada).
Por isso é extremamente importante que se faça o cotejo do sistema que temos com
o sistema das indicações, pois só este se apresenta conforme com estas
exigências».
Mas, a este alegado vício, verdadeiramente matricial, de desconformidade com a
Constituição, haveria, na óptica dos requerentes, que adicionar outros,
atinentes a aspectos parcelares da concreta modelação das soluções legislativas.
Alguns desses aspectos contendem ainda com a protecção da vida humana
intra-uterina.
É o caso da disciplina normativa da consulta obrigatória prevista no artigo
142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril, e no artigo 2. º, n.º 2, deste diploma legal. Nos
termos daquela primeira disposição, tal consulta destina-se a “facultar à mulher
grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre,
consciente e responsável”. Mas, quanto às suas finalidades e ao seu conteúdo, a
informação prevista não preencheria as condições necessárias para satisfazer o
imperativo constitucional de protecção da vida intra-uterina, mesmo a admitir-se
que ele tem que ser confrontado, segundo o método da concordância prática, com o
valor da liberdade da mãe.
Na verdade, estaríamos perante uma “prestação puramente informativa” e não “um
aconselhamento pró-vida”, arguindo-se que, sem este, “o Estado português
queda-se indiferente e neutro perante a ameaça à vida humana”.
Quanto ao conteúdo, a norma constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º16/2007,
mereceria reparo constitucional, na medida em que exclui do âmbito da informação
a prestar à gestante através da consulta o conhecimento sobre as consequências
da efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez
para o embrião, as condições de apoio que as instituições não estaduais prestam
à prossecução da gravidez e da maternidade e o regime da adopção em Portugal.
Das informações relevantes, a prestar na consulta médica obrigatória, deveria
também constar uma imagem da ecografia do feto.
Sem estas informações suplementares, resultaria clara a violação do princípio da
proporcionalidade, «(…) desde logo, porque a consulta informativa não é idónea à
protecção do fim a que se destina – tutela da vida humana intra-uterina – e
porque privilegia desnecessariamente um dos bens constitucionais em conflito – o
valor da liberdade de escolha da mulher – em nada acautelando o outro dos
valores em presença».
Para isso contribuiria também a opção normativa expressa na alínea b) do n.º 4
do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo artigo 1.º da Lei n.º 16/2007,
a qual limita a três dias o prazo mínimo de reflexão que medeia entre a
realização da primeira consulta médica e a concretização da interrupção da
gravidez.
Para além da protecção da vida intra-uterina, outros bens ou valores
constitucionais são alegadamente afectados por outros pontos do regime legal
constante da Lei n.º 16/2007.
“O regime fixado na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril”, não acautelaria o direito
à protecção da saúde física e psíquica da mulher. Estariam em causa também o
direito à liberdade e o princípio da proporcionalidade, ofendidos pelo disposto
nos artigos 2.º da Lei n.º 16/2007 e 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal.
A omissão da exigência de participação do progenitor masculino do processo de
decisão quanto à interrupção violaria o direito à igualdade na parentalidade.
Esse sujeito “poderia e deveria ser chamado ao aconselhamento a fim de, também
ele, tomar a responsabilidade por aquele filho, ainda que a decisão última fosse
da mulher”.
De “duvidosa constitucionalidade” é considerado o disposto no artigo 6.º, n.º 2,
na medida em que exclui das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo
142.º do Código Penal os médicos objectores de consciência.
Por último, a norma do artigo 2.º, n.º 2, estaria ferida de
inconstitucionalidade, na medida em que admite a regulamentação por portaria da
informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal,
não obstante estar em causa matéria de direitos fundamentais.
De uma forma ou de outra, todas estas questões irradiam da questão central da
admissibilidade, e suas condições, da não utilização da sanção penal como
instrumento de tutela da vida intra-uterina. Elas apresentam-se geneticamente
conexionadas com esta última, pelo que a sua consideração poderá vir a
revelar-se prejudicada pela valoração que ela suscite.
Justifica-se, assim, que a apreciação das questões de inconstitucionalidade
material postas se inicie pela questão central, de primeiro grau, acima
enunciada, tratada à luz do parâmetro nuclear da inviolabilidade da vida humana,
consagrada no artigo 24.º da CRP.
Antes, porém, impõe-se uma curta alusão à necessidade de consideração de certas
normas de direito internacional invocadas pelos requerentes e aos antecedentes
legais e jurisprudenciais da Lei n.º 16/2007.
11.2. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos
Direitos do Homem como parâmetros
Os requerentes entendem que a Lei n.º 16/2007 contém várias soluções normativas
que violam, não só a Constituição, mas também a Declaração Universal dos
Direitos do Homem e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Sustentam que os referidos textos de direito internacional vinculam o Estado
português por via do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, constituindo as
respectivas disposições parte integrante do ordenamento jurídico português, e
que as normas da Lei n.º 16/2007 que as contrariem padecem de um vício de
“inconstitucionalidade e ilegalidade”.
Importa, portanto, averiguar se as ditas Declaração e Convenção podem, no
presente processo, assumir a função paramétrica pretendida pelos requerentes e
se o Tribunal Constitucional é competente para conhecer dos eventuais vícios
resultantes da desconformidade da Lei n.º 16/2007 àquelas declarações e
convenções.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi adoptada e proclamada pela
Assembleia-geral das Nações Unidas, na sua Resolução 217A (III), de 10 de
Dezembro de 1948. Portugal é membro da ONU desde 14 de Dezembro de 1955.
Por seu turno, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem foi assinada em 4 de
Novembro de 1950, em Roma, e entrou em vigor em 3 de Setembro de 1953, tendo
sido ratificada por Portugal pela Lei n.º 65/78 de 13 de Outubro.
Estamos, no primeiro caso, perante uma declaração solene adoptada por um órgão
de uma organização internacional que Portugal integra. Tal declaração não
constitui, contudo, direito internacional convencional que vincule o Estado
português, à luz do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição.
Somente enquanto contém normas ou princípios de direito internacional ou comum é
que a Declaração tem valor vinculativo e constitui fonte de direito material,
por via do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Além disso, a Declaração Universal dos Direitos do Homem possui uma relevância
normativa específica por ser critério de interpretação e integração das normas
constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais (artigo 16.º, n.º
2, da Constituição) – cfr., sobre esta matéria, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA,
ob. cit.,. 367, JORGE MIRANDA, “A Declaração Universal dos Direitos do Homem”,
in Estudos sobre a Constituição, Tomo I, Lisboa, 1977, 58 e 60, e LUÍS SERRADAS
TAVARES, A aplicação interna das convenções internacionais face ao controlo do
Tribunal Constitucional, Lisboa, 1997, 158.
Não obstante – e tal sucede com o texto da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem, esse sim, integrando o direito internacional recebido por força do artigo
8.º, n.º 2, da Constituição –, a sua convocação não é, conforme adiante melhor
se verá, forçosa, no presente contexto de controlo da constitucionalidade.
Com efeito, quando confrontada, quer com o artigo 1.º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem (“O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei”),
quer com o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (“Todos os
homens têm direito à vida”), a fórmula normativa constante do artigo 24.º, n.º
1, da Constituição, exprime um parâmetro de controlo que compreende já em si as
injunções de sentido que das primeiras advêm, tornando dispensável a sua
consideração autónoma.
11.3. Antecedentes legais e jurisprudenciais da Lei n.º 16/2007
Em matéria de interrupção voluntária de gravidez, assistimos, nas últimas
décadas, a uma evolução faseada do ordenamento jurídico-penal português, com
mudanças de conformação normativa que deram, em pontos decisivos, uma nova
configuração à disciplina legal.
Foi a Lei n.º 6/84, de 11 de Maio, que, dando nova redacção aos artigos 139.º a
141.º da Código Penal de 1982, consagrou, entre nós, pela primeira vez, um
sistema legal de previsões de impunibilidade da interrupção voluntária de
gravidez. Passou a admitir-se a existência de “causas de exclusão da ilicitude”,
em função de determinadas indicações, ditas terapêutica (alíneas a) e b) do n.º
1 do artigo 140.º), embriopática, fetopática ou por lesão do nascituro (alínea
c) do mesmo artigo) e criminal, criminológica, ética, jurídica ou humanitária
(alínea d) igualmente do n.º 1 do artigo 140.º) – cfr. FIGUEIREDO DIAS,
Comentário Conimbricense do Código Penal, I, Coimbra, 1999, 168.
Assim se pôs termo ao regime até aí vigente de proibição absoluta da interrupção
voluntária da gravidez, dando-se concretização aplicativa ao chamado “modelo das
indicações” – ainda que de forma restritiva, pois não foi reconhecida a
valência, como causa de exclusão, da indicação social.
Esta viragem no tratamento jurídico-penal da interrupção voluntária de gravidez
deu azo a dois acórdãos deste Tribunal: um primeiro, em processo de fiscalização
preventiva da constitucionalidade, a requerimento do Presidente da República
(Acórdão n.º 25/84, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º vol.,
7 s.); mais tarde, um outro, em processo de fiscalização abstracta sucessiva, a
requerimento do Provedor de Justiça – Acórdão n.º 85/85, ibidem, 5.º vol., 245
s.). Em ambos, foi aceite a validade constitucional do modelo das indicações
consagrado nos termos acima referidos, tendo-se concluído pela não
inconstitucionalidade das normas em causa.
A reforma do Código Penal operada pelo Decreto?Lei n.º 48/95, de 15 de Março, a
par de aperfeiçoamentos de tipo formal, introduziu algumas alterações
substantivas não essenciais quanto ao sentido da disciplina.
Mantendo o modelo das indicações nos termos em que o havia consagrado a Lei n.º
6/84, de 11 de Maio, a reforma de 95 quedou-se, com efeito, pelo alargamento da
fattispecie correspondente à indicação criminal – estendendo-a, para além da já
prevista hipótese de violação da mulher, a todos os casos em que a gravidez
tivesse resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual –, e
pela alteração da epígrafe do artigo 142.º do Código Penal: de “exclusão da
ilicitude do aborto” passou para “interrupção da gravidez não punível”.
Note-se que a modelação entre nós consagrada era notoriamente menos extensa,
quanto à zona de impunibilidade, do que as igualmente tributárias do “modelo de
indicações”, mas prevendo, entre estas, a de carácter económico e social.
Foi este o quadro normativo em que, no decurso do 1997, três projectos de lei
tendentes a alterar o regime jurídico da interrupção da gravidez foram
apresentados na Assembleia da República, um pelo Grupo Parlamentar do PCP (com o
n.º 177/VII) e os restantes dois por Deputados do Grupo Parlamentar do PS (n.ºs
236/VII e 235/VII).
Formulando os dois primeiros propostas de exclusão da ilicitude da interrupção
voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas, apenas o
terceiro viria a ser aprovado, dele tendo resultado a Lei n.º 90/97, de 30 de
Julho.
Através da nova redacção conferida às alíneas c) e d) do artigo 142.º do Código
Penal, tal diploma limitou-se a ampliar de 16 para 24 semanas o prazo previsto
para a interrupção da gravidez por lesão do nascituro, abolindo-o no caso de
fetos inviáveis, e de 12 para 16 semanas nas hipóteses de indicação criminal.
Na sessão legislativa seguinte, novos projectos de lei sobre a interrupção
voluntária da gravidez foram apresentados: o projecto de lei n.º 417/VII (PCP) e
os projectos de lei n.º 451/VII e n.º 453/VII, ambos procedentes da bancada
parlamentar do PS.
Aquele segundo, aprovado na generalidade, preconizava a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez realizada nas 10 primeiras semanas de
gestação, após consulta de aconselhamento, «para preservação da integridade
moral, dignidade social e da maternidade consciente», assentando assim «numa
combinação entre uma solução de prazos e um regime de indicações genéricas, com
obrigatoriedade de aconselhamento antes da decisão final pela mulher»
(“Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos Liberdades e
Garantias”, DAR, II-A, 29º, de 5-2-98). A par disso, propunha ainda a não
punibilidade da interrupção voluntária da gravidez caso se mostrasse «indicada
para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a
saúde física ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de
natureza económica ou social», quando realizada nas 16 primeiras semanas de
gestação.
Contudo, em Março de 1998, a Assembleia da República, enveredando por um outro
tipo de procedimento legiferante, viria a aprovar a Resolução n.º 16/98 (DR, I
Série-A, de 31 de Março de 1998), propondo que, mediante referendo a realizar,
os cidadãos eleitores recenseados no território nacional fossem chamados a
pronunciar?se sobre a seguinte pergunta: «Concorda com a despenalização da
interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas
primeiras 10 semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?»
Nos termos do n.º 8 do artigo 115.º da CRP, o Presidente da República requereu,
então, ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da
constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo aprovada pela
mencionada Resolução.
Exercendo os poderes de verificação prévia da «constitucionalidade e legalidade
dos referendos nacionais» que se lhe encontram atribuídos pelo artigo 223.º, n.º
2, alínea f), da CRP, este Tribunal, pronunciando-se pela terceira vez sobre o
tema, tratou a questão de «saber se a pergunta formulada não colocava os
eleitores perante uma questão dilemática em que um dos respectivos termos
aponta[va] para uma solução jurídica incompatível com a Constituição».
Pelo Acórdão n.º 288/98, o Tribunal Constitucional decidiu ter por verificada a
constitucionalidade e a legalidade do referendo proposto na Resolução n.º 16/98
da Assembleia da República.
Realizado a 28 de Junho de 1998, o referendo apresentou os seguintes resultados:
a resposta negativa foi expressa por 50,9% dos votantes, a afirmativa por 49,1%,
tendo-se abstido 68,1% dos cidadãos com capacidade eleitoral para o acto – cfr.
Mapa Oficial n.º3/98, DR, I Série-A, de 10 de Agosto de 1998.
Mercê do nível de abstenção registado, o referendo não foi vinculativo, nos
termos do artigo 115.º, n.º 11, da Constituição, tendo a Assembleia da
República, não obstante, optado por não prosseguir os trabalhos legislativos em
curso com a aprovação na generalidade do projecto de Lei n.º 451/VII.
Em Setembro de 2005, a mesma pergunta foi apresentada como objecto de uma
proposta de referendo, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º
52-A/2005.
Pelo Acórdão n.º 578/2005, de 28 de Outubro (DR, I Série-A, de 16 de Novembro de
2005), este Tribunal entendeu, todavia, que não se encontravam cumpridas as
exigências constitucionais, em face do artigo 115.º, n.º 10, da Constituição –
designadamente por se infringir a proibição de renovação da iniciativa do
referendo “na mesma sessão legislativa” –, não tendo chegado a apreciar a
substância da pergunta.
Em Reunião Plenária de 19 de Outubro de 2006, a Assembleia da República aprovou,
após debate, o Projecto de Resolução n.º 148/X.
Previa tal Resolução (Resolução n.º 54-A/2006, publicada no DR, 1.ª série, de 20
de Outubro de 2006) que, através de referendo, os cidadãos eleitores recenseados
no território nacional fossem chamados a pronunciar?se sobre a mesma exacta
pergunta com que haviam sido confrontados em 98 e cujo teor era, por isso, o
seguinte: «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez,
se realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento
de saúde legalmente autorizado?».
Requerida pelo Presidente da República a fiscalização preventiva da
constitucionalidade e da legalidade da proposta de referendo em tais termos
aprovada, defrontou-se uma vez mais este Tribunal com a questão de saber «se uma
concordância com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às
10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente
autorizado, implica[ria] uma solução inconstitucional e, inversamente, se de uma
resposta negativa resulta[ria] também uma tal solução».
Delimitando introdutoriamente o âmbito da análise requerida e a empreender, o
Tribunal não deixou de esclarecer que o mesmo não abrangeria «a apreciação de
todas as soluções legislativas concretas que uma resposta afirmativa ou negativa
[pudesse] sustentar». Em causa foi considerado apenas estar «a verificação ou
controlo sobre se uma das respostas (ou até as duas) do dilema subjacente à
pergunta determina[ria] uma violação da Constituição, inquinando todas as
soluções legislativas concretas que se apoi[assem] nessa mesma resposta».
À questão assim caracterizada respondeu este Tribunal através do Acórdão n.º
617/2006, por meio do qual julgou verificada a constitucionalidade e legalidade
do referendo proposto na Resolução n.º 54-A/06 da AR.
Convocado o referendo e realizado este no dia 11 de Fevereiro de 2007, os
resultados viriam a ser os seguintes: a percentagem dos votantes quedou-se pelos
43,57%, correspondendo a resposta positiva a 59,25% dos votos validamente
expressos e a negativa a 40,75% (cfr. Mapa Oficial, DR, 1ª série, de 1 de Março
de 2007).
Apesar do resultado oposto ao de 1998, também este referendo não foi
vinculativo, nos termos do artigo 115.º, n.º 11, da Constituição.
Em 8 de Março de 2007, foi aprovada pela Assembleia da República a Lei n.º
16/2007, promulgada pelo Presidente da República, sem pedido de fiscalização
preventiva da constitucionalidade.
A Lei n.º 16/2007 viria a ser regulamentada pela Portaria n.º 741-A/2007, de 21
de Junho (DR, 1.ª série, de 21 de Junho de 2007), estabelecendo esta as medidas
a adoptar nos estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos
com vista à realização da interrupção da gravidez nas situações previstas no
artigo 142.º do Código Penal, na redacção que por aquela lhe foi conferida.
11.4. O regime de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez
introduzido pela Lei n.º 16/2007 e o imperativo constitucional de protecção da
vida humana
11.4.1. Articulação da questão com o objecto dos Acórdãos n.ºs 288/98 e
617/2006. Método da sua apreciação
Como se viu, por ocasião das alterações mais significativas da disciplina legal
da interrupção voluntária da gravidez, o Tribunal Constitucional foi chamado a
pronunciar-se sobre questões de constitucionalidade por elas suscitadas. Pondo
de lado o Acórdão n.º 578/2005, que não chegou a decidir questões de fundo, é
possível agrupar os quatro restantes arestos sobre a matéria em dois blocos,
consoante o thema decidendum: os Acórdãos n.ºs 25/84 e 85/85 tiveram como
objecto a reforma legislativa que previu causas objectivas de exclusão da
ilicitude, de acordo com o “modelo das indicações”; os Acórdãos n.ºs 288/98 e
617/2006, debruçando-se sobre uma pergunta referendária, pronunciaram-se sobre a
constitucionalidade de uma nova previsão de despenalização da interrupção
voluntária da gravidez: a efectuada por opção da mulher, nas primeiras 10
semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado – solução que deu
guarida ao “modelo de prazos”.
Para além de consagrar normativamente a previsão de uma interrupção voluntária
de gravidez, sem punição, dentro daquele prazo, a Lei n.º 16/2007 disciplinou,
em concreto, o modo operativo desse acto, através de um conjunto de normas
interligadas, de natureza organizatória e procedimental. Correspondentemente, o
objecto do presente recurso de constitucionalidade é mais amplo e diversificado
do que a questão em juízo no âmbito dos Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006: não se
restringindo à admissibilidade, de princípio, daquela modalidade de intervenção
interruptiva da gravidez, ele recai também sobre algumas opções legislativas
expressas na malha de preceitos que dão unitariamente forma legal precisa e
acabada à disciplina daquele acto.
Nessa medida, o Tribunal confronta-se agora com questões novas. Mas, mesmo
em relação à questão já objecto dos Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006, o presente
recurso apresenta uma específica dimensão inovatória, que cumpre precisar.
Naqueles acórdãos, em juízo esteve, fundamentalmente, a admissibilidade de se
prescindir, dentro das primeiras 10 semanas de gestação, da indicação, como
causas justificativas, de determinadas circunstâncias, de verificação
objectivamente controlável.
Ora, entre as normas impugnadas no presente recurso, figura primariamente a que
se aloja na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, introduzida pelo
artigo 1.º da Lei n.º 16/2007. Em conjugação com o proémio desse número, nela se
determina que «não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou
sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente
reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando for realizada, por
opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez».
Trata-se de uma disposição normativa vestibular, que abre a porta a ulteriores
regulações com ela conexionadas, só em conjunto se definindo, com completude, os
traços da solução agora consagrada no ordenamento jurídico-penal português.
Mas, poder-se-ia dizer que a previsão e a estatuição daquela alínea e), em si
mesmas, coincidem, no essencial, com a proposição normativa sobre que os
referidos acórdãos já se pronunciaram.
A identidade de enunciados e dos campos problemáticos em que se inserem não
deve, todavia, iludir quanto à diversidade das questões suscitadas. Para
consciencializar essa diferença, é imperioso atender aos distintos planos e
contextos em que se situaram aqueles dois arestos, por confronto com os que se
nos deparam nos presentes autos.
Os Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006 deram resposta à questão da
constitucionalidade de uma proposta referendária. O objecto da consulta a
submeter ao voto dos cidadãos reportava-se a uma opção programática, a uma
simples potencialidade de normação futura, visando obter a expressão de
concordância ou não com uma possível reforma legislativa, apontada
sinteticamente, pela opção de fundo que maximamente a caracterizava. Uma
eventual resposta afirmativa não efectivaria, por si só, qualquer mudança na
ordem jurídica, apenas legitimaria a intervenção, nesse sentido, do legislador,
cabendo a este a conformação última do regime concretizador dessa mudança. E,
tratando-se de um regime que coenvolve condições substantivas e procedimentais
de não punibilidade de um acto e regras organizatórias do exercício do direito a
prestações estaduais necessárias para a sua realização, com múltiplas variantes
hipoteticamente possíveis, era impensável que a pergunta referendária já
contivesse, de forma esgotante, as soluções concretas a adoptar, nesse domínio
(cfr., nesse sentido, o Acórdão n.º 617/2006 e a declaração de voto da
Conselheira Maria dos Prazeres Beleza).
É particularmente nítido, em face de alterações legislativas deste tipo, que “o
controlo preventivo da constitucionalidade e da legalidade das propostas de
referendo não consome a fiscalização [preventiva] da lei subsequente que o vier
concretizar” (GOMES CANOTILHO, “Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 617/2006”, RLJ, ano 136.º, 2007, 311 s., 317).
Por isso mesmo, o juízo de não inconstitucionalidade que recaiu sobre ambas as
propostas referendárias se contentou com a conclusão de que «nenhuma das
respostas – afirmativa ou negativa – à pergunta formulada implica
necessariamente uma solução jurídica incompatível com a Constituição» – alínea
j) da decisão do Acórdão n.º 288/98 e alínea i) da decisão do Acórdão n.º
617/2006 [itálico nosso]. Para fundar um juízo de não inconstitucionalidade da
consulta referendária bastou admitir que o sentido da resposta não fechava a
porta a qualquer ulterior solução jurídica conforme à Constituição, ou, como se
diz no último dos referidos Acórdãos, que “nada permite concluir que, em caso de
resposta afirmativa no referendo, [medidas suficientes de protecção] não possam
vir a constar da legislação aprovada, na sua sequência”.
O objecto do presente recurso é precisamente parte do complexo normativo que dá
corpo à reforma legislativa referendada. A previsão de uma nova modalidade de
intervenção abortiva não punível, constante da alínea e) do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal, já não vem agora, como na pergunta do referendo,
descarnadamente formulada, sem mais indicações normativas a ela associadas. Ela
é apenas uma componente – posto que componente essencial – de um mais amplo
sistema regulador. Sistema que contém aspectos da disciplina legal que
constituem relevantes factores de ponderação da existência e da medida de um
nível de protecção constitucionalmente adequado da vida pré-natal – o que, não é
de mais lembrá-lo, figura como a questão nuclear suscitada pelo recurso em
apreciação.
Com esses elementos normativos certos e actuais (por constantes da disciplina em
vigor), e não meramente conjecturáveis como de consagração futura, fechou-se o
círculo deixado em aberto pela questão de que se ocuparam os dois precedentes
acórdãos. O Tribunal está agora em condições de formular um juízo quanto à
validade constitucional de um complexo normativo totalizantemente regulador, com
uma unidade de sentido que lhe é dada pela coligação de uma proposição normativa
de base – a da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal – com
disposições complementares, a ela associadas.
Já não está em causa simplesmente a admissibilidade, de princípio, da directriz
basilar do modelo de prazos, mas a admissibilidade de uma certa forma
legislativa de concretização dessa orientação. Sendo assim, os aspectos modais
que dão rosto acabado ao regime despenalizador, com relevância para o juízo de
constitucionalidade, devem ser sopesados em simultâneo, pois também eles
concorrem para a definição normativa do padrão de conduta tido como dispensador
da criminalização. A valoração conjunta de todos esses dados normativos é
produtiva de sentido, e de sentido relevante para a determinação precisa das
concepções que inspiraram o regime em apreço e da intencionalidade que presidiu
à sua consagração.
O pedido destaca autonomamente, como vimos, a questão primária da não
punibilidade da intervenção voluntária da gravidez, em determinado período
inicial, por opção da mulher, sem necessidade de justificação. São, mesmo,
invocados os resultados do referendo, a que é atribuído “grande valor
‘consultivo’”, demonstrativo de que “só 25% dos portugueses quer o aborto livre
em Portugal”, para fundamentar que “se volte a apreciar” a questão.
Mas essa questão não pode ser reposta nos mesmos termos em que anteriormente,
nos Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006, esteve em juízo. Tendo entrado em vigor uma
regulação legislativa, em concreto, dos procedimentos a observar como condição
de impunibilidade da interrupção voluntária da gravidez por opção da mulher, a
consagração desta nova modalidade de interrupção não sancionável criminalmente
não pode ser encarada em abstracto e isoladamente, de forma estanque às
inferências de sentido que advêem dessa regulação.
Tal só se justificaria se o Tribunal entendesse que uma solução correspondente
ao modelo dos prazos nunca, qualquer que seja a sua conformação concretizadora,
pode satisfazer o mandamento constitucional aplicável, ou, inversamente, que ela
é sempre, independentemente da existência e da natureza de mecanismos de tutela
da vida intra-uterina, constitucionalmente conforme.
O Tribunal não adopta, porém, nenhuma destas duas posições, em radical oposição
bipolar.
A primeira traduziria uma ruptura com a linha de orientação e com as decisões
adoptadas nos Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006. Ora, não se produziu, com
vencimento, qualquer divergência com as concepções que informam aqueles arestos,
mantendo o Tribunal integralmente o entendimento de que o dever de protecção da
vida intra-uterina, que sobre o Estado recai, não exige, como conteúdo mínimo,
numa fase inicial, a invocação de razões, taxativamente indicadas, para lhe pôr
termo.
A segunda posição decorre da assunção de que, nessa fase, o Estado pode
alhear-se do destino do feto, sem que se lhe imponha, em relação a esse período,
qualquer dever de emissão de normas de protecção. Ainda não haveria, nessa fase,
qualquer conflito entre bens constitucionalmente protegidos, pelo que a decisão
da gestante em abortar, do seu estrito foro pessoal, seria livre e
incondicionada – como ainda hoje se reconhece, malgrado todas as contestações,
no sistema jurídico norte-americano, na sequência da jurisprudência firmada pelo
Supreme Court, no caso Roe v. Wade, de 1973.
Também esta solução não merece acolhimento. O Tribunal perfilha o entendimento
contrário de que a vida intra-uterina é um bem digno de tutela em todas as fases
pré-natais, sem prejuízo de admitir diferentes níveis e formas de protecção, em
correspondência com a progressiva formação do novo ente.
Dentro destas coordenadas, o se da admissibilidade da consagração do modelo de
prazos é questão que não pode agora ser desligada do como da sua concreta
configuração. O que cumpre fundamentalmente valorar é se, tendo em conta a
modelação concreta da disciplina legal, a solução da impunibilidade, dentro
desse contexto normativo, corresponde ou não a “deixar totalmente desprotegida a
vida humana até às 10 semanas”, como se sustenta no pedido.
Mas a unidade valorativa daquelas duas vertentes da questão não se opõe a uma
analítica discursiva, seguindo um percurso argumentativo feito de passos
sucessivos e em cadeia, tomando como ponto de partida as posições de base que
nelas se projectam. Só assim se ganha uma visão clara de todas as dimensões
coenvolvidas e do seu peso próprio na fundamentação da resposta às questões de
constitucionalidade objecto deste recurso.
É esse método que aqui seguiremos.
11.4.2. A questão central de constitucionalidade formulada no pedido
estrutura-se, fundamentalmente, em torno da questão de saber se, com o regime
constante dos artigos 142.º, n.º 1, alínea e), n.º 4, alínea b), do Código
Penal, e 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, o Estado cumpre, ou não, o dever que
sobre ele impende de protecção da vida intra-uterina.
De relevo determinante, como questão prévia cuja resposta interfere praticamente
em todas as valorações a efectuar, é a definição do estatuto constitucional do
ser em gestação, o mesmo é dizer, a identificação do alcance, no que diz
respeito à protecção da vida intra-uterina, da inviolabilidade da vida humana,
consagrada no artigo 24.º da CRP.
Logo nos dois primeiros acórdãos sobre este tema, o Tribunal tomou posição clara
quanto a esta questão.
Considerando que a vida intra-uterina está abrangida pelo âmbito de protecção
daquela norma – o que, anteriormente, o Parecer n.º 31/82 da Procuradoria-Geral
da República (BMJ 320.º, 224 s) não dera como certo –, o Tribunal acentuou, no
Acórdão n.º 25/84, que ela representava “um valor não juridicamente
subjectivado”, o que não podia deixar de ser tido em conta no confronto a
estabelecer “com outros valores juridicamente subjectivados na mulher grávida,
com a natureza de direitos fundamentais”.
Esta ideia foi precisada e desenvolvida no subsequente Acórdão n.º 85/85, sendo
aí qualificada como uma das duas “ideias determinantes da posição que colhe
apoio dominante no Tribunal”. Escreveu-se, a seu respeito:
«Por um lado, entende-se que a vida intra-uterina compartilha da posição que a
Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido
(isto é, valor constitucional objectivo), mas que não pode gozar da protecção
constitucional do direito à vida propriamente dito – que só cabe a pessoas ?,
podendo portanto aquele ter que ceder, quando em conflito com direitos
fundamentais ou com outros valores constitucionalmente protegidos.
[…] Só as pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais – pois não há
direitos fundamentais sem sujeito ?, pelo que o regime constitucional de
protecção especial do direito à vida, como um dos “direitos, liberdades e
garantias pessoais”, não vale directamente e de pleno direito para a vida
intra-uterina e para os nascituros.
[…] A verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem, não podendo por
isso ser directamente titular de direitos fundamentais enquanto tais. A
protecção que é devida ao direito de cada homem à sua vida não é aplicável
directamente, no mesmo plano, à vida pré-natal, intra-uterina.»
Não se afastou desta orientação o Acórdão n.º 288/98, onde se deixou registado:
«Nesta visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da
República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à
vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva,
em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá
uma verdadeira imposição constitucional.
Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo
grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida
individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido – em cada pessoa».
Finalmente, no Acórdão n.º 617/2007, exarou-se:
«Da inviolabilidade da vida humana como fórmula de tutela jurídica não deriva,
desde logo, que a protecção contra agressões postule um direito subjectivo do
feto ou que não seja de distinguir um direito subjectivo à vida de uma protecção
objectiva da vida intra-uterina, como resulta da jurisprudência constitucional
portuguesa e de outros países europeus. O facto de o feto ser tutelado em nome
da dignidade da vida humana não significa que haja título idêntico ao
reconhecido a partir do nascimento».
O Tribunal não vê fundamento para rever esta posição, que sempre tem perfilhado.
Sem dúvida nenhuma que o feto é digno de protecção pela sua potencialidade em se
tornar uma pessoa, um “eu” consciente da sua individualidade própria, mas, como
acentuou OVADIA EZRA, “a potencialidade de aquisição de um determinado estatuto
não confere a titularidade dos direitos associados a esse estatuto” (The
Withdrawal of Rights. Rights from a Different Perspective,
Dordrecht/Boston/London, 2002, 204).
Sendo assim, uma resposta negativa, quanto ao cumprimento, pelo Estado, do seu
dever de protecção, só poderá ser emitida se se concluir que o regime em apreço
não traduz um suficiente respeito pela valia intrínseca da vida humana.
11.4.3. O tratamento da questão assim enunciada não pode passar sem uma alusão,
perfunctória embora, à dogmática dos imperativos jurídico-constitucionais de
protecção, reportada à inviolabilidade da vida intra-uterina, enquanto bem
objectivo.
O Estado não está apenas obrigado ao respeito da vida pré-natal, abstendo-se de
qualquer acção susceptível de acarretar a destruição do seu desenvolvimento no
ventre materno. Sobre ele recai também uma vinculação a prestações satisfatórias
da “garantia de efectivação” (artigo 2.º da CRP) de tal valor, designadamente
contra potenciais agressões de terceiros ou da própria gestante – dimensão sobre
que, atenta a sua natureza, repousa o essencial da consistência prática do bem
em causa.
Esta injunção constitucional comporta seguramente o dever de adopção de medidas
preventivas, numa dupla direcção: a de evitar situações de gravidez indesejada
(em que se insere a garantia do “direito ao planeamento familiar” consagrada na
alínea d) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP) e a de contrariar motivações
abortivas, uma vez iniciado esse estado. Aqui se incluem também medidas
incentivadoras, sem esquecer as que visam o exercício (mas também, antes dele, a
assunção) de uma maternidade consciente (cfr. a mesma alínea), as quais têm uma
iniludível projecção irradiante, de sentido tutelador, neste campo.
É neste vasto e diversificado universo de normas e de estruturas (também) de
protecção do bem da vida pré-natal que se incrusta a regulação do acto
específico de interrupção voluntária da gravidez, onde predominam os
instrumentos de direito penal.
Na fixação dessa disciplina, goza o legislador ordinário de uma ampla margem de
discricionariedade legislativa, balizada por dois limites ou proibições, de
sinal contrário. Ele deve, por um lado, não desrespeitar a proibição do excesso,
por afectação, para além do admissível, da posição jurídico-constitucional da
mulher grávida, nas suas componentes jusfundamentais do direito à vida e à
integridade física e moral, à liberdade, à dignidade pessoal e à
autodeterminação. Mas também deve, no pólo oposto, não descurar o valor
objectivo da vida humana, que confere ao nascituro (à sua potencialidade de,
pelo nascimento, aceder a uma existência autonomamente vivente) dignidade
constitucional, como bem merecedor de tutela jurídica. O cumprimento desse dever
está sujeito a uma medida mínima, sendo violada a proibição de insuficiência
(“Untermassverbot”) quando as normas de protecção ficarem aquém do
constitucionalmente exigível.
Como a doutrina tem justamente salientado – cfr. ROBERT ALEXY, Theorie der
Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986, 420-422, e CLAUS-WILHELM CANARIS, Direitos
fundamentais e direito privado, Coimbra, 2003, 65-66, e 115-116 – do ponto de
vista da liberdade de actuação estadual e, em particular, de conformação
legislativa, é grande a diferença estrutural entre os deveres negativos, de
abstenção, e os positivos, de activa intervenção tuteladora. No domínio dos
primeiros, assente que uma certa e determinada medida é ofensiva de um direito
fundamental, o dever de a omitir impõe-se, prima facie. Isto porque a proibição
de aniquilar ou afectar esse direito abrange toda e qualquer ingerência com tal
virtualidade, incluindo, portanto, aquela específica medida que está em
apreciação.
Inversamente, o dever de protecção não importa a automática ordenação de todas
as iniciativas a que seja de imputar esse resultado. E isto porque, enquanto que
a proibição de ingerência só se cumpre com a omissão de todas as acções de
destruição ou afectação, a realização de uma só acção adequada de protecção ou
promoção é condição suficiente do cumprimento do mandato constitucional nesse
sentido. Quando são adequadas diferentes acções de protecção ou promoção,
nenhuma delas é, de per si, necessária para o cumprimento desse mandato: a única
exigência é que se realize uma delas, pertencendo a escolha ao Estado. Somente
se existir uma única acção suficiente de promoção ou protecção é que ela se
torna necessária para o cumprimento do dever de protecção.
O que se retira da Constituição é apenas o dever de proteger, não estando
predeterminado, nessa sede, um específico modo de protecção. Já OTTO BACHOF, em
texto hoje clássico, o pôs em destaque, salientando que nenhum dos concretos
problemas regulativos postos pela protecção da vida ainda por nascer encontra
“resposta imediata na Constituição”, pelo que, para a sua decisão, “o legislador
há-de dispor consequentemente de uma larga margem de liberdade” – “Estado de
direito e poder político: os tribunais constitucionais entre o direito e a
política”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LVI
(1980), 1 s., 19.
As inevitáveis opções a fazer, neste domínio, são, pois, pertença do legislador
ordinário, sendo este colocado perante um espectro de soluções normativas de
alcance distinto e de desigual intensidade tuteladora.
Dentro desse espectro, a incriminação representa, em regra, o grau máximo de
protecção. Mas também, simultaneamente, a lesão, na maior medida, de direitos
encabeçados pelo sujeito penalizado, mormente quando, como neste caso, a
verificação do tipo acarreta privação da liberdade.
É no campo de valoração delimitado pela proibição do excesso e pela contraposta
proibição de insuficiência que o legislador tem que exercitar a sua competência
de modelação da disciplina da interrupção voluntária da gravidez. Podendo optar
por consagrar uma protecção superior ao mínimo que lhe é
jurídico-constitucionalmente imposto, o legislador não pode ultrapassar os
limites que resultam da proibição do excesso (em último termo, do princípio da
proporcionalidade). Só serão constitucionalmente conformes as soluções que
respeitem ambas as proibições.
11.4.4. Na apreciação, à luz destes parâmetros, da solução que está
especificamente sob escrutínio, nos presentes autos, não poderemos considerá-la
isoladamente, sem ter em conta o modo como, na sua totalidade, foi traçada a
disciplina da interrupção voluntária da gravidez (e, até, o conjunto de medidas
que, fora deste campo, contribuem para uma redução do número de abortos). É “na
sua globalidade e no seu funcionamento conjunto” que as medidas de direito
infraconstitucional devem assegurar uma protecção eficiente dos direitos
fundamentais, como sustenta CANARIS (ob. cit., 117-118). Directriz genérica que
impõe, desde logo, e antes do mais, uma caracterização e valoração da
intencionalidade que subjaz a essa disciplina, como unidade normativa.
Dela ressalta, como característica fundamental, um crescendo de intensidade
tuteladora, consoante o maior tempo de gravidez, compondo o que poderemos
designar por um regime trifásico: num período inicial, a decisão é deixada à
responsabilidade última da mulher, em fases subsequentes a interrupção fica
dependente de certas indicações, sendo proibida, em princípio, no último estádio
de desenvolvimento do feto.
Esta tutela progressiva, utilizando como critério o tempo de gestação,
representa, em si mesma, uma opção básica determinada por um intuito de
harmonização dos bens em colisão. Ela procura repercutir, no plano da valoração
ético-jurídica, a mutabilidade dos dados biológicos que conformam a vida ainda
não nascida e o significado que ela assume para os termos da peculiar relação –
sem paralelo em qualquer outro conflito de bens jusfundamentais – que se
estabelece entre o nascituro e a gestante.
Na esteira do Bundesverfassungsgericht, na sua decisão de 28 de Maio de 1993, é
como “dualidade na unidade” que melhor se pode caracterizar essa relação
(BVerfGE 88, 203 s., 253). Mas, como bem salientam os juízes MAHRENHOLZ e
SOMMER, na sua declaração de voto (BVerfGE 88, 338 s., 342), tal relação não se
mantém estática em todo o período de gravidez: «enquanto que nas primeiras
semanas a mulher e o nascituro (…) se apresentam ainda completamente como uma
unidade, com o crescimento do embrião a ‘dualidade’ evidencia-se mais
fortemente. Este processo de desenvolvimento tem também significado jurídico».
No entender do Tribunal Constitucional, em período algum do processo natural de
gestação, incluindo a sua fase inicial, se justifica que a solução do conflito
se possa dar pela prevalência absoluta do interesse da mulher, com o sacrifício
total do bem da vida, o que levaria à admissão de um livre e incondicionado
direito a abortar.
Mas já se justifica que as alterações biológicas que se dão no processo de
gestação, significativas do ponto de vista da progressiva formação do suporte
físico da personalidade humana, tenham incidência na valoração
jurídico-constitucional das soluções de conciliação dos bens em conflito. É
constitucionalmente viável que a ponderação de interesses em causa, na busca
dessas soluções, leve em conta o tempo de gestação, precisamente porque, com o
desenrolar do processo ontogenético, a realidade existencial de um dos bens a
tutelar assume contornos gradativamente distintos, assim se alterando também,
correspondentemente, o ponto de equilíbrio a estabelecer com as exigências
decorrentes do estatuto jusfundamental da mulher grávida. Como acentua a já
mencionada declaração de voto: “(…) o conteúdo da posição jusfundamental da
mulher e o papel do Estado no exercício do seu dever de protecção devem ser
avaliados de modo diferente na fase inicial e em estádio mais adiantado [da
gestação]” (ob. loc. cit.).
Precisamente porque a sua ideia fundante corresponde a um “sentimento jurídico”
generalizadamente difundido, o atendimento do tempo de gestação é um dado comum
a todas as legislações não radicalmente proibicionistas. Em todas elas, na
variabilidade das suas soluções, com maior ou menor amplitude de consagração de
previsões de impunibilidade, o factor tempo é considerado. O próprio “modelo das
indicações” não o dispensa.
11.4.5. Mas a solução questionada não contende apenas com a medida da protecção
do embrião e do feto, na fase inicial da gestação. Ela lança a dúvida quanto à
própria existência de protecção e, se admitirmos que ela está consagrada, quanto
ao seu modo de efectivação. O que se interroga, em primeira linha, é se a
equilibrada harmonização dos valores em conflito, que passa – o que se admite –
pelo estabelecimento de regimes diferenciados, consoante o tempo de maturação do
embrião e do feto, não é posta em crise quando, dentro de um período inicial, se
reconhece autonomia decisória à mulher, facultando-lhe a tomada de uma “decisão
livre, consciente e responsável” (alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal, na formulação do artigo 1.º da Lei n.º 16/2007). Dando como líquido que a
valoração da vida-uterina e a protecção do feto “será quase sempre prevalecente
nas últimas semanas” (Acórdão n.º 288/98), e que, em fases precedentes, se
justifica, em certas circunstâncias, a solução contrária, fica em aberto saber
se, e em que condições, o atendimento da posição constitucional da mulher pode
ir ao ponto de, nas primeiras semanas, atribuir relevo decisivo à manifestação
da sua vontade em interromper a gravidez.
Esta enunciação mais precisa da questão de constitucionalidade a solucionar
remete-nos directamente, após o enquadramento efectuado, para a apreciação do
sistema instituído pela Lei n.º 16/2007.
Duas notas prévias devem aqui ser explicitadas.
A primeira para evidenciar, em reforço do que já foi dito, que cumpre apreciar
apenas se o regime de direito ordinário, globalmente considerado, traduz ou não
a realização eficiente do mínimo de protecção constitucionalmente exigido da
vida intra-uterina, incluindo da vida do embrião nas primeiras 10 semanas. Não
importa averiguar se outras medidas alternativas às adoptadas protegeriam em
maior grau esse bem. O legislador era livre (no limite da proibição do excesso)
de implantar essas medidas, mas não estava vinculado a fazê-lo. Contrariamente
ao que se lê no pedido, a questão não está, pois, em saber se não existem outros
meios “que melhor protejam o valor da vida”. Está apenas em saber se o meio
concretamente escolhido satisfaz ou não o mínimo de protecção.
É o cumprimento efectivo de um dever, não o eventual aproveitamento de uma
permissão, que constitui o objecto de apreciação, pelo que há que ajuizar
unicamente se os meios de que o legislador se socorreu para tal fim levam o
direito infraconstitucional a situar-se num ponto ainda consentido pela
proibição de insuficiência.
A segunda nota destina-se a afastar, in limine, eventuais representações menos
fidedignas do regime posto em vigor. Ele não pode ser caracterizado, por
confronto com um modelo puro de indicações, como uma “retirada” ou “demissão” do
Direito, com criação de um espaço em branco, “vazio de juridicidade”, dentro do
período considerado. Só seria assim se a grávida fosse deixada só, na sua
decisão, encarada esta como uma pura escolha individual, sem relevo comunitário
e, portanto, sem previsão de qualquer tipo de interferência de representantes
credenciados do interesse geral.
É assim no direito norte-americano, mas assim não é no sistema instituído pela
Lei n.º 16/2007. Esta contém um feixe de indicações normativas, com vinculação
da mulher predisposta a interromper a gravidez a certos ónus procedimentais, que
constituem outras tantas condições legais de impunibilidade do acto.
Não pode, pois, dizer-se que este acto fique subtraído, no âmbito temporal das
10 primeiras semanas, a toda e qualquer forma de influência e orientação pelo
Direito. Nada justifica que as normas de procedimento e de organização sejam, à
partida, excluídas do conjunto de instrumentos de direito ordinário mobilizáveis
pelo legislador, para fins de tutela de bens constitucionais, pois também elas
podem incrementar a probabilidade de preservação da integridade desses bens.
A simples previsão de uma tramitação legal, com imposição à grávida de uma
actuação sequencial, em momentos temporalmente intervalados, de que faz parte a
sujeição a uma consulta prévia de carácter obrigatório, promove, no mínimo, e
desde logo, a consciencialização (ou o reforço da consciencialização) da
gravidade ético-jurídica daquilo que se intenta praticar, com incidência
potencial sobre a própria tomada de decisão.
A mais disso, a obrigatoriedade de percorrer um iter procedimental, em
estabelecimento oficial ou oficialmente autorizado, com um prazo entre o pedido
de marcação e a efectivação de consulta que pode ir até 5 dias (artigo 16.º, n.º
2, da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho), e um período de reflexão mínimo
de 3 dias, entre a consulta prévia e a entrega do documento formalizador do
consentimento (artigo 142.º, n.º 4, alínea b) da Lei n.º 16/2007, e artigo 18.º,
n.º 1, da referida Portaria), traz, com a garantia de um “consentimento livre e
esclarecido”, um obstáculo eficiente à execução de decisões tomadas por impulso,
circunstancialmente motivadas e insuficientemente ponderadas.
Nem é, sequer, rigoroso caracterizar a solução como exprimindo a renúncia à
intervenção do direito penal, como instrumento de tutela, no período em causa.
Não pode falar-se de renúncia, pelo menos de uma renúncia totalmente abdicativa,
pois a interrupção voluntária de gravidez continua a ser punível quando
praticada, neste período, com desrespeito pelas condições legalmente fixadas.
Nesta medida, estamos apenas perante uma restrição (ainda que significativa) do
âmbito da criminalização.
O que está em juízo, digamo-lo de uma vez por todas, é saber se os instrumentos
penais de intervenção podem ser substituídos, sem perda de eficiência, ou sem
perda de eficiência comprometedora da satisfação do imperativo de tutela da vida
antes do nascimento, por outros meios jurídicos de conformação, de carácter não
penal.
11.4.6. Não pode duvidar-se, em face do que já foi dito quanto à vida
intra-uterina comungar, em certos termos, da valia intrínseca e da dignidade da
vida humana, que ela representa um bem digno de tutela penal. Mas a dignidade
jurídico-penal de um bem, se é critério necessário, não é critério suficiente
para a outorga da tutela correspondente. Ouçamos o que, a propósito, nos diz
FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal. Parte geral, I, 2.ª ed., Coimbra, 2007, 127 s.):
«O que significa, no fim, que o conceito material de crime é essencialmente
constituído pela noção de bem jurídico dotado de dignidade penal; mas que a esta
noção tem de acrescer ainda um qualquer outro critério que torne a
criminalização legítima. Este critério adicional é – como, de resto, uma vez
mais directamente se conclui a partir do já tantas vezes referido art. 18.º -2
da CRP – o da necessidade (carência) de tutela penal. […] Uma vez que o direito
penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais
onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos
casos em que todos os outros meios de política social, em particular da política
jurídica não-penal, se revelem insuficientes ou inadequados. Quando assim não
aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao
princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação dos princípios
da subsidiariedade e da proibição do excesso. […] Neste sentido se pode e deve
afirmar, em definitivo, que a função precípua do direito penal – e desta deriva
o conceito material de crime – reside na tutela subsidiária (de ultima ratio) de
bens jurídico-penais.»
“O inevitável entreposto constituído pelo critério da necessidade ou da carência
de pena” não pode, pois ser ultrapassado (A. ob. cit., 130), devendo ser objecto
de consideração autónoma, dado que a carência de pena não é inferível, sem mais,
da dignidade jurídico-penal do bem, por mais forte que ela seja.
E essa tarefa de ponderação da necessidade de criminalização, cabe, em
princípio, ao legislador ordinário, estando inserida, como um dos seus momentos
mais relevantes, no cumprimento do mandato geral de consagração de mecanismos de
tutela. Na falta de uma injunção expressa de intervenção penal, cai no âmbito da
valoração mediadora do legislador uma decisão a esse respeito – a qual,
naturalmente, deverá ser tomada com observância dos princípios constitucionais
aplicáveis, em particular o da proporcionalidade. A ideia de que “a Constituição
impõe (apenas) a protecção como resultado, mas não a sua conformação específica”
(BVerfGE, 88, 254) não deixa de abranger também a própria opção de base de
utilização ou preterição de instrumentos penais, pelo menos para quem admita que
não existem imposições jurídico-constitucionais implícitas de criminalização –
posição que, não sendo incontestada, é defendida, entre nós, nomeadamente por
FIGUEIREDO DIAS (ob. cit., 129).
11.4.7. Tem sido esta também a posição que o Tribunal, desde a primeira hora,
tem adoptado, quanto à questão de saber se, por imperativo constitucional, a
tutela da vida pré-natal postula a penalização dos comportamentos que a ofendam.
Logo no Acórdão n.º 25/84, depois de se chamar a atenção para “a ineficácia da
repressão penal”, neste campo, por força da “falta de reacção das chamadas
‘instâncias sociais de controle”’, deixou-se expresso:
«Daí que se compreenda que os estudiosos da matéria não pudessem deixar de
interrogar-se sobre os meios de ordem não-penal capazes de minorar esses males,
sendo certo para mais que a repressão penal, à luz do chamado “princípio da
subsidiariedade”, só se justifica se for proporcionada, e para o ser precisa de
ter eficácia. Quando esta não se alcance, então devem procurar-se outros meios
ou processos de evitar tal flagelo […]».
Essa ideia foi retomada no Acórdão n.º 85/85, tendo-se aí sustentado, entre
outras afirmações de idêntico teor:
«Por outro lado, independentemente da natureza da protecção constitucional da
vida intra-uterina, nada, porém, impõe constitucionalmente que essa protecção
tenha de ser efectivada, sempre e em todas as circunstâncias, mediante meios
penais, podendo a lei não recorrer a eles quando haja razões para considerar a
penalização como desnecessária, inadequada ou desproporcionada ou quando seja
possível recorrer a outros meios de protecção mais apropriados e menos
gravosos».
Pode dizer-se que, com estas duas decisões, a jurisprudência constitucional
portuguesa, partindo do princípio que a vida pré-natal é um bem
constitucionalmente protegido, enquanto valor objectivo, de imediato acrescentou
que a sanção penal deve constituir uma última instância, só justificada quando
essa protecção não possa ser garantida de outro modo.
Os Acórdãos n.ºs 288/98 e 617/2006 reiteraram essas duas ideias-força. Assim,
pode ler-se no primeiro:
«Nesta visão das coisas, reconhecer-se-á que o artigo 24.º da Constituição da
República, para além de garantir a todas as pessoas um direito fundamental à
vida, subjectivado em cada indivíduo, integra igualmente uma dimensão objectiva,
em que se enquadra a protecção da vida humana intra-uterina, a qual constituirá
uma verdadeira imposição constitucional.
Todavia, essa protecção da vida humana em gestação não terá de assumir o mesmo
grau de densificação nem as mesmas modalidades que a protecção do direito à vida
individualmente subjectivado em cada ser humano já nascido – em cada pessoa.
[…] De todo o modo, de acordo com esta leitura, o legislador ordinário estará
vinculado a estabelecer formas de protecção da vida humana intra-uterina, sem
prejuízo de, procedendo a uma ponderação de interesses, dever balancear aquele
bem jurídico constitucionalmente protegido com outros direitos, interesses ou
valores, de acordo com o princípio da concordância prática».
Dentro deste quadro de pensamento, o referido Acórdão consolidou também a
orientação, já seguida pelo Acórdão n.º 85/85, da admissibilidade de uma tutela
gradativa, “progressivamente mais exigente à medida que avança o período de
gestação”.
Quanto aos meios de tutela, ambas as decisões se irmanaram na aceitação do ponto
de vista de que não há uma imposição constitucional de criminalização, na
situação em apreço, tendo o Acórdão n.º 617/2006 expressamente aludido ao
princípio da necessidade, nestes termos:
«Tal como já resultava do Acórdão n.º 288/98, deverá salientar-se que estamos no
terreno da responsabilidade penal, onde prevalece o princípio da necessidade da
pena e não perante uma mera discussão sobre o reconhecimento de valores ou meras
lógicas de merecimento de protecção jurídica».
11.4.8. Tendo em conta a operatividade autónoma do princípio da necessidade e a
imprescindível conjugação da proibição do défice de protecção com o princípio da
proporcionalidade, é metodicamente incorrecto partir aprioristicamente da
legitimidade da intervenção penal, só afastável mediante a prova da
disponibilidade de um meio alternativo de tutela menos intrusivo e de eficiência
equivalente ou superior. Com isso se inverte o sentido do percurso valorativo e
a colocação do ónus de fundamentação, assumindo-se como ponto de partida o que
não pode ser senão o hipotético ponto de chegada.
Dando como assente que a sanção penal é o instrumento mais gravoso de
intervenção, com a consequente prioridade aplicativa, deste ponto de vista, de
qualquer outro que o seja menos, a sua utilização não pode resultar, sem mais,
da eventual insatisfação provocada por outros instrumentos de tutela. Há que
evitar, nesta matéria, qualquer juízo prima facie, pelo que a intervenção penal
não pode escapar ao crivo da comprovação positiva da sua eficiência própria, até
porque da ineficiência de outros meios não pode deduzir-se automaticamente a
eficiência do direito penal.
Está hoje assente, na doutrina penal, e na senda da teoria dos fins das penas de
LISZT, que os elementos “necessidade” e idoneidade” constituem pressupostos
justificativos da pena. Assevera, a este respeito, CLAUS ROXIN:
«Não se pode castigar – por falta de necessidade – quando outras medidas de
política social, ou mesmo as próprias prestações voluntárias do delinquente
garantam uma protecção suficiente dos bens jurídicos e, inclusivamente, ainda
que se não disponha de meios mais suaves, há que renunciar – por falta de
idoneidade – à pena quando ela seja política e criminalmente inoperante, ou
mesmo nociva.» ? Problemas fundamentais de direito penal, 2.ª ed.ª, Lisboa,
1993, 57-58.
A utilização do direito penal só se legitima quando seja de lhe atribuir (como
requisito mínimo) eficiência, e quando a eficiência que se lhe imputa, sendo
incontroversamente superior à de qualquer outro meio alternativo, é também a
única capaz de atingir o mínimo de protecção constitucionalmente imposto. Só
nestas condições resultam satisfeitos os critérios da idoneidade e da
necessidade, só assim se justifica a conversão do imperativo constitucional de
tutela, ainda indeterminado quanto aos meios, num preciso dever de
estabelecimento de sanções penais.
Ora, a tal respeito, a interrupção voluntária da gravidez põe em cheque
convicções adquiridas noutros campos.
Na verdade, essa acção faculta um bom exemplo de uma das situações em que não
pode partir-se da ideia da eficiência da intervenção do direito penal, como se
de uma apriorística evidência se tratasse. A singularidade da relação conflitual
e da fonte do perigo de lesão explicam, em boa medida, essa falência dos
instrumentos penais.
Dados os termos da tipificação legal, a questão só se põe quando a interrupção é
realizada com o consentimento da própria grávida. Nessa configuração, em que se
esfuma a alteridade entre autor e vítima, a ameaça de sanção penal para resolver
um conflito “interior”, de carácter existencial, na esfera pessoal de alguém que
simultaneamente provoca e sofre a lesão, não tem a eficiência que, em geral, lhe
cabe.
Os números aí estão, para o comprovar eloquentemente. O regime de punibilidade,
aplicável em todas as fases da gestação, não evitou a prática, em larga escala,
do aborto, frequentemente em condições atentatórias da dignidade e de grave
risco para a saúde física e psíquica (ou até para a vida) da mulher – bens,
estes, objecto de direitos fundamentais, radicados na esfera da grávida, também
eles, a fortiori, cobertos por um dever estadual de protecção.
Acresce que a eficiência da criminalização, neste como em qualquer outro
domínio, depende, em primeira linha, do efectivo exercício dos poderes punitivos
do Estado. No que agora nos ocupa, só a
efectiva perseguição e pronúncia, em número significativo, dos agentes do crime
de interrupção voluntária da gravidez constituiria, potencialmente, um factor de
contenção da sua prática.
Ora, o que constatamos, ano após ano, é a extrema raridade das condenações com
esta causa. Segundo dados constantes do “Relatório e Parecer da Comissão de
Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias”, intitulado Sobre
interrupção voluntária de gravidez, elaborado, em Fevereiro de 1997, pelo
deputado José de Magalhães, foram registados, nos sete anos anteriores, nos
serviços do Ministério Público, a nível nacional, 97 processos relativos à
possível ocorrência de crimes de aborto. Quanto a condenações, foram proferidas,
entre 1985 e 1995, em número que oscilou entre duas (em 1986 e 1988) e treze (em
1992), perfazendo, nesses onze anos, um total de 66. Constata-se, assim, que, em
flagrante contraste com a sua grande difusão, o crime de interrupção voluntária
da gravidez muito poucas vezes atravessa os umbrais das portas dos nossos
tribunais. E quando, excepcionalmente, tal acontece, a reacção social é mais de
mal-estar do que de aplauso – a evidenciar, conjuntamente com a inércia das
instâncias sociais de controlo, que o alto significado do bem afectado e a
gravidade da lesão não são acompanhados, como seria normal (não fora o
particular contexto conflitual do acto lesivo), por um sentimento de radical
intolerabilidade. Isto mostra que, do ponto de vista comunitário, tal
comportamento não é valorado como um crime.
Nem se detecta qualquer movimento social significativo no sentido da alteração
deste estado de coisas, pugnando pelas efectivas perseguição e punição do maior
número de infractoras.
A observação da realidade – e a ponderação da carência de pena, em função, como
deve ser, da sua eficiência relativa, não pode passar à margem de uma diagnose
da factualidade empírica da vivência social – não é, pois, de molde a conferir,
com um mínimo de consistência, validade a um discurso de criminalização da
interrupção em todo o arco temporal da gravidez, incluindo na sua fase mais
precoce. Não é de esperar que a penalização criminal crie um “ambiente” de
decisão favorável à prossecução da gravidez.
E esta conclusão não representa uma conjectura ou uma prognose, mais ou menos
falível, sobre o futuro, mas um juízo seguro que assenta em dados indesmentíveis
retirados da experiência passada, uma vez que esse foi o regime anteriormente em
vigor, já testado na sua aplicação.
11.4.9. Mas o regime instituído pela Lei n.º 16/2007 não se caracteriza apenas
pela forte retracção da intervenção penal, nas primeiras 10 semanas de gravidez.
Na verdade, não estamos perante uma simples ampliação dos casos de
impunibilidade, dentro do mesmo critério inspirador, como seria o caso se, por
exemplo, tivessem sido acrescentadas novas indicações justificativas (a
indicação económico-social, designadamente).
Aquele diploma operou uma verdadeira mudança do paradigma regulador, na medida
em que passou a admitir uma hipótese de exclusão de punição que passa apenas, no
plano das condições substantivas, pela vontade da gestante. É esta quem, em
último termo, e ainda que tendo que satisfazer requisitos procedimentais, dita a
preservação ou não da vida intra-uterina, não ficando sujeita a punição na
hipótese de se decidir pela interrupção. O juízo definitivamente relevante, a
esse respeito, é o juízo subjectivo da própria grávida, não tendo ela que o
submeter à apreciação, segundo critérios objectivos, de uma entidade terceira.
Ainda que a intervenção desta esteja prevista, como parte num processo
comunicacional que inclui uma consulta obrigatória, ela não goza de qualquer
poder vinculante, impositivo de uma solução contrária à desejada pela grávida.
É forte a tentação de concluir daqui que o resultado deste regime é a
desprotecção total da vida intra-uterina. Mas esta conclusão seria algo
apressada, não levando em conta, mais uma vez, a singularidade da situação.
O conceito de “dualidade na unidade”, como um sistema móvel, em que o segundo
termo goza, na fase inicial da gestação, de predominância, que perde
progressivamente, em favor do primeiro, tem, de novo, virtualidades
justificativas desta específica opção legal.
A relação que aqui se estabelece, mesmo quando conflitual, não é entre
subjectividades em oposição, pois o feto não é sentido pela grávida como um
“outro”, como um ente destacado de si própria. Daí que o conflito dramaticamente
sentido pela grávida, quando coloca a hipótese de abortar, seja, em grande
medida, um conflito consigo própria, travado no âmago da sua personalidade,
sofrido como pessoalíssimo e, como tal, refractário a uma solução autoritária
“vinda de fora”.
Neste quadro singular, é defensável que o Estado, através do legislador, valore
como cumprindo melhor o seu dever de protecção, numa fase inicial da gravidez,
tentando “ganhar” a grávida para a solução da preservação da potencialidade de
vida, através da promoção de uma decisão reflectida, mas deixada, em último
termo, à sua responsabilidade, do que ameaçá-la com uma punição criminal, de
resultado comprovadamente fracassado (ou, mesmo, segundo alguns, contrário ao
desejado, como o próprio Tribunal Constitucional alemão admite – BVerfGE 88,
265). Através, designadamente, de uma consulta de aconselhamento, em que a
grávida é encarada como “interlocutora” (Ansprechpartnerin) e não como
“adversária de uma pretensão” (Anspruchsgegnerin) – para utilizarmos os
sugestivos termos dos juízes MARENHOLZ e SOMMER, na declaração de voto citada
(BVerfGE 88, 343) –, visa-se influenciar as suas motivações internas,
favorecendo um comportamento espontâneo que não afecte o bem da vida. Estando
esse bem corporizado num embrião ou num feto que a grávida traz em si e dela
depende, como suporte vital, é com ela, e não contra ela, que se intenta
protegê-lo (ibidem, 266).
Dificilmente se pode negar a adequação, de princípio, do meio de tutela à
situação do bem a tutelar, a homologia do processo tutelador com a configuração
específica do objecto de tutela.
E a solução não se apoia tanto numa reponderação dos interesses em conflito, com
melhor acolhimento dos titulados pela grávida (muito embora o atendimento desses
interesses decorra objectivamente da solução agora consagrada e corresponda a
padrões jusculturais sobre a posição da mulher hoje largamente aceites), mas na
correcta compreensão, e devida valoração, da especificidade desse conflito,
muito distinto dos que nascem entre dois sujeitos com vida e personalidades
próprias. Foi entendido (e a experiência judiciária confirma-o) que essa
especificidade rouba aos instrumentos penais a idoneidade e a eficiência de que
geralmente dão mostras, pelo que, levando a sério os critérios da adequação e da
necessidade, optou-se por dar preferência, no período inicial da gravidez, a uma
solução que, com pleno respeito da sua liberdade decisória, faz apelo ao sentido
de responsabilidade da grávida.
11.4.10. O alcance tutelador deste regime não pode ser objecto de desvalorização
total e imediata, in radice. Não se pode partir do princípio de que o propósito
de não prosseguir com a gravidez se filia em puras razões hedonísticas,
impulsionadoras de decisões apenas ditadas pelo interesse egoísta da própria
grávida. Dados fiáveis da análise sociológica e, até, o testemunho de
profissionais envolvidos nos processos de interrupção – cfr., para o caso
alemão, BVerfGE 88, 349 – apontam, todavia, noutra direcção. Eles evidenciam que
a decisão de abortar é tipicamente tomada, não obstante a angústia que provoca,
por genuína convicção de que se trata da decisão certa, no que pesa o sentido de
responsabilidade perante a vida futura do nascituro e perante outros sujeitos, a
quem se quer evitar dor ou causar prejuízo. Razões de responsabilidade moral,
tal como a grávida as compreende e sente, colocam-se frequentemente de ambos os
lados da opção a tomar. Como diz ROBIN WEST, “(…) a decisão de abortar é quase
invariavelmente tomada dentro de uma rede de responsabilidades e obrigações
entrecruzadas, concorrentes e muitas vezes irreconciliáveis” (apud RONALD
DWORKIN, Life’s Dominion. An Argument about Abortion and Euthanasia, London,
1993, 58).
Num campo de valoração pouco propício a concepções absolutizantes de
imperativos reguladores, em que não se divisam soluções ideais, de eficiência
garantida, mas em que, pelo menos, é certo que a punição criminal não reduz
significativamente o número de abortos e é contraproducente em relação a bens
constitucionalmente protegidos (a saúde da mulher, designadamente), não se
afigura injustificado confiar na capacidade da grávida para tomar uma decisão
responsável. Um direito soft, de base prestativa, mais promocional do que
repressivo, pode criar condições, na mente e na vontade da grávida, para que,
naqueles casos em que a dúvida interior se prolonga, subsistindo mesmo após o
início do processo de externalização da intenção abortiva, a decisão venha a
pender para o lado da vida. E só esses casos importam, pois todos os outros são,
realisticamente, casos “perdidos”.
11.4.11. Não sendo de rejeitar, à partida, por razões de eficiência, esta
solução abona-se em razões de princípio, na consideração da personalidade e da
dignidade da mulher. Há que atentar em que a carga axiológica do princípio da
dignidade humana não está toda do lado da vida intra-uterina. Ela investe também
a posição jurídico-constitucional da mulher, sendo que, nesta esfera, não está
apenas em causa o valor objectivo da vida humana, mas a sua valia pessoal para
alguém, uma pessoa, um sujeito já reconhecido como titular de direitos
fundamentais.
É certo que a interrupção voluntária da gravidez representa a denegação pura e
simples da expressão mais essencial desse valor, quando reportado à fase
intra-uterina. Em contrapartida, a hipótese contrária, a futura concretização de
um nascimento com vida, preserva, em princípio, a continuação da existência da
grávida, tendo impacto, por forte que seja, apenas na condução de uma vida com
sentido, na impossibilitação (ou no agravamento da impossibilitação) das
condições que, para a própria, em autodeterminação (e também, eventualmente,
para outros sujeitos directa ou indirectamente envolvidos), são tidas como dando
valor substancial à sua vida.
Nesta medida, pode dizer-se que é maior a gravidade da lesão causada pela
interrupção voluntária da gravidez. Mas essa conclusão apenas justifica a
atribuição de maior peso ao interesse na sua prossecução, na ponderação a
estabelecer com o interesse contrário. Já não legitima a renúncia à busca de
soluções minimamente compromissórias, em desconsideração total do pólo
valorativo formado pelo reconhecimento do valor constitucional da posição da
mulher. Tanto mais que, para esta, o respeito pela vida intra-uterina não se
traduz apenas, como para terceiros, num dever de omitir qualquer conduta que a
ofenda, num deixar correr, sem interferências lesivas, o processo natural de
gestação, vindo também a implicar, após o nascimento, na vinculação, por largos
anos, a deveres permanentes de manutenção e cuidado para com um outro, os quais
oneram toda a sua esfera existencial (cfr. MARGOT v. RENESSE, “§ 218 F. StGB –
eine unvolkommene Antwort auf ein unlösbares Problem”, Zeitschrift für
Rechtspolitik, 1991, 321 s. 322-323).
Esse compromisso, não estando em causa um conflito intersubjectivo,
protagonizado por dois titulares de direitos fundamentais, mas um conflito entre
bens pessoais de um sujeito e a tutela objectiva do “bem social” do respeito
pela vida, pode legitimamente ser estabelecido, pois, enquanto valor digno de
tutela independentemente do interesse pessoal de alguém, a vida humana não está
sujeita a uma lógica protectora de “ou tudo ou nada”, refractária a gradações
“de mais ou de menos”, imperante quando ela é objecto de um direito individual.
E pode bem dizer-se que o conjunto da disciplina da interrupção voluntária da
gravidez tem em conta, na justa medida, o maior peso do valor da vida.
Predominam aí as medidas punitivas, recorrendo o Estado exclusivamente ao
direito penal, para cumprir o seu dever de protecção do embrião e do feto, nos
estádios da gravidez em que a “dualidade” transparece com nitidez. Só nas
primeiras 10 semanas – período mais curto, aliás, do que o de 12 semanas
generalizadamente vigente, em direito comparado – é que o Estado, sem se demitir
desse dever, o prossegue por uma via combinatória da sanção penal com
instrumentos auto-responsabilizadores.
Esses instrumentos vão ao ponto de admitir que a ultima palavra, nesse período
temporalmente limitado, caiba à grávida. Razões de eficiência e de respeito pelo
estatuto constitucional da grávida casam-se, na justificação desta solução
específica, que não merece, por isso, uma apriorística censura constitucional.
Se o legislador, no uso da sua liberdade de escolha dos meios de tutela,
entendeu ser apropriado recorrer à colaboração da própria grávida, fazendo apelo
ao seu sentido de responsabilidade – opção que, como vimos, tem por si um
fundamento razoável –, a salvaguarda da sua autonomia de decisão, para além de
ser a solução que melhor se ajusta ao reconhecimento da dignidade da mulher, é,
verdadeiramente, uma condição necessária à possibilidade de eficácia daquele
apelo.
11.4.12. Mas a conclusão de que não há obstáculos, de princípio, à admissão
desta solução, em si mesma, não corresponde ainda a uma resposta definitiva à
questão de constitucionalidade posta, pois essa resposta não pode ser dada sem
valoração das condições que subtraem à punibilidade a decisão, pela grávida, de
interrupção voluntária da gravidez.
Isso porque dessas condições vai depender, em último termo, que possa ser
atribuído à disciplina legal da forma de realização daquele acto alcance
tutelador da vida pré-natal, em medida satisfatória do mínimo de protecção.
Falta apreciar, pois, se aos trâmites legalmente fixados pode ser imputado esse
efeito.
De entre esses trâmites, avulta como de significado primordial, deste ponto de
vista, uma consulta prévia, de carácter obrigatório, a partir da qual se conta
um período de reflexão de um mínimo de 3 dias, necessário para a prestação
eficaz do consentimento.
Nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, a consulta
destina-se “a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a
formação da sua decisão livre, consciente e responsável”.
Nesta redacção legal baseia-se a qualificação da consulta, pelos requerentes,
como puramente informativa. Ora, alega-se, só uma consulta de aconselhamento
dissuasora permitiria concluir que, apesar de tudo, o legislador não voltou as
costas ao dever de protecção. Um regime que não a consagre posiciona-se aquém do
que é constitucionalmente devido, pelo que estaria ferido de
inconstitucionalidade.
Uma tomada de posição sobre este último patamar da questão beneficiará com um
breve excurso pelo direito comparado, com particular incidência sobre este ponto
específico.
Por aí começaremos.
11.4.13. Pode dizer-se que o “modelo de prazos” é hoje largamente dominante na
Europa, pois, na grande maioria dos países europeus, o regime legal prevê a
impunibilidade de realização médica da interrupção voluntária da gravidez, por
opção da mulher, dentro de certo período, sem dependência da verificação de
determinadas circunstâncias, taxativamente previstas e heteronomamente
controláveis.
Para além disso, em certos ordenamentos que exigem a invocação de razões
justificativas, na prática aplicativa, uma interpretação muito liberal dessa
exigência faz com que o regime não se diferencie significativamente daquele
outro. É o caso, notoriamente, do Reino Unido e da Espanha, países onde, aliás,
estão em curso projectos de reforma. Na Bélgica (lei relativa à interrupção
voluntária da gravidez, de 3 de Abril de 1990) e na Suiça (regime entrado em
vigor em 1 de Outubro de 2002, após consulta referendária), exige-se apenas a
invocação, pela mulher, de um “estado de angústia” (state of distress). Mas,
como essa situação não é objecto de qualquer parecer médico de verificação (só
exigível, na Suiça, após o prazo de 12 semanas), a solução corresponde
substancialmente ao modelo de prazos.
No interior deste modelo, são diversos, porém, os níveis de aceitação da
impunibilidade.
Tal patenteia-se, desde logo, na maior ou menor extensão do período temporal da
gestação a que se aplica este regime.
O período mínimo é de 10 semanas. Vigora apenas em Portugal, na
Bósnia/Herzegovina, Macedónia e Turquia. Na Estónia, é de 11 semanas, 13 na
Holanda, 14 na Roménia, atingindo o máximo na Suécia, onde é de 18 semanas (Lei
n.º 595, de 14 de Junho de 1974, alterada pela Lei n.º 660, de 1995, e pela Lei
n.º 998, de 2007). Em todos os outros países que aderiram a este modelo, o prazo
é de 12 semanas ou de 3 meses [todos estes dados, actualizados a Janeiro de
2009, foram recolhidos em Abortion Legislation in Europe, publicado pela
“International Planned Parenthood Federation. European Network”, www.
ippfen.org].
Mas a diferenciação de regimes passa também pela natureza e número das
condições concretas de impunibilidade, nomeadamente pela previsão ou não de uma
consulta prévia obrigatória, e, em caso afirmativo, pelo conteúdo e finalidade
dessa consulta.
Não estabelecem aquela exigência, por exemplo, os sistemas em vigor na Grécia
(Lei n.º 1069, de 3 de Julho de 1986), Dinamarca (Lei n.º 350, de 13 de Junho de
1973, com alterações em 1995 e em 2008), Suécia e também, após as modificações
introduzidas em 2001, em França.
Neste último país, alterando a chamada Loi Veil, que procedeu à
descriminalização da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em
situações de angústia, o novo regime, contido agora no Code de la Santé Publique
(Ordonnance n.º 2000?548, de 15 de Junho de 2000), procedeu ao alargamento do
prazo em que a mulher pode solicitar a interrupção voluntária da gravidez de dez
para doze semanas.
E se, antes de 2001, uma tal intervenção só poderia ser efectuada após um
período de reflexão subsequente a uma consulta de aconselhamento – no âmbito da
qual, designadamente, a mulher fosse informada dos direitos e ajudas sociais de
que poderia beneficiar se viesse a ter o filho – depois da Lei n.º 2001-588, de
4 de Julho de 2001, que interveio em matéria de aconselhamento, este tornou-se,
facultativo, em regra, só sendo obrigatório para as menores.
O Conselho Constitucional pronunciou?se sobre tal lei, tendo considerado que ela
“não quebrou o equilíbrio que o respeito da Constituição impõe entre, por um
lado, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana contra toda a forma de
degradação e, por outro lado, a liberdade da mulher que decorre do artigo 2.º da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” (Décision nº 2001?446 DC, de 27
de Junho, consultável em
www.conseilconstitutionnel.fr/decision/2001/20011446/20011446dc.htm).
Também na Áustria, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a
solução do prazo, entrada em vigor em 1975, tendo concluído pela sua não
inconstitucionalidade, por entender que não se verificava violação do artigo 2.º
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (integrada no bloco de
constitucionalidade), pois que este apenas protegeria a vida já nascida,
encontrando-se a vida intra-uterina excluída do respectivo âmbito de protecção.
Considerou, por outro lado, que as leis básicas em matéria de direitos
fundamentais apenas asseguram protecção contra o Estado e não contra outros
cidadãos.
A estes regimes, é possível contrapor aqueles outros que, acolhendo embora o
princípio da exclusão da punibilidade da interrupção voluntária da gravidez
medicamente realizada até um determinado momento da gestação, lhe associaram um
sistema de aconselhamento obrigatório.
Mas, dentro deste bloco modelar, não há inteira homogeneidade de soluções quanto
à disciplina de tal aconselhamento.
Na grande maioria dos casos a considerar, o comprometimento na formação de
decisões espontâneas de prossecução da gravidez não é explicitamente assumido, a
nível das formulações dos enunciados prescritivos da consulta e do seu conteúdo.
Eles caracterizam-se genericamente por obrigar a grávida, antes da realização da
interrupção da gravidez, a dirigir-se a uma instituição onde, em regra, lhe são
comunicadas, entre outras, informações relativas ao apoio social de que poderá
dispor, antes e depois do nascimento, e informação de diversa índole, desde os
riscos médicos do aborto aos locais onde pode ser realizado.
A consulta obrigatória está prevista, por exemplo, na Bélgica. A mulher é
sujeita a aconselhamento prévio, devendo ser informada dos riscos médicos da
intervenção e, bem assim, dos direitos e apoios de natureza social e psicológica
que pode obter no caso de levar a gravidez até ao seu termo. Por outro lado, a
intervenção só pode ser efectuada, no mínimo, seis dias após a primeira
consulta.
Na Holanda, a lei da interrupção voluntária da gravidez de 1 de Maio de 1981,
que entrou em vigor em Novembro de 1984, após um decreto de 17 de Maio de 1984
que a regulamentou, alterou o modelo vigente.
Nos seus termos, o aborto provocado não é penalizado quando, para além da
observância dos requisitos respeitantes ao local e momento da interrupção da
gravidez, se verifica uma situação de necessidade, auto-avaliável pela grávida.
Estabeleceu-se um processo de aconselhamento obrigatório, visando analisar
alternativas à interrupção voluntária da gravidez, impondo-se ao médico que “se
certifique, se a mulher achar que a situação de emergência não poderá ser
resolvida de outro modo, que ela manifestou e manteve o seu pedido de livre
vontade, após cuidadosa reflexão e na consciência da sua responsabilidade pela
vida pré-natal e por si própria e pelos seus”.
Aos modelos de aconselhamento acabados de descrever contrapõe-se singularmente o
instituído no ordenamento jurídico alemão, em consequência da decisão do
Tribunal Constitucional de 28 de Maio de 1993.
Tal decisão apreciou a lei aprovada em consequência da reunificação e dirigida a
introduzir o «sistema de prazos», despenalizando o aborto praticado por médico
durante as primeiras doze semanas da gravidez, desde que a mulher se tenha
previamente submetido a uma consulta de aconselhamento em que lhe são dadas as
explicações médicas e práticas necessárias para a orientar correctamente na sua
escolha.
Chamado a apreciar esta alteração legislativa, o Tribunal Constitucional alemão
partiu da consideração de que a Constituição obriga expressamente o Estado à
tutela e ao respeito da dignidade que é própria da vida humana e que desta
participa, não apenas a vida humana já nascida ou com personalidade já formada,
mas também a vida pré-natal. Partiu também do reconhecimento de um direito à
vida individual do nascituro, direito esse não dependente da sua aceitação por
parte da mãe. Daí a proibição, de princípio, do aborto e o dever, de princípio,
de levar a gravidez ao termo.
O cumprimento desta obrigação jurídica deve ser assegurado por meios de tutela,
mas a definição detalhada da modalidade e da extensão da protecção que
constitucionalmente se impõe constitui competência do legislador: a Constituição
prevê a tutela como finalidade, mas não a sua concretização ou finalização
detalhadas.
Ainda que o direito penal surja geralmente como o sector onde ancorar
legislativamente a tutela da vida humana, não será constitucionalmente
censurável que a valoração cometida ao legislador ordinário se efectue na base
de uma análise segundo a qual, no caso de uma situação de mal-estar devida a uma
gravidez, o desenvolvimento da ameaça de sanção penal actuaria mais no sentido
contrário a uma decisão da mulher favorável à prossecução da gravidez, já que a
gestante vive este conflito de um modo muito pessoal e tende a defender-se do
juízo e da valoração desse estado por parte de terceiros.
Assim, ao legislador não se encontrará constitucionalmente vedada, em linha de
princípio, a possibilidade de, na realização do seu dever de defender a vida, se
virar para um conceito de tutela que parta da consideração de que, na primeira
fase da gravidez, uma protecção mais eficaz da vida pré-natal resulte da criação
de premissas positivas para uma acção da grávida em favor do nascituro, evitando
que esta se oriente unilateralmente e decida segundo os seus interesses
pessoais.
Nesta perspectiva, não se exclui que a tutela, na primeira fase da gravidez, se
baseie principalmente na obrigatoriedade de uma prévia consulta da gestante,
destinada a convencê-la a levar a gravidez até ao fim. Para o efeito de
assegurar a necessária abertura e consequente eficácia da consulta, justifica-se
também que se renuncie ao sancionamento penal, bem como ao controlo por
terceiros que é próprio do regime das indicações justificativas.
No plano da conformação normativa do procedimento de consulta, o legislador pode
partir do princípio de que esta apenas terá possibilidade de funcionar como meio
de tutela da vida pré-natal se for conduzida de modo aberto quanto ao resultado,
pertencendo à grávida a decisão livre e final, ainda que necessariamente
vinculada à prévia concessão ao Estado da faculdade de desincentivo à
interrupção.
Uma consulta de natureza meramente informativa, neutral quanto à finalidade e
simplesmente destinada a facultar à grávida todos os elementos necessários à sua
livre decisão, não lhe permitiria funcionar como meio de tutela, o que
condenaria a viabilidade constitucional do modelo preventivo, substitutivo da
proibição e ameaça penais, por violação do princípio da proibição do défice de
tutela.
Procurando dar execução à orientação estabelecida na decisão do Tribunal
Constitucional, uma lei de 21 de Agosto de 1995 procedeu a uma modificação do
Código Penal, sendo que, na Alemanha, actualmente, a interrupção voluntária da
gravidez praticada por um médico, com o acordo da mulher grávida, não será
punível desde que efectuada nas primeiras doze semanas e a mulher se tenha
submetido a aconselhamento. Quanto a este, dispõe o § 219, n.º 1, do Código
Penal alemão, no segmento que mais importa:
«O aconselhamento serve a protecção da vida que está por nascer. Deve
orientar-se pelo esforço de encorajar a mulher a prosseguir a gravidez e de lhe
abrir perspectivas para uma vida com a criança; deve ajudá-la a tomar uma
decisão responsável e em consciência».
11.4.14. Por este curto panorama comparatístico, se pode ver que o “modelo de
prazos” oferece múltiplas cambiantes tipológicas, separadas, amiúde, por finas
diferenças de conformação, no que diz respeito, sobretudo, ao regime do
aconselhamento.
Quanto a este, é incontroverso, atento o disposto na alínea b) do n.º 4 do mesmo
preceito e no artigo 2.º da Lei n.º 16/2007, que a consulta prévia foi, entre
nós, incluída nos trâmites a observar obrigatoriamente, como condição da não
punibilidade da interrupção efectuada ao abrigo da previsão da referida alínea
e). Ao contrário de outros ordenamentos europeus, o direito português não
dispensou uma estrutura comunicacional de proximidade com a grávida e os seus
problemas, solução manifestamente mais favorecedora da possibilidade de a
interrupção não vir a ocorrer do que a hipótese inversa.
Tendo isso em conta, e também a fixação do prazo no escalão mínimo, pode, desde
já, dizer-se que a disciplina jurídica recém-instituída não se mostrou
insensível ao interesse na prossecução da gravidez. Mesmo o modo como reservou
um certo espaço para uma decisão ad nutum da mulher tomou em conta esse
interesse. Resta saber se o fez em medida suficiente para cumprir o imperativo
de protecção, para o que temos que nos debruçar, mais de perto, sobre a
modelação, em concreto, do regime da consulta obrigatória.
Da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal resulta que o
consentimento da gestante à realização da interrupção médica da gravidez “é
prestado […] em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual
deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e
sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da
realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à
informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e
responsável”.
Sob a epígrafe “Consulta, informação e acompanhamento”, o artigo 2.º da Lei n.º
16/2007 especifica, por seu turno, a natureza do conhecimento que, através
daquela informação, deve ser proporcionado à grávida no âmbito da primeira
consulta, preceituando que o mesmo deve contemplar: a) as condições de
efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e
suas consequências para a saúde da mulher; b) as condições de apoio que o Estado
pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade; c) a disponibilidade de
acompanhamento psicológico durante o período de reflexão; d) a disponibilidade
de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o período de reflexão.
Por estas notas essenciais, pode concluir-se que o sistema português se
distancia do alemão, na medida em que não contém qualquer injunção expressa
dirigida aos profissionais intervenientes na consulta, no sentido de esta dever
ser orientada pelo objectivo de dissuasão da intenção abortiva.
Ora, resulta de determinado segmento das alegações do pedido que uma solução
análoga à do direito alemão é considerada – com expressa citação da decisão do
Tribunal Constitucional desse país acima referida – como imprescindível para
realizar “o equilíbrio possível” entre o valor da liberdade da mãe e o da vida
“em devir”. Justifica-se, assim, que, aqui chegados, concentremos neste ponto a
questão de constitucionalidade que nos ocupa, reduzindo-a à questão de saber se
aquele traço distintivo entre os dois sistemas representa também, face à nossa
Constituição, a inultrapassável linha de fronteira de uma disciplina
constitucionalmente conforme. O que, noutros termos, cumpre avaliar é se tem que
transparecer explicitamente da semântica do texto normativo a finalidade
dissuasora da consulta, como garantia ineliminável da sua efectiva actuação
nesse sentido e, desse modo, como exigência do cumprimento pelo Estado do mínimo
de tutela que lhe incumbe.
11.4.15. O nosso legislador revelou transparentemente a finalidade da consulta,
ao dispor que ela se destina a “facultar à grávida o acesso à informação
relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável”
(alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, na nova redacção).
Mas daí não pode inferir-se, sem mais, que a consulta é puramente informativa,
no sentido de ficar excluída, ao menos como efeito reflexo, indirecto, ou
consequencial, qualquer outra dimensão operativa. Há que atentar, na verdade,
que a informação não constitui um fim em si, mas antes um meio para uma tomada
de decisão, não só livre, como consciente e responsável.
Se é assim, o que importa é avalizar ou não este desígnio como compaginável
ainda com o cumprimento do dever de protecção e, num segundo momento, mas
inextrincável do primeiro, ajuizar da suficiência dos mecanismos predispostos,
e, em particular, do momento, conteúdo e modo da informação a prestar, para
alcançar objectivos que ultrapassem a mera tomada de conhecimento de certos
dados.
Com isto, queremos acentuar que uma valoração ajustada ao alcance real do regime
concretamente estabelecido não pode ser obtida mediante um simples jogo de
contraposição de agrupamentos categoriais, definidos em abstracto e concebidos
em relação de mútua exclusão, sem admissão de manifestações gradativamente
intermédias. Não é num processo subsuntivo de integração no grupo dos chamados
“sistemas de mera informação” ou no grupo dos “sistemas dissuasores”, por razões
de índole predominantemente nominalista, que poderemos fundar uma segura
resposta negativa ou positiva de constitucionalidade, dependente que ela está de
um critério eminentemente graduável, como é a eficiência dos instrumentos de
protecção.
Para isso, é indispensável atender à estruturação objectiva da interacção
comunicativa a estabelecer com a grávida e à resultante intelecção, por esta, do
seu significado. Ora, pode afirmar-se que o complexo de elementos informativos a
disponibilizar à grávida, numa consulta de carácter obrigatório,
organizativamente integrada num complexo de trâmites prévios e sucessivos, tem
como efeito objectivo a sua consciencialização do valor da vida que transporta
em si (ou, pelo menos, resulta ser visto pela própria como uma tentativa nesse
sentido).
Esse conjunto de passos a dar, num percurso integrado por um aconselhamento e
culminado por um período suspensivo da prática do acto interruptivo da gravidez,
destila iniludivelmente um sentido enfatizador da gravidade da decisão a tomar e
suficientemente sinalizador da valoração, pelo ordenamento jurídico, do bem da
vida. E o encorajamento para uma tomada de decisão que o preserve é
implicitamente dado quando se proporciona à grávida o conhecimento de uma série
de apoios de que pode beneficiar. Daí que, o não ser a consulta declarada e
ostensivamente orientativa não impõe, ipso facto, a sua qualificação como
meramente informativa, como despida de qualquer intenção de favorecimento da
decisão de prosseguir a gravidez.
Merece destaque, nesta perspectiva de cumprimento do dever de tutela, o disposto
na alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007, segundo o qual a grávida deve ser
informada das “condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da
gravidez e à maternidade”. Com esta informação, sobretudo em relação às mulheres
de mais baixos índices económico e cultural, pode rasgar-se a visibilidade de um
horizonte de viabilidade prática de uma opção pela maternidade, mormente nos
casos, presumivelmente frequentes, em que ela não é pessoalmente rejeitada, mas
apenas tida como de concretização impossível, por falta de condições materiais.
Se, na lógica fundante desta solução legal, a tutela da vida deve operar pelo
incremento das possibilidades de a grávida adoptar espontaneamente uma conduta
que preserve aquele bem, então nada mais adequado do que torná-la ciente, no
decurso do processo decisório, dos apoios de que pode beneficiar, se fizer essa
opção. Esses apoios serão outras tantas razões a balancear do lado oposto ao da
interrupção da gravidez, contrariando o peso das motivações que levaram a mulher
a iniciar os procedimentos que a ela conduzem. Informá-la do “apoio que o Estado
pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade” mais não é, ao fim e ao
cabo, do que “abrir-lhe perspectivas de uma vida futura com a criança”, na
fórmula do direito alemão, tida, pelos requerentes, como expressiva da única
solução que traduz “a mínima tentativa de, através da liberdade da mulher (e não
contra ela) procurar salvaguardar a vida”.
Também não pode ser esquecido o disposto no n.º 4 do artigo 2.º, nos termos do
qual “os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos onde se
pratique a interrupção voluntária da gravidez garantem obrigatoriamente às
mulheres grávidas que solicitem aquela interrupção o encaminhamento para uma
consulta de planeamento familiar”. E a necessidade de intervenção neste domínio
fica bem à vista, se considerarmos que, em certas faixas populacionais, a
interrupção voluntária da gravidez continua a ser usada como método
contraceptivo (segundo dados da Direcção-Geral de Saúde, das 17.511 interrupções
voluntárias da gravidez registadas em 2008, em 2.659 casos as mulheres
declararam já tê-lo feito por mais de quatro vezes).
11.4.16. Levando até ao fim o pensamento inspirador da solução da
impunibilidade, assente na crença de que só a adesão espontânea da grávida à
continuidade da gestação garante minimamente, nesta fase, a tutela da vida
intra-uterina, o legislador absteve-se, mesmo a nível comunicacional, de
qualquer indicação que pudesse ser por ela sentida como um juízo externo
pressionante da sua conduta. Considerou incitação suficiente a informação, em
termos objectivos (mas não neutrais, quanto ao resultado), da disponibilidade de
apoios vários, permitindo que a grávida forme por si, na posse desses dados e a
partir deles, e após um período de reflexão que necessariamente os tem em conta,
a sua livre decisão.
Não tinha que ser essa a solução legal. Não se contesta que o legislador, na sua
liberdade de conformação, poderia ter utilizado fórmulas verbais de eloquência
expressiva quanto à sua adesão à defesa da vida, logo no plano das enunciações
normativas. Assim como também poderia ter imposto aos operadores do processo
legal de interrupção voluntária da gravidez uma explícita orientação
finalística, em moldes idênticos aos do direito alemão, ou, mesmo,
predeterminado certos conteúdos interlocutórios de apelo directo à não
realização desse acto.
Mas a primeira via, podendo louvar-se da produção de sentido simbolicamnte
relevante, não goza, só por si, de eficiência garantística, no plano operativo
da conformação da vida social.
Quanto à segunda, ela está sujeita a limites evidentes, resultantes da opção de
base por uma forma de tutela assente, na fase inicial, na colaboração da
grávida. As razões inspiradoras dessa opção vedam interferências demasiado
intrusivas no processo decisório desta, muito em particular certas formas
agressivas de exploração da emotividade acrescida e da situação de
vulnerabilidade psicológica da mulher grávida. Como o próprio pedido
expressamente reconhece, «(…) o aconselhamento não poderá, em caso algum,
significar a imposição de uma pressão psicológica sobre a mulher, mas apenas
esclarecê-la da gravidade da sua decisão e das alternativas possíveis».
É objectivamente fundado que um legislador levado a confiar, também por razões
de eficiência, na responsabilidade da grávida, chamando-a a cooperar no
cumprimento do dever de protecção que ao Estado compete, não queira depois criar
um contexto de decisão muito provavelmente desfavorável a esse desiderato.
Assim como – agora no plano da preservação da dignidade da mulher grávida – a
crença no seu sentido de responsabilidade e na sua predisposição a
sensibilizar-se pelas razões contrárias à interrupção conjugar-se-iam mal com um
tratamento que a menorizasse enquanto sujeito da decisão, com uma posição de
orientação de cunho paternalista e tutelar. As exigências decorrentes da tutela
da dignidade da mulher afirmam-se também no modo como se deve processar a
consulta que lhe é imposta.
11.4.17. É de reconhecer que ao legislador se deparou um estreitíssimo canal de
navegação, entre as razões e os princípios que nortearam a decisão de excluir,
em certos termos, a punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, na sua
fase inicial, e a margem oposta desenhada pela proibição do défice de tutela. E
há que reconhecer, de igual forma, que ele não poderia ter ido muito mais além,
na promoção de decisões de prossecução da gravidez, sem exposição séria ao risco
de resultados perversos, comprometedores dos objectivos que justificam aquela
opção. Não se afigura desrazoável, em tal contexto de política legislativa, a
auto-contenção de que ele deu mostras.
Auto-contenção que, de modo algum, pode ser confundida com uma posição de
neutralidade ou de indiferença perante a decisão que a grávida venha a tomar.
Toda a preocupação revelada na Lei n.º 16/2007, de estruturação de serviços e de
imposição de procedimentos na sua utilização, não tem um significado puramente
técnico-organizativo, só se compreendendo como expressão de empenho na tutela,
para além da saúde da mulher, da vida pré-natal. E não é a omissão de uma
expressa vinculação formal dos serviços à consecução dessa finalidade que pode
servir de razão bastante para negar a presença dessa intencionalidade de tutela,
quando só ela dá objectivamente sentido ao conteúdo de muitas das normas de
organização e de procedimento constantes daquele diploma. A eficiência
protectora, nos limites em que, nesta fase, ela é expectável, é mais resultado
da acção consciencializadora e objectivamente incentivadora de certos trâmites,
da dependência procedimental em que, em relação a eles, é colocada a realização
da intervenção, do que de processos comunicacionais ostensivamente orientadores
que, sem a participação dialógica da grávida (nunca garantida e, porventura,
prejudicada por uma opção desse tipo), facilmente se transmutam em formalidades
ritualisticamente processadas.
Não se pode, pois, ver na falta de indicação expressa de uma finalidade
dissuasora da interrupção da gravidez o preciso défice de regulação que faz com
que o regime questionado não atinja o grau de comprometimento com o valor da
vida exigível para a satisfação do mínimo de tutela. Tal exigência – só
constante, aliás, no quadro europeu, da legislação germânica, com base num
entendimento, divergente daquele que é perfilhado por este Tribunal, de que o
bem da vida intra-uterina tem um referente pessoal, e porventura explicável por
circunstâncias específicas desse ordenamento, ligadas ao processo de
reunificação – tal exigência, dizíamos, não representa um penhor seguro de uma
maior intensidade de tutela, capaz de traçar, com nitidez, uma linha divisória
entre o campo das soluções constitucionalmente conformes e o das que não o são.
Está por demonstrar que ela trouxesse um acréscimo de eficiência, não sendo até
de excluir o resultado contrário, por uma retracção defensiva da grávida.
E só perante um índice manifesto, incontroversamente significante da
necessidade, para cumprimento do imperativo de protecção, de uma enunciação
expressa da finalidade dissuasora haveria fundamento para um juízo de
inconstitucionalidade.
Pois, na verdade, cumpre reconhecer que o julgador não dispõe de um instrumento
de mensuração exacta do grau de protecção exigível para o cumprimento, pelo
Estado, do correspondente dever. Nem se lhe pode exigir a identificação de um
preciso e fixo ponto arquimédico, abaixo do qual o veredicto do incumprimento
tenha que cair, inexorável. Quando é a observância do imperativo de tutela que
está em questão, mais ainda do que em qualquer outra dimensão da
constitucionalidade, e em correlação com uma maior liberdade de conformação
legislativa (dada a estrutura dos deveres activos de intervenção), a instância
de controlo tem que lidar com critérios de evidência, só se justificando uma
pronúncia de inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de avaliação do
legislador.
Esse erro, no entender do Tribunal, não foi cometido, quanto às soluções
contestadas, não podendo afirmar-se que as opções legislativas ficaram aquém do
que seria exigível para justificar a exclusão da punibilidade.
11.4.18. A emissão de um tal juízo apoia-se também na consciência de que o
cumprimento dos deveres de protecção está sujeito a limites fácticos e jurídicos
(cfr. ROBERT ALEXY, ob. cit., 422), sendo ilusório acreditar num ilimitado poder
do legislador de intervenção modificativa da realidade. Daí que ao juízo de não
inconstitucionalidade se não oponha uma posição de cepticismo quanto à eficácia
tuteladora, em termos absolutos, da solução encontrada.
Não dispomos de dados seguros, a nível nacional, quanto os resultados
aplicativos da Lei n.º 16/2007, especificamente quanto à taxa de desistência, no
período de reflexão – o índice de maior relevo, a este respeito – uma vez que os
registos obrigatórios não contemplam esse elemento. Na maternidade Alfredo da
Costa, verificou-se, aparentemente, uma curva descendente, pois, enquanto que o
Diário de Notícias de 1 de Novembro de 2007 relatava que, das 261 mulheres a
participar, desde a entrada em vigor da lei (15 de Julho do mesmo ano), na
consulta prévia de interrupção de gravidez, 22 mudaram de ideias durante o
período de reflexão – uma percentagem muito superior à verificada noutras
unidades de saúde –, na Tribuna Médica Press, de 11 de Fevereiro de 2008, o
director daquela maternidade assinalava 4% de desistências – número próximo da
estimativa, para fins de planeamento, da Direcção-Geral de Saúde, que apontava
para 5% (Relatório dos registos das interrupções da gravidez ao abrigo da Lei
n.º 16/2007 de 17 de Abril. Dados referentes ao período de Julho de 2007 a Julho
de 2008, Lisboa, Setembro de 2008, 6).
Provando, em todo o caso, que não é nula a eficiência tuteladora do regime
legal, estes valores podem ser qualificados como baixos, o que parece justificar
a mencionada posição de cepticismo. Mas o juízo de eficiência não pode deixar de
ser um juízo relativo, de gradação comparativa das soluções alternativas de
disciplina legal. Ora, não se afigura que um aconselhamento segundo o modelo
alemão se possa louvar de melhores resultados, a dar crédito a um inquérito
realizado pelo Max-Planck Institut, que apresentou uma projecção de 5% de
desistências (cfr. JOÃO LOUREIRO, “Aborto: algumas questões
jurídico-constitucionais A propósito de uma reforma legislativa”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXXIV (1998), 327 s., 372).
E, se bem virmos, estes números não surpreendem, pois a procura dos serviços
médicos, com vista à interrupção da gravidez, traduz, em regra, um grau de
determinação volitiva da gestante dificilmente contrariável pela ordem jurídica.
“A esmagadora maioria das mulheres que se decide a abortar está disposta a
fazê-lo mesmo que tal não seja admitido pelo sistema jurídico”, reconhece até um
Autor que se pronuncia pela inconstitucionalidade de qualquer solução de prazos
(JOÃO LOUREIRO, ob. loc. cit.).
Se tivermos também presente a ineficiência da punição penal, a conclusão a tirar
é a de que será sempre reduzida a eficácia preventiva de qualquer das formas de
reacção jurídica à interrupção voluntária da gravidez, no quadro da específica
disciplina legal desse acto. Mais do que com os limites do direito penal, somos
aqui confrontados com os limites do Direito (nesse sentido, GEORG HERMES/SUSANNE
WALTHER, “Schwangerschaftsabbruch zwischen Recht und Unrecht. Das zweite
Abtreibungsurteil des BVerfG und seine Folgen”, NJW 1993, 2337 s., 2341). O
mínimo de protecção exigível será sempre, nessa medida, o mínimo possível,
dentro desses limites.
Quanto aos limites jurídicos, eles resultam da necessária conciliação do
princípio de proibição do défice de tutela com outros princípios eventualmente
colidentes, pois o imperativo de protecção não goza de primado absoluto dentro
da ordem constitucional. Pelo contrário, tem sido sustentada “a eficácia mais
ténue da função de imperativo de tutela, (…) substancialmente mais fraca do que
a da função dos direitos fundamentais como proibições de intervenção” (CANARIS,
ob. cit., 65). É seguro, pelo menos, que a observância desse imperativo não
legitima a invasão incondicionada da esfera protegida dos direitos fundamentais
de outros sujeitos (GEORG HERMES/SUSANNE WALTER, ob. loc. cit.).
Voltando a acentuar uma ideia-chave, nesta matéria, há que lembrar que o espaço
de livre conformação do legislador não está apenas limitado pela proibição de
insuficiência, mas também pelo princípio da proporcionalidade, nas suas várias
componentes. Sendo assim, as sérias dificuldades (se não, mesmo,
impossibilidade) de satisfação cabal do primeiro princípio, quando o seu âmbito
de aplicação é (indevidamente) restringido ao processo de decisão do acto de
abortar, não deve reverter na lesão do segundo, sob pena de nenhum dos dois ser
adequadamente observado…
Mas o reconhecimento dos limites fácticos e jurídicos da tutela através da
disciplina legal do acto abortivo e dos trâmites que o antecedem deve ser
acompanhado da consciência de que o cumprimento do dever de protecção da vida
pré-natal não se realiza apenas nessa sede. Ao Estado cabe combater, na sua
génese, as “situações de risco” para esse bem, causadas por factores de educação
e por condições de vida e de trabalho, através de medidas educativas e de
política social favorecedoras de uma concepção responsável e da disponibilidade
para a prossecução da gravidez. Quando se trata de valorar globalmente a
efectivação, pelo Estado, do mínimo de protecção da vida intra-uterina a que
está obrigado, essas medidas devem ser contabilizadas, pois também elas (melhor,
sobretudo elas) contribuem para uma redução do número de abortos – o objectivo
da imposição daquele dever. E a realista avaliação de que não é de esperar um
resultado expressivo, nesse sentido, do regime legal da interrupção voluntária
da gravidez só deve conduzir a uma apreciação redobradamente positiva, também
nesta perspectiva, de instrumentos preventivos, actuantes no domínio da educação
sexual e planeamento familiar e de apoio à maternidade e à família, mais
distantes, mas mais eficazes.
E medidas desta natureza, recomendadas pelas instâncias europeias, como
instrumentos de diminuição do recurso ao aborto – cfr., em particular, a
“Resolução do Parlamento Europeu sobre Direitos em Matéria de Saúde Sexual e
Reprodutiva”, de 2003, já referenciada no Acórdão n.º 617/2006 – têm sido
introduzidas, no nosso ordenamento jurídico, por numerosos diplomas.
Para além dos já mencionados nesse aresto, têm uma actuação particularmente
significativa, neste campo, o Decreto-Lei n.º 105/2008, de 25 de Junho, que
institui medidas sociais de reforço da protecção social na maternidade,
paternidade e adopção integradas no subsistema de solidariedade; o Decreto-Lei
n.º 245/2008, de 18 de Dezembro (procede à alteração do Decreto-Lei n.º
176/2003, de 2 de Agosto, o qual passou a prever o abono de família pré-natal
como forma de protecção nos encargos familiares); o Código do Trabalho, revisto
pela Lei n.º 7/2007, de 12 de Fevereiro, o qual contém toda uma subsecção
(Subsecção IV da Secção II do Capítulo II – artigos 33.º a 65.º) dedicada à
“parentalidade”, com disposições tuteladoras dessa situação familiar; o
Decreto-Lei n.º 91/2009, de 29 de Abril, que estabelece o regime jurídico de
protecção social na parentalidade, no âmbito do sistema previdencial e no
subsistema de solidariedade (revoga o Decreto-Lei n.º 105/2008, de 25 de Junho);
a Lei n.º 60/2009, de 6 de Agosto, que estabelece o regime de aplicação de
educação sexual em meio escolar e o Decreto-Lei n.º 201/2009, de 28 de Agosto,
que procede à alteração do Decreto-Lei n.º 176/2003, de 2 de Agosto, o qual
passou a prever a bolsa de estudo como forma de protecção nos encargos
familiares.
É de concluir que vigora, no nosso sistema, um conjunto diversificado de
medidas, em número e com um alcance bastante para que, tendo-as também em conta,
se possa sustentar que o Estado português não cruza os braços perante o fenómeno
do aborto, antes está activamente empenhado em combatê-lo.
De resto, na nossa história legislativa, a regulação da prática da interrupção
voluntária da gravidez, foi associada, desde o início, aquando da implantação do
“modelo das indicações”, a intervenções com vista à “protecção activa da
maternidade”. De facto, em 1984, a Assembleia da República não aprovou apenas
uma lei sobre interrupção voluntária da gravidez: definiu um complexo de
instrumentos legais tendentes a assegurar apoio à maternidade. Visou-se,
intencionalmente, a criação de um edifício legislativo composto por várias
peças, actuantes articuladamente no mesmo sentido, de forma a potenciar a
eficácia interventiva do conjunto – cfr. o Relatório de José de Magalhães, cit.,
3-4.
Poderá, porventura, alegar-se que, entre nós, as prestações públicas de educação
sexual e de apoio à maternidade estão ainda longe de atingir o grau de
eficiência já alcançado pelos países mais avançados, neste domínio. Mas não pode
esquecer-se que o que está em causa é um mínimo de protecção, não a protecção
ideal.
11.4.19. Por todo o exposto, pode concluir-se que as normas dos artigos 1.º – na
parte em introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do
Código Penal –, 2.º, n.º 2, e 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril,
não estão feridas de inconstitucionalidade, por violação do artigo 24.º, n.º 1,
da Constituição.
11.5. O período mínimo de reflexão (alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código
Penal)
Ainda dentro do quadrante valorativo respeitante ao alegado incumprimento do
dever de protecção da vida humana, os requerentes pretendem a declaração de
inconstitucionalidade da opção normativa que, no âmbito do regime jurídico
instituído pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, limita a três dias o prazo
mínimo de reflexão que medeia entre a realização da primeira consulta médica e a
prestação do consentimento para a realização da interrupção da gravidez,
considerando-a conflituante com o artigo 24.º da CRP.
A solução contestada pelos requerentes encontra-se expressa na alínea b) do n.º
4 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1.º da Lei n.º
16/2007.
Dispõe-se aí o seguinte:
«4 - O consentimento é prestado:
a) […]
b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher
grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até
ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a
três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a
facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua
decisão livre, consciente e responsável.»
Para além de questionarem a solução de base constante da alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal e o regime da consulta obrigatória para dar
satisfação ao mandamento constitucional de protecção da vida intra-uterina, os
requerentes impugnaram também especificamente o segmento normativo do preceito
acima transcrito que fixa em três dias o período mínimo de reflexão entre a
consulta e a prestação do consentimento.
Em seu entender, esse prazo é excessivamente curto, estando em causa uma decisão
que se quer livre, consciente e responsável, e de que pode resultar a lesão
irreversível da vida humana. Mesmo a admitir-se que a restante modelação da
disciplina legal satisfaz o imperativo de protecção inferível do artigo 24.º da
Constituição – o que os requerentes não concedem – a brevidade daquele prazo é
de molde a comprometer o cumprimento desse dever de protecção.
Mas também não merece este juízo a extensão temporal do período de reflexão.
Consagram-se, em direito comparado, é certo, períodos mais alongados. Tendo em
conta, todavia, a premência do tempo, para a não ultrapassagem do limite das 10
semanas, e o facto de a procura dos serviços ser já o resultado de uma reflexão
anterior da grávida, o prazo de três dias é adequado, mostrando-se suficiente
para lhe proporcionar uma ponderação consciente daquilo que ouviu na consulta.
E é puramente especulativo pensar que um período de maior duração contribuiria
para o aumento da taxa de desistências. Com efeito, não é possível estabelecer
uma qualquer relação de inferência directa entre o sentido da decisão final da
gestante e a duração do prazo destinado à sua reflexão após a realização da
consulta a que se refere o artigo 2.º da Lei n.º 16/2007. Inexiste, assim,
fundamento racionalmente sustentável para concluir que uma duração do período de
reflexão superior àquela que se encontra prevista fosse susceptível de assegurar
em maior medida o favorecimento de comportamentos espontâneos compatíveis com a
prossecução da gravidez.
De resto, trata-se de um prazo mínimo (contrariamente aos prazos, de direito do
consumo, argumentativamente invocados no pedido), nada obstando (antes tudo
aconselhando) a que, em caso de persistência de dúvidas da gestante, no termo
desse período, a intervenção, no limite das 10 semanas, seja retardada, de modo
a não impossibilitar uma definitiva decisão em contrário.
A duração do período de reflexão legalmente prevista, em si mesma e no contexto
da normação em que se insere, não constitui, pois, um elemento susceptível de
fazer fracassar o sistema, no confronto com as injunções de sentido procedentes
do artigo 24.º da CRP, pelo que não está ferida de inconstitucionalidade.
11.6. Violação do direito à saúde física e psíquica da mulher
Vem também alegado que o regime da Lei n.º 16/2007, na medida em que não protege
a saúde física e mental da mulher, atenta contra o disposto nos artigos 64.º,
n.ºs 1 e 2, alínea b), e no artigo 66.º, n.º 1, da CRP.
A alegação consta do ponto Z) das conclusões, formulado nos seguintes termos:
«Sendo hoje reconhecido o aborto como um acto de risco para a saúde física e
mental da mulher, e dando por assente o aborto por carências económicas, o
regime fixado na Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, liberta o Estado da sua função
de solidariedade e protecção da saúde física e psíquica, violando, assim, o
disposto nos arts. 64.º, n.º 1 e 2, al. b), e 66.º, n.º 1, da C.R.P.»
O pedido não referencia a norma ou complexo de normas a que concretamente seja
de imputar o alegado vício, apontando apenas, em termos vagos, “o regime fixado
na Lei n.º 16/2007”. A motivação também não ajuda a concretizar. Nela pode
ler-se, quanto a este ponto:
«Sabe-se hoje que o aborto constitui, para a mulher, uma chaga e uma fonte de
doença gravíssima: o trauma pós-aborto.
Permitir que as mulheres corram este risco de doença para o resto da vida por um
aborto, às vezes feito por falta de condições económicas ou sociais ou,
meramente, por motivos fúteis ou ainda porque as mulheres são vítimas de
maus-tratos familiares, é deixar totalmente desprotegido o direito à saúde que
ao Estado cabe fazer cumprir e implementar.
Recorde-se, a título de exemplo, as políticas que hoje, por via deste dever
constitucional atribuído ao Estado, estão em vigor com vista a eliminar os
riscos de vida ou para a saúde das pessoas, de que são casos bem
exemplificativos a circulação automóvel, o tabagismo, etc…
Trata-se de políticas que restringem a liberdade individual, atento o bem maior
que é saúde ou a vida».
Não obstante a falta de indicação precisa da norma ou normas questionadas,
parece poder deduzir-se desta argumentação que em causa estão as normas do
diploma de que mais directamente resulta, na óptica do pedido, um favorecimento
das práticas abortivas. Ou seja, as mesmas normas já anteriormente apreciadas,
pelo prisma do artigo 24.º da Constituição, e muito em especial a alínea e) do
n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção ao artigo 1.º da Lei n.º
16/2007, a alínea b) do n.º 4 do referido artigo 142.º, e o n.º 2 do artigo 2.º
daquela Lei.
A ideia fundante será a de que, ao não reprimir a interrupção voluntária da
gravidez, por meios de direito penal, ou, pelo menos, ao não dissuadir a sua
prática, por meios substitutivos adequados, o Estado não está a cumprir o seu
dever de protecção da saúde física ou psíquica da grávida, posta em risco por
aquelas intervenções interruptivas.
Assim sinteticamente formulada, que dizer desta invocada questão de
constitucionalidade?
Quanto aos parâmetros constitucionais invocados, é de afastar liminarmente o
consagrado no artigo 66.º, n.º 1, cujo âmbito de protecção – o ambiente e a
qualidade de vida – nada tem a ver, como é manifesto, com o bem em causa. Ainda
que o preceito releve de uma “teleologia antropocêntrica” (GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, ob.cit., 845), encarando a defesa e promoção de um ambiente sadio como
um factor da qualidade de vida, nele nada se estatui que possa ter repercussão,
directa ou indirecta, na criação de condições de vivência social dissuasoras das
interrupções voluntárias da gravidez.
Sob o ponto de vista do direito à saúde, é evidente que, mesmo quando
realizada nas condições médico-sanitárias adequadas, a interrupção voluntária da
gravidez comporta algum risco (risco, em todo o caso, tanto menor quanto mais
precoce for a intervenção). Não se nega que possa haver sequelas nefastas, mesmo
de carácter não transitório, sobretudo para a saúde psíquica da mulher, dados os
sentimentos de perda e de culpa frequentemente associados à realização daquele
acto.
Mas o legislador mostrou-se perfeitamente consciente disso mesmo, ao impor que a
grávida seja informada, no decurso da consulta obrigatória, das consequências
para a sua saúde (tanto física como psíquica, evidentemente) da efectivação do
seu desígnio. E essa informação, mesmo num quadro decisório de
auto-responsabilidade, pode ter, nalguns casos, alguma eficácia
desincentivadora, por instigação dos mecanismos de autotutela.
E ainda que a grávida decida levar o seu propósito avante (o que, já se
admitiu, acontecerá na grande maioria dos casos, mas isso qualquer que seja o
sistema disciplinador), a preocupação de tutela da sua saúde está presente ao
impor-se que a interrupção seja efectuada por médico, ou sob sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, e ao impor-se a
estes estabelecimentos a adopção de medidas capazes de garantirem uma boa
prestação deste serviço, também em termos médicos (cfr. a Portaria n.º
741-A/2007, de 21 de Junho).
O erro da arguição é o de pressupor que o impedimento ou dificultação de
realizar a interrupção voluntária da gravidez em condições de impunibilidade se
traduz automaticamente no decréscimo do número desses actos e, logo, numa menor
possibilidade de concretização do risco a eles associado. Ora, já vimos que não
é assim. Certo é antes que esse regime teria o efeito, como teve no passado, de
potenciar o número de abortos praticados em condições completamente inadequadas
e, esses, de risco muito mais grave para a saúde da mulher – risco
frequentemente concretizado, como a prática hospitalar documenta. E os primeiros
dados disponíveis parecem confirmar o efeito salutar, a este nível, da Lei n.º
16/2007, pois, no seu primeiro ano de vigência, terão diminuído
significativamente as infecções e a perfuração de órgãos associadas ao aborto
clandestino.
Quanto às medidas instrumentais de uma plena realização do direito à protecção
da saúde, enunciadas na alínea b) do n.º 2 do artigo 64.º da CRP, é evidente que
políticas sociais dirigidas à criação de condições de vida e de trabalho dignas
e de apoio solidário aos que delas estão carentes fornecem uma envolvente
favorável à disponibilidade para aceitação responsável da maternidade, sendo
também elas um relevante factor, ainda que genérico e mais longínquo, de
contenção das práticas abortivas. Como já alguém disse, “a melhor protecção da
vida pré-natal é a da vida existente”.
Mas, o que nem o mais denodado esforço interpretativo consegue alcançar é o
porquê de os agravos sobre a condição da mulher ocasionados pela falta dessas
medidas, tão pictoricamente descritos no pedido, deverem ter por corolário…a
inflicção de um novo mal – a punição penal por uma interrupção voluntária da
gravidez explicável, em muitos casos, por aquelas circunstâncias.
É de concluir, pois, que a admissão da realização da interrupção voluntária da
gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, nas
condições fixadas na Lei n.º 16/2007, não desprotege a saúde física e psíquica
da mulher.
11.7. Violação do direito à liberdade e do princípio da proporcionalidade
O regime consagrado no mesmo artigo 2.º e no artigo 142.º, n.º 4, alínea b), do
Código Penal é também apontado, na motivação, como conflituando com os “direitos
constitucionais à liberdade e proporcionalidade”, tornando-se, deste ponto de
vista, sindicável perante o disposto nos artigos 25.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, da
CRP”.
A relacionação destas normas com aqueles valores constitucionais alegadamente
violados desperta alguma perplexidade, pois não se descortina que “os direitos
constitucionais à liberdade e proporcionalidade” possam caber nos respectivos
âmbitos de protecção.
Em relação à norma do artigo 27.º, n.º 1, a sua invocação parece assentar num
equívoco, pois o bem protegido em tal preceito, como se reconhece
consensualmente e os n.ºs 2 e 3 deixam claro, é o da liberdade física.
Ora, o que aqui pode estar em causa é apenas a liberdade real de decisão, quanto
à realização ou não do acto abortivo, por défice de informação quanto a todos os
elementos relevantes para uma escolha consciente. É essa insuficiência que os
requerentes parece terem em vista, quando, na conclusão w), referem que o modo
como a Lei n.º 16/2007 regula a prestação da informação “tange com os Princípios
Constitucionais da igualdade e proporcionalidade (…)”.
Se o princípio da igualdade pode ser, de imediato, posto de lado, por estar aqui
deslocadamente invocado, também não é clara a inferência de sentido que os
requerentes retiram do princípio da proporcionalidade, quando o invocam, a este
propósito. Pois, estando este princípio colimado à proibição de um excesso, não
se afigura que se encontre disponível, qua tale, para atalhar um défice (de
protecção), em concretização da proibição de insuficiência – cfr., nesse
sentido, CANARIS, ob. cit., 67.
Sempre se dirá, todavia, que a informação, tal como vem regulada, em termos de
conteúdos e processos comunicativos, é proporcionada ao objectivo de obter a
colaboração da grávida para ouvir, seriamente reflectir e, eventualmente, se
deixar influenciar pelos dados que lhe são transmitidos.
Quanto ao momento e ao modo de informar, vem também alegada “a natureza
triplamente indirecta da informação a prestar”, partindo-se do princípio que
“não é obrigatório fornecê-la mas apenas informar a grávida acerca dos meios de
a obter” e de que, se essa opção for feita, é a um técnico social, durante o
acompanhamento no período de reflexão, ao qual se refere a alínea d) do n.º 2 do
artigo 2.º da Lei n.º 16/2007, que cabe informar.
Esta interpretação contradiz frontalmente os enunciados legais. Das normas dos
artigos 142.º, n.º 4, alínea b), do Código Penal, e 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007, (e também do artigo 16.º da Portaria n.º 741-A/2007, não objecto de
recurso, neste processo) resulta que a informação, toda a informação prevista
como de prestação obrigatória e não apenas a de natureza médica, deve ser
directamente fornecida, no acto da consulta, e não após a sua efectivação.
É de rejeitar, pois, a invocada inconstitucionalidade dos artigos 2.º, n.º 2, da
Lei n.º 16/2007 e 142.º, n.º 4, alínea b) do Código Penal, com fundamento em
violação dos “direitos constitucionais à liberdade e proporcionalidade”.
11.8. Não participação do progenitor masculino no processo de decisão sobre a
interrupção voluntária da gravidez
11.8.1. Os requerentes suscitam ainda a questão da inconstitucionalidade
da solução normativa consistente na omissão da exigência de participação do
progenitor masculino no processo de formação da decisão sobre o aborto no âmbito
do regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
Para condenar a viabilidade constitucional de tal solução, invocam as normas
paramétricas constantes dos artigos 1.º, 2.º, 24.º, 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5,
67.º, alínea d), 68.º, n.º 2, da CRP, e os fundamentos seguintes:
- através do seu artigo 67.º, alínea d), a Constituição garante o exercício da
maternidade e paternidade conscientes, estabelecendo, por sua vez, o respectivo
artigo 68.º que a maternidade e a paternidade constituem valores sociais
eminentes;
- o princípio da igualdade fixado para o exercício da parentalidade trespassa
todo o direito constitucional (artigos 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5, 67.º e 68.º da
CRP).
- ao deixar o progenitor masculino totalmente arredado da responsabilidade e
processo de formação da decisão no aborto, a Lei n.º16/2007, de 17 de Abril,
viola estas normas e as restantes acima mencionadas da Lei Fundamental.
11.8.2. Nos termos dos n.ºs 4, 5 e 6 do artigo 142.º do Código Penal, a
formação da decisão sobre a interrupção voluntária da gravidez cabe apenas à
mulher grávida, cujo consentimento, ou do seu representante nos termos da lei,
inserido na tramitação que antecede a realização daquele acto, é exigível como
condição de exclusão da punibilidade.
O regime do consentimento para a realização da interrupção da
gravidez no âmbito do funcionamento da fattispecie contemplada na alínea e) do
n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal dispensa, assim, o do progenitor, em tal
exclusão residindo o vício de inconstitucionalidade apontado pelos requerentes.
A apreciação da viabilidade constitucional deste regime pressupõe a prévia
caracterização da configuração em que, neste quadro, o problema pode
juridicamente suscitar-se.
De facto, só nos casos em que a identidade do progenitor for susceptível de ser
estabelecida pela ordem jurídica, de forma legítima, é que a questão poderá
verdadeiramente colocar-se.
Se o não puder ser, não chega a suscitar-se um qualquer problema jurídico
porque, em termos puramente jurídicos, um pai desconhecido é o mesmo que um pai
inexistente, pelo que a sua vontade será neste caso irrelevante (PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS, “A posição jurídica do pai na interrupção voluntária da gravidez”,
Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, I, Coimbra,
2008, 139 s., 152-153).
Ora, podendo partir-se com segurança do postulado segundo o qual não
constituiria forma legítima de estabelecimento da identidade do progenitor
qualquer uma que assentasse na previsão de uma investigação das circunstâncias
da concepção ou numa indagação a desenvolver junto da própria grávida –
tratar-se-ia sempre de uma intolerável violação do direito à reserva da
intimidade que lhe é assegurado pelo artigo 26.º da Constituição –, o problema
da dispensa do consentimento do progenitor para a realização da interrupção
voluntária da gravidez fica juridicamente limitado ao âmbito do funcionamento
operativo da presunção de paternidade decorrente do casamento, consagrada no
artigo 1826.º do Código Civil.
Apenas nestes casos, a ordem jurídica estará em condições para, sem o recurso à
colaboração da gestante, estabelecer a identidade do progenitor do nascituro
comum e, em tal contexto, equacionar a possibilidade de, em oposição ao critério
legal impugnado, fazer depender também do assentimento daquele a realização da
interrupção da gravidez por opção da grávida.
Nos termos preceituados no artigo 1826.º do Código Civil, presume-se que o filho
nascido ou concebido na constância do matrimónio da mãe tem como pai o marido da
mãe.
Tal presunção, não sendo inderrogável, cessa nos casos previstos nos artigos
1829.º e 1832.º do mesmo Código.
Trata-se aqui dos casos em que a lei não impõe a presunção de paternidade ao
marido da mãe, embora a concepção do filho se tenha verificado durante a
constância formal do matrimónio.
Segundo o artigo 1829.º, a presunção de paternidade cessa se o nascimento do
filho ocorrer passados trezentos dias depois de finda a coabitação dos cônjuges,
considerando-se esta para um tal efeito terminada na data da primeira
conferência, tratando-se de divórcio ou de separação por mútuo consentimento; na
data da citação do réu para a acção de divórcio ou separação litigiosa, ou na
data que a sentença fixar como a da cessação da coabitação; na data em que
deixou de haver notícias do marido, conforme decisão proferida em acção de
nomeação de curador provisório, justificação de ausência ou declaração de morte
presumida.
A presunção de paternidade cessa ainda, nos termos do artigo 1832.º, nos casos
em que a mulher casada fizer a declaração do nascimento com a indicação de que o
filho não é do marido e se for averbada ao registo declaração de que, na ocasião
do nascimento, o filho não beneficiou de posse de estado, nos termos do n.º 2 do
artigo 1831.º, relativamente a ambos os cônjuges.
Como se vê, qualquer uma das causas legalmente habilitadas a fazer cessar a
presunção de paternidade decorrente do casamento supõe precisamente o
nascimento, razão pela qual nenhuma delas será passível de verificar-se no
momento temporal a que se reporta a prestação do consentimento para a realização
da interrupção da gravidez.
Deste ponto de vista, pode dizer-se que a presunção de paternidade será, para um
tal efeito, inderrogável.
Apesar de ser assim, não está, todavia, excluída a possibilidade de a grávida
declarar espontaneamente que o progenitor biológico não é o seu cônjuge.
Embora não possa fazer cessar a presunção da paternidade nos termos previstos no
artigo 1832.º, do Código Civil, tal declaração, a ocorrer, não deixará de
afectar o sentido, também jurídico, do problema da dispensa do consentimento do
progenitor para a realização da interrupção voluntária da gravidez.
Este problema, pela própria natureza dos fundamentos em que assenta, tem o seu
sentido dependente da circunstância de se tratar do progenitor biológico do
nascituro comum, não sendo configurável, pelo menos com idêntico significado, em
relação ao progenitor presumido de acordo com o critério nupcialista, sempre que
esteja posta em causa a sua coincidência com o progenitor biológico.
Isto significa, de um ponto de vista operativo, que o problema da dispensa do
consentimento do progenitor para a realização da interrupção voluntária da
gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal acaba
por ficar juridicamente confinado aos casos de funcionamento não controvertido
da presunção de paternidade derivada do casamento: àqueles em que a mulher
grávida é casada, a concepção ocorreu na constância do matrimónio e não é
produzida pela gestante qualquer declaração contrária à presunção legal de
paternidade.
11.8.3. De entre as normas paramétricas convocadas pelos requerentes, aquelas
que mais directamente se cruzam com a fundamentação do pedido e se encontram
tematicamente mais próximas da matriz conflitual do problema são as constantes
dos artigos 13.º, 36.º, n.ºs 3 e 5, 67.º, alínea d), e 68.º, todos da
Constituição.
Previamente à determinação do grau de conflitualidade possível da solução
normativa questionada com cada uma dessas normas, importa clarificar os termos
em que estas se relacionam entre si e deste modo estabelecer a pertinência
relativa de cada uma delas, para a valoração que o problema suscita.
Conforme referem GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA (ob. cit., 561), no artigo 36.º
da Constituição reconhecem-se e garantem-se os direitos relativos à família, ao
casamento e à filiação, direitos esses de quatro ordens: «a) direito das pessoas
a constituírem família e a casarem-se (n.ºs 1 e 2); b) direitos dos cônjuges no
âmbito familiar e extrafamiliar (n.º 3); c) direitos dos pais em relação aos
filhos (n.ºs 5 e 6); d) direitos dos filhos (n.ºs 4, 5, 2.ª parte, e 6)».
Confrontando este artigo com os artigos 67.º e 68.º da CRP – «que reconhecem
“direitos sociais” cujos titulares são aparentemente comuns» –, regista-se,
todavia, que «no artigo 67.º é a própria família, enquanto tal (e não as
pessoas), que aparece como sujeito do direito à protecção da sociedade e do
Estado; no artigo 68º, já os titulares do direito são também os pais e as mães
mas o destinatário desse direito é a sociedade e o Estado (…)».
Tal perspectiva é também a de JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS. Segundo os referidos
Autores, «enquanto no artigo 36.º avulta sobretudo a dimensão
individual-subjectiva dos direitos dos membros da família, incluindo desde logo
o próprio direito a constituir família, quer ainda, no que toca à família como
um todo, a dimensão de liberdade, o artigo 67.º, se bem que sem perder de vista
o objectivo da realização pessoal dos seus membros, tutela fundamentalmente a
própria família como instituição e impõe em particular ao Estado o dever de a
proteger positivamente» (Constituição Portuguesa Anotada, ob. cit., I, 689).
No artigo 67.º – prosseguem ainda – a Constituição «impõe ao Estado um conjunto
de incumbências destinadas a proteger, pela positiva, a família e a vida
familiar», enumerando o respectivo n.º 2, «a título exemplificativo (…) algumas
das acções que o Estado deverá promover em ordem à protecção da família» (ob.
cit., 693).
Enquanto que no artigo 36.º, n.º 5, a Constituição garante aos pais o direito e
lhes impõe o dever de educação e manutenção dos filhos, o artigo 68.º
confere-lhes o «direito à protecção (i. é, ao auxílio) da sociedade e do Estado
no desempenho dessa tarefa», conferindo-lhes, deste ponto de vista, «um “direito
social” em sentido próprio, traduzido essencialmente em um direito a prestações
públicas, a concretizar por lei», valendo igualmente «face à sociedade, ou seja,
face os particulares (…), nos termos das leis concretizadoras deste direito».
11.8.4. Fixado o alcance essencial das normas constitucionais de tutela da
família e dos seus membros (no quadro das relações familiares), em si e na sua
articulação recíproca, torna-se patente que, no contexto do controlo da
constitucionalidade do critério normativo que vem questionado, só faz sentido
considerar a convocação dos parâmetros constantes do artigo 36.º
Com efeito, consistindo esse critério na suficiência do consentimento da mulher
grávida para a realização da interrupção da gravidez efectuada por opção
daquela, dispensando o do progenitor, o campo normativo para que o discurso
sobre a respectiva viabilidade constitucional é directamente remetido não é o
dos direitos sociais relativos às incumbências do Estado na protecção da família
e da vida familiar (artigo 67.º), ou à protecção dos pais e mães pela sociedade
e pelo Estado, nem mesmo o dos valores constitucionais objectivos da maternidade
e paternidade (artigo 68.º), mas sim o do estatuto constitucional dos
progenitores, no contexto da relação de família.
As referências de sentido susceptíveis de conflituar com a solução normativa
impugnada são, pois, em primeira linha, as procedentes da dimensão
individual-subjectiva dos direitos dos membros da família. E essa é matéria que
aponta para o âmbito normativo do artigo 36.º da Constituição.
Das normas enunciadas neste artigo, e uma vez que a “plena igualdade” assegurada
no n.º 1 se refere ao “direito de constituir família e de contrair casamento”, a
constante do n.º 3 assume, prima facie, centralidade, para o problema em apreço.
Reza essa norma que «os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à
capacidade civil e política e à manutenção e educação dos filhos.» No segmento
que para aqui importa (2.ª parte), interdita-se qualquer discriminação jurídica
entre os cônjuges, no exercício do poder-dever, consagrado no n.º 5 do mesmo
artigo, de educação e manutenção dos filhos – regra extensível, por identidade
de razão, a todas as outras situações de progenitura de um filho comum (se bem
que, conforme já se viu, o problema relativo à delimitação dos titulares do
poder de consentir na realização da interrupção voluntária da gravidez não
possa, nestas situações, colocar-se nos mesmos termos em que se coloca quanto a
pais casados).
Mas, ainda que muito expressiva do valor constitucional do princípio da
igualdade, de que constitui um corolário e uma manifestação particular, é
meridianamente claro que a norma tem em vista os filhos já nascidos, uma vez que
o referente objectivo é “a manutenção e educação” dos mesmos. Ora, o que aqui se
questiona é a exigibilidade do consentimento do progenitor, no mesmo plano e com
a mesma eficácia do da gestante, para a interrupção voluntária da gravidez. O
mesmo é dizer, em causa está a participação volitiva do interveniente masculino
na concepção numa decisão de que dependerá o nascimento futuro, ou não, de um
filho. Questão que, não só incide sobre um (eventual) conflito de distinta
configuração, como também se rege por coordenadas valorativas não coincidentes
com as especificamente actuantes no n.º 3 do artigo 36.º
Tal como as restantes normas convocadas, atinentes à esfera da família, da
paternidade e da maternidade, também o n.º 3 do artigo 36.º se revela, pois,
imprestável para servir de critério constitucional de apreciação do regime em
apreço. Temos, assim, que, remontar ao princípio da igualdade, na sua enunciação
mais genérica (artigo 13.º da CRP), no quadro do qual deve ser proferida a
palavra final sobre a questão.
11.8.5. De um modo geral, pode dizer-se que o princípio da igualdade, entendido
como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a
realização de todas e quaisquer distinções, mas apenas daquelas que se revelem
materialmente infundadas e careçam, por isso, de justificação objectiva e
racional (neste sentido, entre muitos outros, o Acórdão n.º 250/2000).
Se assim é, a questão que se coloca poderá enunciar-se da seguinte forma:
A inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da
interrupção da gravidez contemplada na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do
Código Penal exprime, em confronto com a suficiência do consentimento da
grávida, uma distinção materialmente infundada, carecida de justificação
objectiva e racional e, por isso, violadora do princípio da igualdade dos
progenitores?
No Acórdão n.º 25/84, o Tribunal Constitucional concluiu que o princípio da
igualdade de ambos os cônjuges à manutenção dos filhos (artigo 36.º, n.º 3) não
era infringido por uma norma legal que apenas exigia o consentimento da mulher
grávida para efeitos de interrupção da gravidez.
Estava então em causa a apreciação, em processo de fiscalização preventiva da
constitucionalidade, das normas constantes dos artigos 140.º e 141.º do Código
Penal, na redacção que lhes viria a ser conferida pelo artigo 1.º da Lei n.º
6/84, de 11 de Maio, ou seja, das alterações ao regime penal do aborto que
introduziram no ordenamento jurídico?penal português as chamadas “causas de
exclusão da ilicitude”, correspondentes ao modelo de indicações.
Tal orientação é de manter no âmbito da fattispecie prevista na alínea e) do n.º
1 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção introduzida pelo artigo 1.º da
Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril.
Na verdade, a colocação da possibilidade de realização da interrupção voluntária
da gravidez, com sujeição ao regime previsto nessa norma, na dependência do
assentimento de ambos os progenitores não poderia deixar de equivaler à
atribuição ao progenitor masculino de um direito de veto.
Não sendo concebível a previsão da possibilidade de recurso aos tribunais para
dirimir uma eventual divergência entre a grávida e o progenitor acerca da
realização, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, de uma interrupção da gravidez desejada pela primeira e indesejada pelo
segundo, um princípio de direcção conjunta do destino do embrião ou do feto
redundaria aqui na atribuição ao progenitor da prerrogativa de, por acto
unilateral e discricionário, impedir a aplicação daquela alínea e, com isso,
reconvocar a protecção do direito penal, submetendo, com isso, a grávida à
ameaça da pena – apesar de esta ter sido considerada, pelo legislador de 2007,
instrumento não necessário de tutela da vida intra-uterina até às 10 semanas de
gravidez.
Deste ponto de vista, pode dizer-se que a solução normativa consistente na
inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção
da gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal não
envolve qualquer desqualificação arbitrária da paternidade enquanto valor social
eminente, nem se apresenta carecida de justificação objectiva e racional, em
termos de poder ser considerada violadora do princípio da igualdade. A solução
está, por assim dizer, na “natureza das coisas”, por condicionada pela realidade
biológica da gestação humana.
Sendo assim, é de concluir que a norma extraída dos n.ºs 1, alínea e), e 4,
alínea b), do artigo 142.º do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril, consistente na suficiência do consentimento da mulher
grávida para a exclusão da punibilidade da interrupção da gravidez efectuada por
opção daquela, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e
por médico ou sob a sua direcção, dentro das 10 primeiras semanas de gravidez,
dispensando o do progenitor, não deve ser considerada inconstitucional.
11.9. Não participação na consulta obrigatória dos médicos que invoquem a
objecção de consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à
interrupção voluntária da gravidez (artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007)
11.9.1. Os requerentes suscitam ainda a inconstitucionalidade da norma
constante do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, na medida
em que exclui das consultas previstas na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do
Código Penal e no artigo 2.º daquele diploma os médicos objectores de
consciência.
Segundo os requerentes, tal solução normativa encontra-se em desconformidade com
o artigo 24.º da CRP, violando ainda os artigos 13.º (princípio da igualdade),
25.º, n.º 1 (integridade pessoal dos médicos), e 26.º (bom nome e reputação dos
médicos), para além de desconforme à Declaração Universal dos Direitos do Homem
e Convenções Internacionais, aplicáveis por força do artigo 8.º da CRP.
De acordo com a argumentação para o efeito desenvolvida, a disciplina constante
da norma em questão, ao excluir das consultas os médicos objectores de
consciência – e, por isso, mais próximos da principiologia do artigo 24.º da
Constituição –, contém, relativamente a estes, um tratamento discriminatório,
designadamente no que toca ao acesso a cargos em estabelecimentos públicos.
O artigo em causa, sob a epígrafe “objecção de consciência”, dispõe, no seu n.º
2, o seguinte:
«2 - Os médicos ou demais profissionais de saúde que invoquem a objecção de
consciência relativamente a qualquer dos actos respeitantes à interrupção
voluntária da gravidez não podem participar na consulta prevista na alínea b) do
n.º 4 do artigo 142º do Código Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas
a que haja lugar durante o período de reflexão.
A consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal,
destina-se a facultar à mulher grávida “o acesso à informação relevante para a
formação da sua decisão livre, consciente e responsável”. O conteúdo dessa
informação vem explicitado, como já vimos, no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007.
A apreciação da constitucionalidade da regra legal impugnada pressupõe a prévia
compreensão do fundamento material que, do ponto de vista da unidade do sistema
em que se insere, lhe pode ser racionalmente associado.
Já acima tratámos desenvolvidamente das razões, tidas por justificativas, da
opção primária de exclusão da punibilidade, dentro de certo prazo, da
interrupção voluntária da gravidez. Quanto ao modo operativo desta opção, o
nosso direito, tendo-se decidido pela obrigatoriedade de uma consulta prévia à
prestação do consentimento, não explicitou nominalmente a finalidade dessa
consulta, como sendo a de encorajar a grávida a levar a termo o processo de
gestação – nisso, aliás, se colocando a par da generalidade dos que seguiram
idêntica directriz de base, com a excepção única do direito alemão.
E também esta opção de segundo grau foi tida por defensável, no quadro da
unidade de conjunto das ponderações valorativas do legislador, não censuradas,
em que se integra.
É dentro deste sistema regulador, e em perfeita coerência com as soluções
previamente encontradas para os pontos centrais da disciplina legal, que se
perfila o regime do n.º 2 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007. Também ele é
expressão da mesma ideia de que a grávida deve ser institucionalmente preservada
de qualquer forma de ingerência no desenvolvimento “interno” do seu processo
decisório, mesmo daquelas que se traduzem apenas em comunicações de cunho
declaradamente orientativo.
É a esse terreno, na verdade, que nos conduz a captação da finalidade da
exclusão da possibilidade de participação na consulta que precede a
concretização da interrupção da gravidez dos médicos objectores de consciência
relativamente a qualquer dos actos respeitantes a esse acto. Ela reporta-se
funcionalmente à intencionalidade global do sistema instituído pela Lei n.º
16/2007, visando o conjunto das disposições do artigo 6.º estabelecer uma
disciplina respeitadora dos ditames de consciência dos médicos, mas que dê
também satisfação às exigências de funcionamento dos serviços que
operacionalizam esse sistema em moldes sintonizados com as coordenadas que o
informam.
E fá-lo em termos que não suscitam reparos constitucionais.
11.9.2. Tenha-se em conta, em primeiro lugar, que a garantia do direito à
objecção de consciência está submetida a uma reserva de lei, pois é concedida
“nos termos da lei” (artigo 41.º, n.º 6, da CRP). Não parece desrazoável ou
desproporcionado, em face desta remissão para a lei, que seja esta, e não o
objector, a delimitar o âmbito sobre que a objecção incide (desde que,
evidentemente, não ponha em causa a satisfação da razão de consciência que dá
“conteúdo essencial” ao direito à objecção).
A interrupção voluntária da gravidez é um processo unitário, composto por um
encadeamento de actos, preparatórios e executivos. Não é arbitrário que, uma vez
manifestado pelo médico um impedimento de consciência em participar nos últimos,
a lei o estenda à consulta prévia.
É certo que, com essa extensão, o legislador vai para além do que seria
estritamente necessário à protecção do objector. Mas o que não é menos certo é
que, com essa decisão, resultante da livre avaliação que o legislador faz da
incidência da objecção de consciência no cumprimento do programa de ordenação
que estabeleceu, com a sua racionalidade própria, ele não compromete o mínimo de
protecção da vida-uterina, não viola o princípio da igualdade, assim como não
viola a integridade moral nem o direito ao bom nome dos médicos objectores.
Quanto à primeira arguição, que, mais uma vez, convoca o disposto no artigo 24.º
da CRP, deixa-se subentendido que a solução gera unilateralidade do conteúdo
informativo, pois silencia as vozes de quantos estariam mais activamente
disponíveis para apresentar à grávida razões favorecedoras da prossecução da
gravidez. Não sendo controlada “a opinião dos médicos que vão à consulta”, a
“desigualdade daí derivada” seria “mais um argumento para mostrar o inadmissível
da assimetria informativa“.
Ora, quando se fala, neste contexto, em “assimetria informativa”, parece
assumir-se como ideal da estrutura de informação o estabelecimento de uma
espécie de contraditório perante a grávida, em que aos partidários e adversários
do aborto fosse concedida igual oportunidade de expenderem as suas razões.
Estará em mente um desenrolar de uma dialéctica argumentativa, em que teriam
ocasião de se manifestar concepções antagónicas.
Esta representação falha rotundamente, pois parte de um grave equívoco quanto à
posição dos médicos que não se negam a participar na interrupção voluntária da
gravidez. Eles não podem ser considerados a favor do aborto, mas apenas médicos
que, valorando-o seguramente como um mal, estão, todavia, dispostos a colaborar
no cumprimento da lei.
Nem, na lógica do sistema, o resultado da consulta e subsequente reflexão é
feito depender do empenho que os operadores profissionais mostrem num
determinado sentido da decisão. Pelo contrário. O que se visa é a exposição
objectiva, num clima de serenidade e de absoluto respeito pela autonomia
decisória da grávida, de uma série de apoios susceptíveis de a levar a
considerar, de moto próprio, viável a solução alternativa à interrupção da
gravidez.
Pode atribuir-se a este regime uma eficiência reduzida e menor do que a que
gozam outros sistemas – ideia, esta última, já suficientemente contrariada. Mas
o que não tem razão de ser, por inteiramente desfasado dos critérios que
informam a disciplina legal e deturpador do papel que é atribuído à prestação
profissional dos médicos, na fase da consulta, é o entendimento de que a
exclusão dos médicos objectores de consciência diminui o nível da protecção que
seja de imputar a uma tal disciplina.
11.9.3. A alegação de que o princípio da igualdade é ofendido aponta para a
dimensão do princípio que se traduz na proibição de discriminações (n.º 2 do
artigo 13.º da CRP). Estaríamos em face de uma diferenciação de tratamento
baseada num certo conteúdo de consciência, na manifestação de uma convicção de
ordem moral, ou seja, em razão de uma das categorias “suspeitas”,
exemplificativamente mencionada naquele preceito.
A afirmação peca, todavia, por uma invocação mecanicista do princípio da
igualdade, sem a atenção devida ao seu fundamento axiológico. O que decorre do
princípio, em veste da proibição de discriminações, não é a exigência de igual
tratamento, mas a de “tratamento como igual”, um tratamento que dê mostras da
“igual consideração e respeito” de que todas as pessoas são credoras – para
utilizarmos conhecidas expressões de DWORKIN.
Ora, a solução questionada, ainda que isentando os médicos objectores de
consciência do cumprimento de um dever, não corporiza uma diferenciação
“negativa”, no sentido de revelar uma desqualificação da aptidão funcional
desses médicos ou uma suspeição quanto à sua idoneidade profissional. Não os
desvaloriza ou desrespeita; apenas retira de um impedimento de participação,
livremente manifestado pelos próprios, consequências sistemicamente adequadas,
em face do modelo legalmente definido.
O legislador aceitou a recusa de participação, por objecção de consciência, na
execução do acto de interrupção de gravidez – de forma, aliás, generosa, pois a
eficácia da objecção está aqui dependente apenas de declaração do interessado
(n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 16/2007), o que não é comum. Com isso, suporta
os efeitos desfavoráveis que uma tal recusa, quando em número considerável, pode
acarretar para a eficácia da resposta global dos serviços às solicitações a que
fiquem sujeitos. Dir-se-á, com razão, que não poderia ser de outro modo, tendo
em conta a força jurídica da garantia constitucional de liberdade de
consciência. Mas, o que não se vê é porque é que essa aceitação de uma recusa de
participação compromete o legislador em termos de este ficar obrigado a
reconhecer um direito de participação selectiva, de acordo com a variável
disposição individual de cada objector, com as dificuldades de organização daí
advenientes, sob pena de poder ser acusado de violação do princípio da
igualdade.
O regime questionado não é, pois, susceptível de ofender o princípio da
igualdade.
11.9.4. O que fica dito sobre o princípio da igualdade quase que dispensa
acrescentar algo mais quanto às alegadas violações do direito à integridade
pessoal e ao bom nome e reputação dos médicos objectores.
Diga-se apenas que não há qualquer afectação desses bens, pois a exclusão não
pode ser entendida como dimanando de um juízo de menor valia ou de menores
garantias de carácter ou de escrúpulo profissionais, nem como causadora de
descrédito, como se se tratasse de um labéu ou um de rótulo depreciativo
“colado” à imagem dos objectores de consciência. O interessado não é, pois,
colocado perante o dilema, constitucionalmente invalidável, de ter que renunciar
ao exercício da sua liberdade de consciência ou de ter que suportar ofensas ao
seu bom nome e reputação.
11.9.5. Por todo o exposto, e tendo em conta que a norma do artigo 6.º, n.º 2,
da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril não atenta contra nenhum dos parâmetros
constitucionais invocados, nem outros se divisam que possam por ela ser
atingidos, o Tribunal não se pronuncia pela não inconstitucionalidade.
11.10. Regulamentação por portaria da informação a que se refere a alínea b) do
n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal
11.10.1. Os requerentes suscitaram ainda a inconstitucionalidade da norma
do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, na medida em que
admite a regulamentação por portaria da informação a que se refere a alínea b)
do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, não obstante estar em causa matéria de
direitos fundamentais.
De acordo com os requerentes, tal norma fere o disposto nos artigos 67.º, n.º 1,
112.º, n.º 5, e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.
A norma do artigo 67.º, n.º 1, da CRP pode, desde já, para este efeito, ser
posta de lado, pois dela não se extrai qualquer parâmetro de controlo pertinente
para a verificação da validade constitucional da norma impugnada.
Essa norma consta do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, tendo o seguinte
teor:
«2 - A informação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 142º do Código
Penal é definida por portaria, em termos a definir pelo Governo, devendo
proporcionar o conhecimento sobre:
a) As condições de efectuação, no caso concreto, da eventual interrupção
voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher;
b) As condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à
maternidade;
c) A disponibilidade de acompanhamento psicológico durante o período de
reflexão;
d) A disponibilidade de acompanhamento por técnico de serviço social, durante o
período de reflexão».
A portaria a que se refere o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 é a Portaria
n.º 741-A/2007, de 21 de Junho, publicada no DR, 1.ª série, de 21 de Junho de
2007, e entrada em vigor, de acordo com o respectivo artigo 24.º, no dia 15 de
Julho de 2007.
Enquanto acto normativo autónomo, a Portaria não é directamente visada pelo
juízo de inconstitucionalidade pedido pelos requerentes, já que estes não
questionam a conformidade entre as suas normas e os preceitos constitucionais.
A norma impugnada é, assim, simplesmente, a do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007, não obstante um eventual julgamento de inconstitucionalidade desta
implicar necessariamente, em termos consequenciais, a inconstitucionalidade dos
preceitos da Portaria n.º 741-A/2007 que desempenhem uma função regulamentar
daquela, contendendo, em tais termos, com a respectiva subsistência.
11.10.2. A norma do artigo 2.º, nº 2, da Lei n.º 16/2007 suscita duas
questões de constitucionalidade: a da violação do artigo 112.º, n.º 5, 2.ª
parte, da Constituição, por alegada inobservância da proibição de integração
autêntica da lei através de acto normativo não legislativo – aqui de natureza
regulamentar – e a da violação do princípio da legalidade, na dimensão de
reserva de lei material, esta consagrada, quanto aos direitos, liberdades e
garantias, na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP e, quanto à definição
dos crimes e respectivos pressupostos, na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da
CRP.
Relativamente à segunda das questões enunciadas, os requerentes convocam apenas
o parâmetro de controle constituído pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da
CRP, preceito segundo o qual, salvo autorização ao Governo, é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre as matérias de direitos,
liberdades e garantias.
A propósito da delimitação do âmbito material dessa norma, regista-se na
doutrina o entendimento de que «a reserva abrange as matérias versadas nos
títulos I e II da parte I, por referência a todos os seus preceitos,
independentemente da análise estrutural das situações aí contempladas, mesmo
que, em rigor, algumas não possam ser qualificadas como direitos fundamentais,
mas apenas como garantias institucionais» (cfr. JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob.
cit., II, 534).
Nesta perspectiva, a posição do Tribunal segundo a qual a norma do artigo 24.º,
n.º 1, da CRP, protege a vida humana intra-uterina como valor ou bem objectivo,
sem concomitante atribuição de um verdadeiro direito subjectivo fundamental, não
retira ao regime jurídico sobre a interrupção voluntária da gravidez o carácter
de disciplina normativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, para
efeitos de delimitação do âmbito de reserva de lei.
Mas, para além do parâmetro da alínea b) do artigo 165.º, também o da alínea c)
do mesmo preceito pode ser chamado à colação, para apreciar a questão posta.
É certo que o aspecto do regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez
consistente na modelação da consulta informativa que precede a prestação do
consentimento pela gestante não procede directamente à delimitação negativa do
bem jurídico-constitucional “vida intra-uterina”, consistindo antes numa
condição positiva dessa delimitação.
Todavia, ainda que de tal circunstância fosse de retirar fundamento idóneo para
contestar a possibilidade de qualificar esse aspecto – e, portanto, a própria
norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 – como elemento ele próprio
integrante do sistema de delimitação negativa do valor da vida intra-uterina
justificativo da aplicação do regime de direitos liberdades e garantias, parece
que a relação de dependência normativa entre a realização da consulta
informativa contemplada no n.º 2 do artigo 2.º e a validade e/ou eficácia do
consentimento da gestante para a realização da interrupção da gravidez a coberto
da causa de exclusão da punibilidade constante da alínea e) do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal, sempre permitiria a colocação do problema da eventual
violação da reserva de lei através da convocação do parâmetro constituído pela
alínea c) do artigo 165.º da CRP.
A análise que se segue assentará neste pressuposto.
11.10.3. Segundo a pretensão formulada pelos requerentes, a violação do
artigo 112.º, n.º 5, da Constituição resultaria de o artigo 2.º, n.º 2, da Lei
n.º 16/2007 conferir a uma portaria o poder de integrar uma norma ínsita num
acto legislativo, não sendo tal portaria, por sua vez, um acto legislativo
previsto pelo artigo 112.º, n.º 1.
O n.º 5 do artigo 112.º da CRP corresponde ao n.º 5 do artigo 115.º, na versão
anterior à revisão de 1997, tendo este, por sua vez, sido aditado pela revisão
constitucional de 1982.
No segmento que importa aqui considerar, tal preceito veio inconstitucionalizar
os preceitos legais que habilitem a Administração a realizar uma integração
regulamentar de normas legais: a integração (tal como a interpretação autêntica)
de uma lei só por outra lei pode ser feita, e não por um regulamento (cfr. o
Acórdão n.º 451/2001).
Conforme este Tribunal, por diversas vezes, afirmou, o artigo 112.º, n.º 5, da
Constituição é uma norma dirigida ao legislador e não ao poder regulamentar, o
que significa que o parâmetro de controlo que dele se extrai tem por objecto a
norma legal que, contra o ali preceituado e infringindo a proibição de
delegação, cometa a 'actos de outra natureza' (v.g. regulamentos, despachos
normativos) a sua interpretação ou integração autêntica com eficácia externa – a
norma legal que seja a lei habilitante daquela norma regulamentar. Isto sem
prejuízo de a invalidação por inconstitucionalidade da norma legal habilitante
gerar consequencialmente a invalidação da norma regulamentar, por falta de
suporte ou base legal, no momento em que foi emitida (neste sentido, por todos,
o Acórdão n.º 451/2001).
De acordo com entendimento doutrinal estabilizado, o n.º 5 do artigo 112.º da
CRP «não proíbe os chamados reenvios normativos (ou remissões normativas),
designadamente nos casos em que a lei remete para a administração a edição de
normas regulamentares executivas» (referidas a preceitos específicos) «ou
complementares (referidas genericamente a toda uma lei) “da disciplina por ela
estabelecida”.
De acordo com “a natureza e os limites constitucionais dos poderes de normação
regulamentar executiva ou complementar da administração”, a norma regulamentar
visará, neste caso, «regular aquilo que a lei se absteve de regular e não
“integrar” a regulamentação legislativa (…), pelo que o regulamento nunca pode
intervir sub specie legis» (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 3.ª
ed., Coimbra, 1993, 512).
Nesta linha, o juízo de inconstitucionalidade reivindicado pressuporá a
qualificação do reenvio normativo efectuado pelo artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º
16/2007 como uma remissão habilitante da edição, através de portaria, de normas
regulamentares integrativas, contendo disciplina praeter legem, em contraposição
a uma sua qualificação como mero regulamento de execução complementar daquele
preceito legal.
A integração do reenvio normativo a que procede a norma legal do artigo 2.º, n.º
2, da Lei n.º 16/2007, numa destas duas categorias implica a caracterização do
objecto possível da portaria, segundo os termos preconizados pela própria
remissão, constantes da norma legal habilitante.
11.10.4. Segundo o regime instituído pela Lei n.º 16/2007, a não
punibilidade da interrupção voluntária da gravidez realizada por opção da
mulher, nas primeiras dez semanas de gestação, depende, além do mais, de uma
consulta prévia. Tal consulta encontra-se regulada no artigo 2.º daquela Lei, em
cujo n.º 2 se inscreve a norma aqui impugnada.
Do ponto de vista da relação que intercede entre a efectiva realização da
consulta prévia, nos termos do regime definido no artigo 2.º, e a operatividade
da fattispecie consagrada na actual alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, a Lei n.º 16/2007 é escassamente propiciadora das respostas que serviriam
a uma mais detalhada e segura caracterização da disciplina jurídica globalmente
instituída.
Não obstante a atribuição de carácter obrigatório à consulta que haverá de
preceder a prestação do consentimento pela mulher grávida e a fixação do
conteúdo informativo que, por tal meio, a esta haverá de ser previamente
proporcionado, a lei não dispõe expressamente sobre as consequências que, para a
gestante, por um lado, e para o médico interveniente, por outro, poderão advir
da realização de uma interrupção voluntária da gravidez dentro das 10 primeiras
semanas de gestação que não haja sido antecedida daquela consulta ou que,
sendo-o embora, nela não tenha sido cumprido integralmente o disposto no n.º 2
do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007.
Nesta conformidade, a questão de saber se, nestes casos, a relevância criminal
da actuação de um e de outro se encontrará ainda excluída por efeito da
verificação dos elementos integrativos da previsão da alínea e) do n.º 1 do
artigo 142.º do Código Penal, ou se, pelo menos no que concerne ao médico que
realiza a interrupção, a tal exclusão se oporá a ausência ou incompletude do
procedimento que deverá preceder a prestação de um consentimento válido e
eficaz, poderá depender da solução do problema da determinação do estatuto que
cabe à consulta prévia e respectivo regime no quadro da causa de impunibilidade
prevista naquela alínea.
Não deixará de registar-se, contudo, que, no âmbito da vigência do artigo 142.º
do Código Penal, na versão subsistente até 2007, a doutrina propendia para
considerar que, tal como os procedimentos referentes à comprovação da situação
de indicação, também os referentes à prestação do consentimento constituíam, não
apenas «meras formalidades», mas “verdadeiras condições de funcionalidade do
sistema”, pelo que a sua preterição implicaria a “ilicitude do acto abortivo”
(cfr. DAMIÃO DA CUNHA, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra, 1999,
I, 156).
Tal ponto de vista, inteiramente transponível para o domínio da aplicação da
alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, tenderá a levar à conclusão
de que só um consentimento válido e eficaz permitirá concluir pela licitude da
prática abortiva realizada no âmbito de tal previsão e que a validade e eficácia
do consentimento a prestar pela gestante dependem da realização de uma consulta
prévia nos exactos termos previstos no artigo 2.º da Lei n.º 16/2007.
Nesta perspectiva, os pressupostos materiais da consulta prévia regulada no
artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 contendem com a definição do crime.
Assim sendo, caberá perguntar: encontrar-se-ão tais pressupostos definidos na
Lei n.º 16/2007 ou terá esta, através do respectivo artigo 2.º, n.º 2,
encarregue uma portaria de os definir?
11.10.5. A resposta apontaria necessariamente neste último sentido se a
disciplina jurídica contida na Lei n.º 16/2007 se tivesse quedado pela previsão
constante da alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal, ou seja, se se
tivesse limitado a definir a informação cujo acesso deve ser facultado à grávida
no âmbito da primeira consulta como a “relevante para a formação da sua decisão
livre, consciente e responsável”, remetendo para portaria o preenchimento dessa
cláusula geral.
Assim não sucede, contudo.
No n.º 2 do artigo 2.º, estabelece-se qual é a informação a prestar para que ela
propicie a formação de uma decisão da gestante que mereça aqueles
qualificativos, descrevendo-se, em termos que deverão considerar-se taxativos e
fechados – a enunciação contida nas quatro alíneas que integram a norma não é
precedida da utilização do advérbio «designadamente» ou de outro de sentido
equivalente –, os conteúdos e as temáticas do conhecimento que àquela deve ser
proporcionado.
A modelação primária da consulta prévia encontra-se, assim, exaurientemente
traçada no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º16/2007, pelo que a remissão não
contempla a possibilidade de extensão ou redução do âmbito ou da densidade
informativos através de portaria. Os termos preconizados pelo reenvio
circunscrevem o objecto possível do acto regulamentar à execução técnica dos
dados normativos contidos na modelação legal definida previamente. Neste
sentido, à portaria apenas caberá executar tal conteúdo normativo, não sendo,
por isso, a mesma susceptível de o integrar praeter legem ou de enunciar, ela
mesma, critérios informativos adicionais e autónomos.
A correcta interpretação do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 16/2007 não o coloca,
pois, em conflito com o artigo 112.º, n.º 5, da Constituição, já que conduz a
que o mesmo seja entendido como contendo um reenvio normativo não proibido para
um acto com as características de um regulamento estritamente executivo da
disciplina normativa primária estabelecida integralmente em prévia norma legal
habilitante.
11.10.6. Mas, apesar da natureza meramente executiva da portaria, haverá,
ainda assim, violação do princípio da legalidade, na dimensão de reserva de lei
material, pela norma remissiva do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, ante o
disposto na alínea b), ou, mesmo, na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição?
De outro modo, ainda: a circunstância de o regime jurídico da interrupção
voluntária da gravidez incidir sobre matéria sob reserva de lei material nos
termos do artigo 165.º da CRP excluirá em absoluto a possibilidade de colocação,
através de norma legal remissiva, de certos dos seus aspectos sob intervenção de
normas regulamentares?
A Constituição não estabelece qualquer delimitação material entre o domínio
legislativo e o domínio regulamentar, nem fornece qualquer critério directo
susceptível de ser utilizado para o efeito (neste sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, ob. ult. cit., 501 e 671).
Deste ponto de vista, pode dizer-se que não existe um elenco de conteúdos
temáticos constitucionalmente subtraídos à possibilidade de virem a ser objecto
de normas regulamentares.
Tal subtracção ocorrerá na medida em que for determinada pelo funcionamento dos
limites constitucionais do poder regulamentar.
O primeiro desses limites é de ordem geral e diz respeito à inadmissibilidade
constitucional dos chamados regulamentos autónomos, ou seja, daqueles que não
carecem de fundamentar-se juridicamente numa específica lei anterior.
O princípio da primariedade ou da precedência de lei limita a admissibilidade
constitucional dos regulamentos aos chamados regulamentos pós-legislativos, ou
seja, àqueles que, contrariamente ao que sucede com os autónomos, supõem uma lei
prévia habilitante, ainda que, como sucede no caso dos regulamentos
independentes, esta seja uma pura norma de reenvio para o regulamento em termos
de neste vir a conter-se a disciplina inicial e primária.
O segundo desses limites diz respeito à reserva de lei material.
A matriz constitucional do relacionamento entre a lei e o regulamento cruza o
plano dos limites constitucionais da reserva de lei, permitindo identificar
distintos níveis de subordinação da actividade regulamentar à lei em que se
fundamenta.
Nesta perspectiva, o grau mínimo da escala é atingido na dimensão de reserva de
lei meramente formal – aqui a necessidade de lei prévia habilitante serve apenas
o objectivo de dar cumprimento ao princípio da precedência da lei, tornando
assim possíveis os regulamentos independentes – e o grau máximo nas matérias sob
reserva legal material: nos casos em que a Constituição prevê que só através de
lei pode regular-se determinada matéria, a lei não pode delegar tal competência
à actividade regulamentar, pelo que os únicos regulamentos admitidos são os
regulamentos estritamente executivos e instrumentais (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL
MOREIRA, ob. cit., 515). «O Executivo, neste domínio, só pode editar normas
inovatórias sob a forma de decretos-leis, mediante autorização da Assembleia da
República» (AFONSO QUEIRÓ, “Teoria dos Regulamentos”, Revista de Direito e de
Estudos Sociais, ano XXVII (1980), 1 s., 17).
11.10.7. Do enquadramento geral acabado de sintetizar resulta que, se a
reserva de lei constitui um limite ao poder regulamentar, esse limite não se
traduz na absoluta exclusão da possibilidade de edição, com fundamento em lei
prévia, de normas regulamentares. Traduz-se, sim, na proibição de regulação por
via regulamentar de quaisquer aspectos pertencentes à disciplina normativa
inicial ou primária e, correlativamente, na circunscrição do conteúdo possível
da incidência regulamentar aos aspectos técnicos ou secundários de um regime
normativo previamente estabelecido na lei.
A norma remissiva constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 significa
um reenvio para a portaria do estabelecimento de algum aspecto do regime
jurídico da interrupção voluntária da gravidez que possa considerar-se
pertencente ao âmbito da disciplina normativa primária?
Do princípio da legalidade na dimensão de reserva de lei material não pode
inferir-se que todos os aspectos atinentes à modelação do âmbito informativo da
consulta prévia, mesmo os de índole estritamente técnica, 'secundária' ou
executiva, tenham necessariamente de constar de lei.
Se com o princípio da legalidade na dimensão de reserva de lei seria
incompatível uma remissão cujos termos habilitassem uma normação secundária a
formular, quanto aos conteúdos e à dinâmica da consulta informativa, critérios
valorativos independentes e autónomos, não o será já um reenvio que habilite um
diploma de índole regulamentar a executar o conteúdo normativo preestabelecido
na própria norma de remissão – entendimento já expresso, por este Tribunal, a
propósito da relação entre a lei e o regulamento no âmbito das matérias sob
reserva de lei constantes das alíneas c) (Acórdão n.º 427/95) e i) (Acórdão n.º
451/2001) do artigo 165.º da Constituição.
Ora, conforme já se evidenciou, a norma remissiva do artigo 2.º, n.º 2, da Lei
n.º 16/2007 não se limita a remeter para portaria a definição do que seja a
“informação relevante para a formação da (…) decisão livre, consciente e
responsável” da gestante. Ao invés, estabelece, em termos esgotantes, os
conteúdos dessa informação, apenas delegando na portaria a respectiva
concretização técnica, não sendo, por isso, qualificável como norma em branco.
Quer isto significar que o conteúdo informativo da consulta não resulta da
portaria: os seus critérios encontram-se integralmente definidos na própria
norma remissiva constante de lei parlamentar, pelo que a remissão para a
portaria tem apenas o significado de delegação em normação regulamentar da
competência para o estabelecimento de aspectos técnicos e secundários dos
conteúdos informativos integradores da consulta prévia.
O regulamento tido em vista pela remissão é um regulamento estritamente
executivo, não independente, pelo que a reserva de lei consagrada no artigo
165.º, alíneas b) e c) da Constituição não é violada pelo segmento remissivo
constante do artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, norma que, em conformidade,
não deverá ser considerada inconstitucional.
B) - Pedido formulado no âmbito do processo n.º 1186/07 e respectivos
fundamentos.
12. Violação da autonomia regional
12.1. A apreciação da questão da inconstitucionalidade e ilegalidade das
normas impugnadas, por violação da autonomia legislativa, administrativa e
financeira regional, constitucional, estatutária e legalmente configurada,
inscreve-se no vasto contexto do relacionamento e articulação entre a legislação
nacional e a legislação regional.
Para além das normas do artigo 225.º, onde se cristaliza a indicação dos
fundamentos e do sentido e alcance da autonomia regional, a matriz
constitucional da regulação dessa matéria encontra-se nos artigos 112.º, n.º 4,
e 227.º, n.º 1, da CRP.
Dispõe o primeiro:
«Os decretos-legislativos têm âmbito regional e versam sobre matérias enunciadas
no estatuto político-administrativo da respectiva região autónoma que não
estejam reservadas aos órgãos de soberania, sem prejuízo do disposto nas alíneas
b) e c) do n.º 1 do art. 227.º».
Quanto ao artigo 227.º, n.º1, enuncia, entre os poderes das regiões autónomas, a
definir nos respectivos estatutos, os seguintes:
«a) Legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto
político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania; b)
Legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante
autorização desta, com excepção, entre outras, das previstas nas alíneas a) a c)
do n.º1 do art.165º; c) […]; d) Regulamentar a legislação regional e as leis
emanadas dos órgãos de soberania que não reservem para estes o respectivo poder
regulamentar».
O artigo 228.º, n.º 1, por seu turno, explicita o alcance da autonomia
legislativa das regiões autónomas, dispondo que ela «incide sobre as matérias
enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam
reservadas aos órgãos de soberania». O n.º 2 do mesmo preceito estabelece a
subsidiariedade da legislação nacional, na zona de concorrência com a regional,
nos seguintes termos:
«Na falta de legislação regional própria sobre matéria não reservada à
competência dos órgãos de soberania, aplicam-se nas regiões autónomas as normas
legais em vigor.».
Estes parâmetros de delimitação de competências legislativas entre os órgãos de
soberania e as regiões são directamente convocados pela forma como o requerente
estrutura o seu pedido. Segundo ele, na verdade, estaríamos em face de uma
violação da autonomia regional na medida em que a normação impugnada, em
consequência do respectivo âmbito de aplicação territorial, obriga o sistema
regional de saúde à prática da interrupção voluntária da gravidez nos termos
previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, não obstante
corresponder aquela a uma tarefa situada, do ponto de vista da sua regulação
jurídica, no âmbito da competência regional, uma vez que a «saúde» está
enunciada como matéria de interesse regional na alínea m) do artigo 40.º do
Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
12.2. A Lei n.º 16/2007 dispõe sobre a “Exclusão da ilicitude nos casos de
interrupção voluntária da gravidez”, estabelecendo o correspondente regime
jurídico.
Esse regime jurídico tem como elemento nuclear, como já sabemos, a revisão do
artigo 142.º do Código Penal e o aditamento ao elenco constante do respectivo
n.º 1 de uma nova previsão, através da qual é tornada não punível a interrupção
da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de
saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher
grávida, quando realizada, por opção desta, nas primeiras 10 semanas de
gravidez.
Na modelação da disciplina jurídica desta nova previsão de interrupção
voluntária da gravidez, a Lei n.º 16/2007 fixou pressupostos da não punibilidade
desse acto.
Parte significativa desses pressupostos prende-se com as condições de eficácia
do consentimento. A elas se refere o regime especial constante dos n.ºs 4,
alínea b), 5 e 6 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção do artigo 1.º da
Lei n.º 16/2007, segundo o qual o consentimento é prestado pessoalmente “em
documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo” ou, no caso de esta ser
“menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz”, pelo “representante legal, por
ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha
colateral”, podendo ser dispensado se não for possível obtê-lo em tais termos e
“a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência”, o que será
decidido pelo médico “em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que
possível, do parecer de outro ou outros médicos”. Nesse âmbito se situa também a
regra de subordinação da prestação do consentimento ao prévio decurso de um
período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da
primeira consulta (n.º 4, alínea b), do artigo 142.º do Código Penal), bem como
a conformação normativa da consulta no artigo 2.º, n.º 2.
Da modelação do sistema instituído pela Lei n.º16/2007 fazem ainda parte outros
componentes normativos abrangidos pelo objecto do pedido, designadamente os
relativos ao “dever de sigilo profissional”, compreendendo estes a sua imposição
aos médicos, demais profissionais de saúde e restante pessoal dos
estabelecimentos de saúde, oficiais ou oficialmente reconhecidos, em que se
pratique a interrupção voluntária da gravidez, relativamente a todos os actos,
factos ou informações de que tenham conhecimento no exercício das suas funções,
bem como incriminação da respectiva violação nos termos previstos nos artigos
195.º e 196.º do Código Penal (artigo 5.º).
Através da mobilização do conjunto dos elementos normativos acabados de
enunciar, o legislador ordinário procedeu à redefinição da protecção
jurídico-penal do bem vida intra-uterina.
Tal redefinição consistiu na ampliação integrada dos pressupostos negativos do
crime de aborto, incluindo, por isso, a par da tipificação dos elementos
normativos de contracção do âmbito de protecção da norma incriminadora, a
caracterização, nos seus múltiplos aspectos, das condições dessa contracção.
Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, é da exclusiva
competência da Assembleia da República, salvo autorização ao governo, legislar
sobre a “definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos
pressupostos, bem como processo criminal”.
Segundo consensualmente estabelecido na doutrina, “na competência para a
definição dos crimes está, necessariamente implícita, a competência para
estabelecer causas de justificação e a competência para descriminalizar” (JORGE
MIRANDA/RUI MEDEIROS, ob. cit., 535), pertencendo à “reserva da Assembleia da
República tanto a criminalização (ou a penalização), como a descriminalização
(ou despenalização)” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 3.ª ed., 672).
O regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007 situa-se no plano da
remodelação do âmbito de protecção de determinada norma incriminadora,
incidindo, por isso, sobre matéria reservada à competência da Assembleia da
República.
Tratando-se de matéria reservada à competência da Assembleia da República,
verifica-se o requisito de delimitação negativa da competência legislativa das
regiões fixado nos artigos 112.º, n.º 4 e 227.º, n.º 1, alíneas a) e b), da CRP
– o requisito consistente em se tratar de matéria não abrangida na reserva de
competência legislativa dos órgãos de soberania, quer na reserva absoluta da
Assembleia da República (artigos 161.º, 164.º e 293.º), quer na reserva relativa
da Assembleia da República (artigo 165.º), embora ressalvadas aqui as hipóteses
de concessão de autorização legislativa à Assembleia Legislativa da Região
(artigo 227.º, n.º 1, alínea b), 2.ª parte, da CRP).
12.3. A sediação do regime jurídico de “exclusão da ilicitude nos casos de
interrupção voluntária da gravidez” instituído pela Lei n.º 16/2007 no âmbito
material da «definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos
pressupostos, bem como processo criminal» não é posta em causa pela
circunstância de a contracção do sistema de protecção penal procedente do
aditamento da fattispecie constante da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do
Código Penal supor, como seu elemento de conformação, a intervenção dos
“estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos” e, na
perspectiva dessa intervenção, inscrever no sistema conteúdos que o arrastam
para uma zona de intercepção com o domínio normativo da “saúde”, esta
considerada matéria de “interesse específico” pela alínea m) do artigo 40.º do
Estatuto Político-administrativo da Região Autónoma da Madeira, na versão
aprovada pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto.
De um ponto de vista material, a disciplina jurídica instituída pela Lei n.º
16/2007 pertence à categoria normativa dos pressupostos da incriminação e esta
relação de pertinência não é desqualificada pela circunstância de a fattispecie
com que é restringido o âmbito de protecção da norma incriminadora implicar, de
acordo com a respectiva configuração normativa, a mobilização de elementos
procedentes de um plano pertencente ao domínio orgânico e funcional da “saúde”.
No contexto do regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007, a reconfiguração
do tipo penal pela via do aditamento de uma nova previsão de impunibilidade
assume o estatuto de elemento absorvente, ou seja, de elemento que, para efeitos
de classificação normativa dos conteúdos vinculativos editados, confere a sua
própria natureza a cada um dos demais elementos do conjunto a que pertence.
Tal conclusão é tanto mais evidente quanto certo é que os elementos contidos na
disciplina jurídica instituída pela Lei n.º 16/2007 susceptíveis de incidir
sobre a conformação da actividade dos agentes e organismos da saúde são
privativos do seu relacionamento com a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo
142.º do Código Penal, não ultrapassando a medida suposta por essa relação de
referência – a normação que para eles se contém é, deste ponto de vista,
absolutamente funcionalizada à “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção
voluntária da gravidez”.
O efeito polarizador que, no plano material, é exercido pela sua natureza de
definição dos pressupostos negativos do crime de interrupção voluntária da
gravidez e respectivas condições projecta-se, ainda, quanto à disciplina
jurídica instituída pela Lei n.º 16/2007, no plano da delimitação de
competências entre os órgãos de soberania e as regiões.
Decorre da jurisprudência deste Tribunal que o exercício do poder legislativo
das regiões autónomas, mesmo após 2004, se continua a enquadrar pelos
fundamentos da autonomia das regiões consagrados no artigo 225.º da CRP,
cumprindo-lhe, em face do disposto no n.º 4 do artigo 112.º, na alínea a) do n.º
1 do artigo 227.º e no artigo 228.º, nº 1, da Constituição, respeitar
cumulativamente três requisitos: i) restringir-se ao âmbito regional; ii)
estarem em causa as matérias enunciadas no respectivo estatuto
político?administrativo; iii) não incidir sobre matérias reservadas à
competência dos órgãos de soberania (cfr., entre outros, o Acórdão n.º
423/2008).
Assim, nos casos em que a matéria sobre que incida determinada disciplina
jurídica deva considerar-se simultaneamente incluída em alguma das categorias
elencadas nos artigos 164.º ou 165.º da Constituição e no catálogo enunciado no
estatuto da região, nunca existirá competência legislativa primária da região
para a edição de um regime normativo alternativo, uma vez que os requisitos a
que esta se encontra constitucionalmente sujeita são cumulativos. Neste caso, o
ser matéria reservada à competência dos órgãos de soberania sobrepõe-se à sua
enunciação no estatuto político?administrativo da região (cfr., por exemplo, o
Acórdão n.º 402/2008).
Quer isto significar que, ainda que a disciplina jurídica instituída pela Lei
n.º 16/2007 se situasse numa zona de verdadeira sobreposição – e não mera
intercepção – entre os domínios normativos respeitantes à “definição dos crimes,
penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo
criminal” e à “saúde”, sempre obstaria à competência legislativa primária da
região a verificação do requisito que, de acordo com a matriz constitucional de
relacionamento entre os órgãos de soberania e as regiões, delimita negativamente
essa competência.
Devendo concluir-se pela ausência de competência da Assembleia Legislativa da
Região Autónoma da Madeira para legislar sobre a matéria constante das normas
inseridas na Lei n.º 16/2007 que definem e conformam os pressupostos da
“exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez”, aquelas
aplicar-se-ão, nos seus precisos e integrais termos, a todo o território
nacional, incluindo as regiões.
Deste ponto de vista, tal aplicação apresenta-se, não apenas constitucionalmente
viável, mas constitucionalmente imperativa.
12.4. A vigência da Lei n.º 16/2007 em todo o território nacional, incluindo o
da Região Autónoma da Madeira, como resultado do exercício da competência
legislativa exclusiva da Assembleia da República, projecta-se em duas dimensões
aplicativas, com significado vinculante para os poderes regionais.
Corolário imediato de tal vigência é a manifesta falta de competência
legislativa regional para introduzir quaisquer variações no regime jurídico
estabelecido pela Lei n.º 16/2007. O que implica que a interrupção voluntária da
gravidez, quando ocorrer por acto praticado pelos serviços oficiais prestadores
de cuidados de saúde da Região Autónoma da Madeira, só poderá verificar-se nos
termos estabelecidos naquela Lei da Assembleia da República, encontrando-se
constitucionalmente vedada a possibilidade do estabelecimento, a coberto da
autonomia legislativa regional, de quaisquer outros ali não previstos. As
práticas médicas, clínicas e procedimentais, supostas pela realização da
interrupção voluntária da gravidez segundo o modelo definido naquela lei serão
também, vinculativamente, as seguidas nos estabelecimentos de saúde oficiais ou
oficialmente reconhecidos situados na região.
Em consequência da publicação da Lei n.º 16/2007 e do seu legítimo âmbito
territorial de aplicação, o princípio da não punibilidade da interrupção
voluntária da gravidez efectuada nos termos prescritos naquele diploma legal é
também aplicável no território regional. Nem o se da consagração de tal
princípio, nem o como da sua concreta conformação podem ser postos em causa por
acto legislativo da região. Isto porque, tratando-se de matéria reservada à
competência da Assembleia da República, relativamente à qual não pode sequer ser
conferida autorização legislativa às Assembleias Legislativas das regiões
autónomas (cfr. o artigo 227.º, n.º 1, alínea b), da CRP, a contrario), não
existe, nem poderá existir, competência legislativa regional concorrente, o que
retira o regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007 do âmbito de aplicação
do princípio da subsidiariedade consagrado no artigo 228.º, n.º 2, da CRP.
Daqui se segue que se encontra excluída da autonomia legislativa regional a
competência para editar normas que estabeleçam um regime jurídico alternativo ou
diferenciado em matéria de “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção
voluntária da gravidez”, ou mesmo que, relativamente a todos ou a certos dos
seus aspectos, introduzam especificações ou variações nos comandos normativos
que integram e conformam o modelo definido em lei da Assembleia da República.
Quando ocorrer nas regiões, a interrupção voluntária da gravidez não punível só
poderá ocorrer sob verificação dos fundamentos, condições e pressupostos
definidos na Lei n.º 16/2007, não podendo o poder regional, no uso da respectiva
competência legislativa, alterá-los, ampliá-los ou restringi-los.
12.5. Mas essa conclusão deixa de pé uma questão mais funda, situada não
apenas no plano normativo do tratamento jurídico-penal da interrupção voluntária
da gravidez, mas também no do preenchimento, por parte dos poderes regionais,
das condições materiais de efectiva realização da interrupção voluntária da
gravidez, de acordo com o regime de impunibilidade posto em vigor pela Lei n.º
16/2007.
Pergunta-se: decorrerá do âmbito territorial de aplicação da Lei n.º 16/2007 a
imposição aos estabelecimentos de saúde regionais, enquanto estabelecimentos
oficiais, da prática do conjunto dos actos integrativos ou conformadores da
interrupção voluntária da gravidez, em termos penalmente não sancionáveis, de
acordo com o previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal,
introduzida pelo artigo 1.º daquele diploma?
Vimos já que a aplicação às regiões do regime jurídico de “exclusão da ilicitude
nos casos de interrupção voluntária da gravidez” instituído pela Lei n.º16/2007
significa, desde logo, que esse regime vigorará também aí, sendo, por
consequência, também aí juridicamente possível a interrupção da gravidez
efectuada por médico, ou sob a sua direcção, e com respeito das demais condições
fixadas naquele diploma, sem punição penal.
Mas a questão agora é outra. Já não se trata de ponderar a possibilidade
jurídica de levar à prática, nas regiões, a interrupção voluntária da gravidez,
nas exactas condições e com a mesma ausência de efeitos penalizantes que
decorrem da Lei n.º 16/2007. Assente esta possibilidade, o que agora se
equaciona interrogativamente é se a vigência, nas regiões, da Lei n.º 16/2007
importa a obrigatoriedade, para os serviços integrados no sistema regional de
saúde, da prática dos actos preparatórios e executivos da interrupção voluntária
da gravidez correspondente à previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do
Código Penal.
Para uma resposta a esta questão, há que atentar, em primeiro lugar, no que se
encontra expresso no artigo 3.º da Lei n.º 16/2007.
Sob a epígrafe “Organização dos serviços”, dispõe-se aí o seguinte:
«1 - O Serviço Nacional de Saúde deve organizar-se de modo a garantir a
possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez nas condições
e nos prazos legalmente previstos.
2 - Os estabelecimentos de saúde oficiais ou oficialmente reconhecidos em que
seja praticada a interrupção voluntária da gravidez organizar-se-ão de forma
adequada para que a mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente
previstos.»
O Serviço Nacional de Saúde é, nesta norma, apontado como o destinatário do
dever de «organizar-se de modo a garantir a possibilidade de realização da
interrupção voluntária da gravidez nas condições e nos prazos legalmente
previstos».
A questão que então se levanta é a de saber se os serviços regionais de saúde se
integram ou não institucionalmente no Serviço Nacional de Saúde.
Os serviços regionais de saúde fazem parte do “sistema de saúde” definido no n.º
1 da Base XII da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 48/90, de 24 de
Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro,
como sendo constituído pelo «Serviço Nacional de Saúde e por todas as entidades
públicas que desenvolvam actividades de promoção, prevenção e tratamento na área
da saúde, bem como por todas as entidades privadas e por todos os profissionais
livres que acordem com a primeira a prestação de todas ou de algumas daquelas
actividades».
Na medida em que pertencem à categoria das “entidades públicas que desenvolv[em]
actividades de promoção, prevenção e tratamento na área da saúde”, os serviços
regionais de saúde fazem parte do “sistema de saúde”.
Os serviços regionais de saúde não integram, porém, o Serviço Nacional de Saúde,
como se pode concluir do n.º 2 da Base acima citada. Aí se estabelece que o
Serviço Nacional de Saúde abrange as “instituições e serviços oficiais
prestadores de cuidados de saúde dependentes do Ministério da Saúde”, sendo que
essa relação de dependência não se verifica relativamente aos serviços regionais
de saúde.
Conforme estabelecido na Base VIII da Lei de Bases da Saúde, nas Regiões
Autónomas dos Açores e da Madeira, a política de saúde, não obstante subordinada
aos princípios estabelecidos pela Constituição da República e pela própria Lei
de Bases da Saúde, é “definida e executada pelos órgãos do governo próprio” das
regiões.
Em consonância com tal previsão, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira, através do Decreto Legislativo Regional n.º 4/2003/M (DR, I Série-A, de
7 de Abril de 2003), aprovou o Estatuto do Sistema Regional de Saúde.
De acordo com o disposto no respectivo artigo 6.º, constituem elementos do
Sistema Regional de Saúde, nomeadamente, os seguintes: a) O Serviço Regional de
Saúde; b) Outros serviços e organismos dependentes da secretaria regional
responsável pela área da saúde; c) As autoridades de saúde; d) Os subsistemas de
saúde; e) As instituições particulares de solidariedade social; f) As pessoas
colectivas, com ou sem fim lucrativo, desde que intervenham no domínio da saúde;
g) Os profissionais de saúde em exercício individual.
O Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira foi criado pelo
Decreto Legislativo Regional n.º 9/2003/M, (DR, I Série-A, de 7 de Abril de
2003), que aprovou o respectivo Regime e Orgânica. (DR, I Série-A, de 27 de Maio
de 2003).
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Regime e Orgânica do Serviço
Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, este «é dotado de autonomia
administrativa, financeira e patrimonial e de natureza de entidade pública
empresarial e integra o Hospital da Cruz de Carvalho, o Hospital dos
Marmeleiros, o Hospital Dr. João de Almada, os centros de saúde já instalados e
em funcionamento, o Laboratório de Saúde Pública e os estabelecimentos públicos
de saúde que vierem a ser criados após a entrada em vigor deste diploma».
Segundo o estabelecido no n.º 1 do artigo 5.º do mesmo Regime, o Serviço
Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira “está sujeito à tutela do membro
do Governo Regional responsável pela área da saúde”.
Do enquadramento exposto, retira-se, assim, que as instituições e serviços
oficiais prestadores de cuidados de saúde existentes na Região Autónoma da
Madeira integram o Serviço Regional de Saúde, o Sistema Regional de Saúde e o
Sistema de Saúde, mas encontram-se excluídos do Sistema Nacional de Saúde.
Na medida em que assim é, pode concluir-se que o comando directo constante do
artigo 3.º, n.º 1, da Lei n. 16/2007, não interfere com os serviços oficiais
prestadores de cuidados de saúde existentes na Região Autónoma da Madeira. No
âmbito deste preceito, esses serviços apenas se encontram abrangidos pelo dever
estabelecido pelo respectivo n.º 2, ou seja, pelo dever de, quando aí for
praticada a interrupção voluntária da gravidez, se organizarem «de forma
adequada para que a mesma se verifique nas condições e nos prazos legalmente
previstos». Dever que, aliás, é perfeitamente consonante com a inviabilidade
constitucional de uma modificação ou eliminação desse regime, por parte dos
órgãos legislativos regionais.
12.6. Mas a conclusão a que chegámos, quanto ao universo dos destinatários do
n.º 1 do artigo 3.º, não significa que os estabelecimentos de saúde integrados
nos serviços regionais de saúde fiquem libertos de qualquer injunção legal, no
que tange à garantia da efectivação por médico, ou sob a sua direcção, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, da interrupção
voluntária da gravidez, e de efectivação em termos que assegurem a sua
impunibilidade.
De facto, não pode ficar na esfera da liberdade decisória desses serviços a
realização ou não das prestações adequadas à interrupção voluntária da gravidez,
por opção da mulher, justamente porque a utilização dessas prestações integra as
condições legais de despenalização desse acto – despenalização que, como vimos,
está subtraída à competência legislativa regional. Se essas prestações não são
alheias ao bem da “saúde”, a verdade é que elas apresentam a especificidade
singularizante de se constituírem como elementos de um Tatbestand de afastamento
da punição penal, não se confundindo com os cuidados de saúde preventivos ou
curativos de doença.
Os “serviços de saúde” regionais não são aqui mobilizados com qualquer dessas
duas finalidades, que, em regra, são as suas, mas para prestações constitutivas
da situação prático-funcional de que depende a não sujeição a sanção penal das
mulheres que voluntariamente interrompam a gravidez – regime que, uma vez
editado, deve ter aplicação universal, em condições de igualdade, a todas as
mulheres que pretendam realizar aquele acto, independentemente da zona do
território do Estado onde residam. As prestações dos estabelecimentos de saúde
são aqui indissociáveis da praticabilidade do regime de despenalização, não
podendo, por isso, ser encaradas e tratadas autonomamente, sem ter em conta o
modo como interferem, quanto à sua efectivação e conformação, na possibilidade
de transposição desse regime para a realidade social.
A disponibilização dessas prestações requer medidas organizatórias, medidas de
preparação logística, de coordenação e emprego de recursos humanos e técnicos e
de fixação de regras e procedimentos funcionalmente disciplinadores.
Também quanto a elas não gozam os estabelecimentos que se integram nos serviços
regionais de saúde de inteira liberdade, pois devem organizar-se por forma a que
a interrupção voluntária da gravidez “se verifique nas condições e nos prazos
legalmente previstos” (n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 16/2007).
O que eles não estão é sujeitos às directrizes emanadas, a este propósito, pelos
órgãos dirigentes do Serviço Nacional de Saúde, pois a este não pertencem.
Estando finalisticamente vinculados a um resultado – o de garantir os
procedimentos e condições apropriados à realização, sem punição, da interrupção
voluntária da gravidez, no quadro da hipótese aberta por uma norma de direito
penal, a alínea e) do n.º 1 da artigo 142.º do respectivo código – dispõem,
todavia, da autonomia organizativa compatível com a sua consecução.
E uma certa margem de autonomia subsiste, não obstante aquela vinculação, a
nível dos concretos modos organizativos e operativos, de carácter mais
“regulamentar”. No exercício dessa autonomia, poderão os serviços regionais
fazer reflectir as características específicas da região, no que diz respeito,
v. g., à realidade social, extensão do território, unidades e pessoal
disponíveis, ou ao nível estimado da procura.
A lei da República deixou à autonomia regional aquilo que constitucionalmente
podia (e devia) deixar, a saber, a autonomia organizativa quanto aos aspectos
não predeterminados pela observância das condições legais. Exactamente os
aspectos regulamentares atinentes à fixação concreta das formas modais de
cumprir o programa normativo de despenalização (necessariamente de âmbito
nacional), coenvolvendo opções em que nenhum dos termos contenda com a
efectividade de uma oferta prestativa que permita o preenchimento dos
pressupostos legais da aplicação daquele regime. Só esses aspectos, dentro de
uma área de normação bifrontal, em que determinada organização dos serviços de
saúde serve especificamente à possibilitação da interrupção voluntária da
gravidez sem punição, não caem na órbita do direito penal.
Outra interpretação roubaria aplicabilidade, no território das regiões, à alínea
e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, com ofensa da unidade do Estado,
que o artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP também quis, neste domínio,
assegurar, na medida em que afastou a competência legislativa regional.
12.7. A leitura que acabámos de fazer depara, prima facie, com um obstáculo
de monta: o disposto no artigo 8.º da Lei n.º 16/2007.
Esta norma remete para o Governo a regulamentação da lei, fixando, para o
efeito, o prazo máximo de 60 dias. E, efectivamente, essa regulamentação foi
editada, dando corpo à Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
Esta portaria, para além de reproduzir pontos do regime legal, complementa-o com
a disciplina das medidas organizatórias e procedimentais tidas por apropriadas à
implementação do disposto naquele diploma.
Da norma do artigo 8.º e da falta de idêntico comando endereçado à entidade
regional de saúde competente poder-se-ia concluir que a Lei n.º 16/2007 reserva
para o Governo, em exclusivo, o poder regulamentar, nesta matéria. Ora, como é
no âmbito do exercício desse poder – ainda que com os limites de ele ter por
objecto um regulamento de execução –, que podem ser normativamente moldados os
aspectos organizativos, ficaria irremediavelmente prejudicada, a ser assim, uma
intervenção conformadora, neste plano, dos poderes regionais. O que
consubstanciaria uma lesão da autonomia legislativa e administrativa das regiões
autónomas.
Mas a norma do artigo 8.º não deve ser lida como importando uma reserva de poder
regulamentar governamental. Ela contém uma imposição de regulamentação ao
Governo, necessária para assegurar a aplicabilidade da Lei n.º 16/2007. Mas nada
permite concluir, numa inferência a contrario, que ela visa também eliminar a
faculdade de intervenção da Assembleia Legislativa das regiões, ao abrigo da sua
competência própria. A previsão específica de uma faculdade de regulamentação,
neste domínio, não era necessária, garantida que ela está pela competência
genérica de que, à partida, em matéria de organização dos serviços de saúde, os
órgãos regionais dispõem (em tudo o que não contender com o regime primário de
despenalização, fixado na Lei n.º 16/2007).
Não estando abrangida pelo dever de regulamentação fixado no artigo 8.º da Lei
n.º 16/2007, mas conservando, dentro desse limites, os seus poderes próprios de
intervenção regulamentadora, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da
Madeira não fica obrigada a aplicar as normas de carácter organizatório e
procedimental da portaria, uma vez que, quanto a estas dimensões, pode exercer a
sua competência de regulamentação.
Sendo assim, a disciplina dos aspectos organizativos contida na portaria só se
aplicará na Região Autónoma da Madeira subsidiariamente, em consequência da
inércia reguladora das instâncias regionais, que, a todo o tempo, podem tomar
iniciativas de conformação dessas matérias em sentido não coincidente com aquela
disciplina, ainda que, necessariamente, compatível com o disposto na Lei n.º
16/2007.
E, nesse pressuposto, não há qualquer violação da autonomia regional, pelo que
não tem fundamento o juízo de inconstitucionalidade que, a propósito do regime
em apreço, se pretendia ver emitido nos presentes autos.
12.8. As normas que integram o bloco constituído pelos artigos 1.º – este na
parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º,
5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos
1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º,
17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de
21 de Junho, não violam qualquer parâmetro normativo recondutível à autonomia
legislativa, administrativa e financeira regional, constitucional, estatutária e
legalmente configurada.
Nessa medida, não deverão ser declaradas inconstitucionais e/ou ilegais.
13. Violação do direito de audição prévia das regiões autónomas
13.1. A questão de inconstitucionalidade que é suscitada pressupõe a
confrontação das normas da Lei n.º 16/2007 contestadas e do correspondente
processo legislativo com o disposto no artigo 229.º, n.º 2, da Constituição,
segundo o qual 'os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente a questões
da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo
regional'.
Este preceito não sofreu alteração de redacção ao longo das diversas revisões
constitucionais – apenas transitou do n.º 2 do artigo 231.º originário para a
numeração actual, no âmbito da quarta revisão (Lei Constitucional n.º 1/97 de 20
de Setembro) –, do mesmo decorrendo o dever de os órgãos de soberania ouvirem os
órgãos de governo próprio das Regiões relativamente a questões da sua
competência respeitantes às regiões autónomas.
Correlativamente, o artigo 227.º, n.º 1, alínea v), da Constituição, confere aos
órgãos de governo próprio das regiões o direito a pronunciarem-se, por sua
iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da
competência destes que lhes digam respeito.
O problema concernente à determinação da extensão do direito constitucionalmente
reconhecido às Regiões pelos artigos 227º n.º 1 alínea v) e 229º nº 2 da
Constituição de serem ouvidas pelos órgãos de soberania relativamente às
questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas encontra-se já
abundantemente tratado na jurisprudência deste Tribunal.
Numa alusão à constância da doutrina a tal propósito seguida, escreveu-se no
Acórdão n.º 670/99 (DR, II Série, de 28 de Março de 2000) o seguinte:
«[...]
Trata-se de uma questão que já foi analisada por diversas vezes, quer pela
Comissão Constitucional, quer por este Tribunal, não se encontrando razão para
afastar a orientação adoptada de forma constante.
Com efeito, desde o Parecer nº 20/77 da Comissão Constitucional (Pareceres da
Comissão Constitucional, 2.º vol., pág. 159 e segs.) que se entendeu que 'são
questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões
autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional:
– respeitem a interesses predominantemente regionais;
– ou pelo menos mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca
à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em
vista a relevância de que se revestem para esses territórios'.
[…] Esta orientação – a de que só pode considerar-se 'questão respeitante às
Regiões Autónomas' para o efeito previsto no (actual) nº 2 do artigo 229.º da
Constituição, a que, embora englobada na competência dos órgãos de soberania,
revele alguma 'especificidade ou pecularidade relevante no que concerne a essas
regiões' (Parecer n.º 2/82, Pareceres cit.., 18.º vol., pág. 103 e segs.) – foi
seguida posteriormente pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos seus
acórdãos nºs 42/85, 284/86 e 403/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º
vol., pág. 181 e segs., 8º vol., pág. 169 e segs. e 13º vol., I, pág. 465 e
segs., respectivamente).»
Conforme se escreveu no Acórdão n.º 174/2009, «esta doutrina continuou a ser
acolhida em Acórdãos posteriores (por exemplo, n.ºs 684/99, 529/2001 e
243/2002). Já depois da sexta revisão constitucional (Lei Constitucional n.º
1/2004 de 24 de Julho), o Tribunal decidiu, no Acórdão n.º 551/2007, que 'a
expressão respeitantes às regiões autónomas constante do n.º 2, do artigo 229.º,
da Constituição deve (continuar a) ser interpretada no sentido de se tratar de
matérias que, apesar de serem da competência dos órgãos de soberania, nelas os
interesses regionais apresentam particularidades por comparação com os
interesses nacionais, quer devido às características geográficas, económicas,
sociais e culturais das regiões, quer devido às históricas aspirações
autonomistas das populações insulares, que justificam a audição dos órgãos de
governo regional.»
Explicitando o critério uniformemente seguido quanto à determinação do critério
para a audição dos órgãos regionais, prosseguiu o Tribunal no referido Acórdão:
«A obrigação que, neste domínio, a Constituição faz impender sobre os órgãos de
soberania decorre do dever de cooperação a que o actual artigo 229.º da
Constituição submete conjuntamente a actividade dos órgãos de soberania e de
governo regional para concretização do 'desenvolvimento económico e social' das
regiões e para 'correcção das desigualdades derivadas da insularidade'. O
Tribunal sempre avaliou caso a caso a existência do falado dever, relacionando-o
com as circunstâncias que, em concreto, podem revelar um especial interesse das
Regiões na disciplina da matéria em causa. Este critério continua a extrair-se
do citado n.º 2 do artigo 229º da Constituição, norma que, como já se fez notar,
se manteve inalterada desde a versão inicial da Constituição (artigo 231.º, n.º
2). E é de continuar a admitir, como fez o aludido Acórdão 670/99, e o já citado
Acórdão n.º 551/2007, que 'o direito de audição constitucionalmente garantido às
Regiões Autónomas pelo n.º 2 do artigo 229.º da Constituição se refere a actos
que, sendo da competência dos órgãos de soberania, incidam de forma particular –
diferente daquela em que afectam o resto do País – sobre uma ou ambas as
Regiões, ou versem sobre interesses predominantemente regionais.»
13.2. Tendo-se já concluído no sentido de que a matéria relativa à aprovação do
regime jurídico da “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da
gravidez” se inclui na competência dos órgãos de soberania, resta apurar se a
Lei n.º 16/2007, na medida em que institui o referido regime, incide de forma
particular sobre a Região Autónoma da Madeira.
Continuando a seguir de perto a fundamentação constante do Acórdão n.º174/09,
pode dizer-se que, também aqui – à semelhança do caso ali tratado – a Assembleia
requerente solicita a apreciação, na sua (quase) globalidade, de um determinado
regime jurídico – o regime jurídico da “exclusão da ilicitude nos casos de
interrupção voluntária da gravidez”, instituído pela Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril, e regulamentado pela Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
É, porém, seguro que o regime jurídico da “exclusão da ilicitude nos casos de
interrupção voluntária da gravidez” não respeita à Região Autónoma da Madeira de
forma particular, tratando-se antes de uma disciplina jurídica que, pela sua
natureza e pelo seu objecto, respeita, por igual, a todo o País, sem
diferenciação de parcelas ou regiões.
Justificar-se-ia, portanto, que o Presidente da Assembleia
Legislativa da Região Autónoma da Madeira, ao invocar a omissão do dever de
audição, identificasse o motivo ou as circunstâncias de onde em concreto
sobressai um interesse especial da Região quanto ao tratamento legislativo desta
matéria. Todavia, o pedido não apresenta qualquer razão que demonstre que o
regime jurídico de “exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da
gravidez”, 'respeite a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos,
mereça, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência
nas regiões, em função das particularidades destas'.
Porque a existência de tal interesse, para além de não invocada pelo Requerente,
não é manifestamente configurável em relação a qualquer uma das questionadas
normas da Lei n.º 16/2007, deve concluir-se no sentido de que não houve qualquer
violação do dever de audição dos órgãos de governo regional, consagrado no
artigo 229.º, n.º 2, da Constituição.
13.5. Também com fundamento na violação do direito, constitucional e legal, de
audição prévia das Regiões Autónomas, não deverá ser declarada a
inconstitucionalidade do bloco normativo constituído pelos artigos 1.º – este na
parte em que acrescenta a nova alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código
Penal, e dá origem às restantes normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º,
5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos
1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º,
17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º, 23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de
21 de Junho.
III – Decisão
Pelo exposto, o Tribunal decide:
a)- Não declarar a inconstitucionalidade formal da Lei n.º 16/2007, de 17 de
Abril;
b)- Não declarar a inconstitucionalidade material das normas constantes dos
artigos 1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º
4 do artigo 142.º do Código Penal, 2.º, n.º 2, 6.º, n.º 2, todos da Lei n.º
16/2007:
c)- Não declarar a inconstitucionalidade, à luz do princípio da autonomia
regional e do direito de audição prévia das regiões autónomas, do bloco
normativo constituído pelos artigos 1.º – este na parte em que acrescenta a nova
alínea e) ao n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, e dá origem às restantes
normas da nova versão do mesmo –, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 7.º, e 8.º, todos da Lei
n.º 16/2007, de 17 de Abril, bem como dos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º,
7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 21.º, 22.º,
23.º e 24.º, estes da Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de Junho.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
Carlos Fernandes Cadilha
Maria João Antunes
João Cura Mariano
José Borges Soeiro (Vencido, de harmonia com a declaração de voto que junto).
Benjamim Rodrigues (Vencido quanto à pronúncia constante da alínea b) da
decisão)
Carlos Pamplona de Oliveira – Vencido, conforme declaração
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de voto junta.
Tem voto de vencida a Conselheira Maria Lúcia Amaral, que não assina por não
estar presente, tendo junto a respectiva declaração de voto
O Relator
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti, relativamente ao decidido sob a alínea B) do acórdão que fez
vencimento, pela seguinte ordem de razões:
a) Considero que o direito ao desenvolvimento da personalidade da mulher e a
protecção da vida intra-uterina não podem conduzir a que, num balanceamento
entre os dois valores constitucionais, numa síntese que procure a desejável
“concordância prática”, se possa permitir uma desprotecção da vida intra-uterina
nas primeiras dez semanas.
Embora se considere que a protecção dessa vida intra-uterina não corresponde a
um direito subjectivo do feto e, como tal, a um direito fundamental, porquanto
este só se encabeça com o nascimento, o certo é que esse bem é, também, objecto
de protecção constitucional, objectivamente considerada. Com efeito, a vida
intra-uterina conduz, num projecto de vida, ao início de um novo ser que,
naturalmente, comporta a afirmação do princípio da dignidade da pessoa humana.
O reconhecimento da dignidade constitucional da vida intra-uterina não impede,
no entanto, que se considere que a sua tutela seja menos forte do que a vida das
pessoas já nascidas e que possa conhecer diversas gradações, consoante a fase de
desenvolvimento do feto.
Nesta perspectiva, o artigo 24.º da CRP, para além de garantir a todas as
pessoas um direito fundamental à vida, subjectivado em cada indivíduo, integra,
igualmente uma dimensão objectiva, em que se enquadra a protecção da vida humana
intra–uterina, o qual constitui uma verdadeira imposição constitucional.
Assim, não será consentido, por contraditório com o dever do Estado em tutelar a
referida vida intra-uterina, admitir que na fase inicial do desenvolvimento do
feto, ou seja nas primeiras dez semanas, se adopte uma solução legal de menor
protecção, dando prevalência à “liberdade de opção” da mulher grávida, podendo
interromper a gravidez sem o recorte relevante de qualquer razão justificativa,
quedando-se o Estado numa posição neutral, sem uma “intervenção mínima”, em
manifesta postura de “défice” de tutela.
Com efeito, o cumprimento desse dever por parte do Estado está sujeito a uma
medida “mínima”, sendo violada a “proibição de insuficiência”, quando as normas
de protecção fiquem aquém do constitucionalmente exigível.
b) Com a Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril, tentou-se, num diverso paradigma,
encontrar o ponto de equilíbrio entre o sistema das “indicações”, em vigor no
nosso ordenamento jurídico até à entrada em vigor da referida lei, com o sistema
dos “prazos”.
Contudo, não se logrou alcançar esse objectivo, porquanto no sistema dos prazos,
para que não se pudesse considerar o Estado como neutral, e sem se revelar
minimamente interventor, em reposta à dignidade constitucional que merece a vida
intra-uterina e ao inerente dever constitucional de protecção que decorre da Lei
Fundamental, teria de assumir que o aconselhamento prévio à mulher grávida fosse
não apenas meramente informativo, mas igualmente dissuasor, orientado para a
defesa da vida, não se desconsiderando, naturalmente a liberdade de opção e
decisão da mulher, encorajando-a a prosseguir com a gravidez, sem que, e
aceita-se sem reservas, tal aconselhamento fosse “vinculante”, isto é,
impositivo de uma solução contrária à desejada pela grávida, como se afirma no
acórdão que fez vencimento.
Afigura-se-me, pelo exposto, que foi violada a norma constante do artigo 24.º,
n.º 1 da CRP.
c) Votei vencido, também, no que se reporta à norma constante do artigo 6.º, n.º
2, da Lei nº 16/2007, de 17 de Abril, na medida em que exclui das consultas
previstas no artigo 142.º, n.º 4, alínea b) do Código Penal, os médicos
objectores de consciência.
A consulta na qual se encontram impedidos de participar os médicos que invoquem
o estatuto de objector de consciência visa facultar à mulher grávida o acesso à
informação para a “formação da sua decisão livre, consciente e responsável”.
Conforme já se salientou supra, ao anterior sistema de indicações sucedeu um
sistema de prazos de aconselhamento obrigatório de tipo meramente informativo,
assim designado por oposição ao sistema de prazos de aconselhamento obrigatório
de tipo dissuasor orientado para encorajar o prosseguimento da gravidez.
Essa consulta, como também já se salientou, é manifestamente neutral, optando-se
pela ideia de que a grávida deve ser institucionalmente preservada de qualquer
forma de ingerência no desenvolvimento do seu processo decisório, nomeadamente
que essa mesma ingerência não possa vir a ser exercida do interior do sistema e
através dele, por iniciativa daqueles que o legislador presume que em tal
sentido operariam – o da preservação da vida intra-uterina – se bem que tal
intenção se encontre arredada pelo desenho legal da aludida consulta.
Nesta perspectiva, o impedimento lançado sobre os médicos objectores de
consciência da possibilidade da prática de actos para os quais se encontram
profissionalmente habilitados, traduz-se numa discriminação negativa, capaz de
conflituar com o princípio da igualdade.
É sabido que quando ocorre um tratamento desigual impõe-se uma justificação
material da desigualdade, sob pena de poder considerar-se como desnecessária,
inadequada e desproporcional à satisfação do respectivo objectivo.
Na situação em apreço, ainda que implicitamente, o legislador parte como que de
uma presunção segundo a qual os médicos objectores de consciência que optassem
por intervir em tal consulta tenderiam a realizá-la em termos desconformes com
os legalmente previstos, introduzindo desvios susceptíveis de comprometer a
sustentação das opções do aludido legislador.
Essa discriminação negativa, que incide sobre os médicos objectores revela-se
excessiva, e, por isso, desproporcionada, em relação à finalidade prosseguida,
mesmo consistindo esta na intenção de preservar as características meramente
informativas do modelo da consulta, legalmente preconizado.
Exprime, ainda, no contexto do regime jurídico da interrupção voluntária da
gravidez, uma desqualificação desproporcionada e susceptível de afrontar o
princípio da igualdade, na vertente que proíbe a realização de discriminações.
Esta opção legislativa, constante do artigo 6.º, n.º 2 da Lei nº 16/2007, viola,
em meu entendimento, o princípio da igualdade consagrado na artigo 13.º da CRP,
na dimensão respeitante à proporcionalidade contida na vertente da proibição de
discriminações.
José M. Borges Soeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votei vencido quanto à pronúncia constante da alínea b) do
acórdão.
Na verdade, estou firmemente convencido de que a solução reclamada
pela Constituição é a da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos
1.º, na parte em que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do n.º 4 do
artigo 142.º do Código Penal, artigos 2.º, n.º 2 e 6.º, n.º 2, todos da Lei n.º
16/2007, de 17 de Abril.
2 – Antes de mais, não posso deixar de passar em branco a
insensibilidade demonstrada no acórdão pelos votos de vencido apostos aos
acórdãos que até hoje foram proferidos no âmbito da matéria da “despenalização
do aborto”, expressivos, quer no seu número, quer no seu valor científico,
omitindo-se a menção de que os fundamentos das decisões anteriores proferidas
pelo Tribunal Constitucional foram sempre fruto de maiorias tangenciais.
O discurso argumentativo do acórdão cria a aparência de que o estado
actual da questão corresponde a um simples desenvolvimento da axiologia
jusfundamental, tal como ela foi sendo exprimida logo desde o Acórdão n.º 25/84,
e de que não houve sobre ela um largo e profundo debate constitucional.
3 – Sobre o sentido do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa continuo a pensar nos termos constantes da declaração de
voto aposta no Acórdão n.º 617/06, que se pronunciou sobre a constitucionalidade
e legalidade da realização do Referendo efectuado no dia 11 de Fevereiro de
2007.
Escrevi, então, nessa sede:
“5.1 – […]
Não irei expor longamente os fundamentos jurídico-constitucionais com base nos
quais se considera que a vida humana uterina tem consagração e protecção
constitucionais nos termos do art.º 24.º, n.º 1, da nossa Lei fundamental. E não
o farei, exactamente, porque, quer o Acórdão n.º 288/98, ao qual constantemente
se arrimou, aí de modo inequívoco, quer o presente Acórdão, não deixam de
pressupor, ainda que, neste, de forma não tão impressiva, que a vida uterina tem
protecção constitucional, correspondendo a um direito ou garantia fundamentais.
Depois, porque acompanho, no essencial, os votos apostos àquele Acórdão n.º
288/98 pelos senhores conselheiros que votaram vencido e que aqui se recuperam.
Nesse ponto – e com naturais reflexos, como não poderá deixar de ser quanto à
solução desta questão – a nossa discordância com o acórdão reside,
essencialmente, na intensidade de protecção jurídico-constitucional que se
entende derivar de tal preceito, quer no que importa à dúvida, nele concitada,
sobre a titularização/subjectivação do direito à vida humana no art.º 24.º, n.º
1 da CRP, quer na resposta a dar quando esse direito ou garantia fundamentais
entrem em conflito com outros direitos da mulher, mormente, a agora designada
“liberdade de manter um projecto de vida” “como expressão do livre
desenvolvimento da personalidade”.
Não obstante isso – e com referência à metodologia seguida – não é de passar em
branco que o acórdão, ansiando, porventura, acentuar os argumentos que, na sua
óptica, abonarão a favor da não inconstitucionalidade de uma solução jurídica
perspectivada na senda de uma resposta afirmativa ao referendo, discorre,
essencialmente, sobre um diálogo de ponderação entre os direitos fundamentais,
susceptíveis de entrarem em conflito, a partir de uma “configuração mais
radical” do âmbito da protecção da vida humana, como se a solução passasse, no
caso concreto, por essa linha de protecção, esbatendo a existência, no direito
vigente, de causas de desculpabilização e de justificação que dão expressão, num
plano autónomo e exterior, às exigências demandadas, no caso, por um juízo
ponderativo de concordância prática entre os direitos tidos como estando em
conflito.
Ao contrário do suposto como elemento de argumentação, não se afirma, nem se viu
alguma vez defendido na ciência jurídica, que, tendo por referência a vida
pré-natal e pós-natal, “tenha de existir uma protecção penal idêntica em todas
as fases da vida”, como postulado ou decorrência da inviolabilidade da vida
humana ou que haja “uma argumentação a favor da inconstitucionalidade [da
resposta afirmativa ao referendo] que nivele a vida em todos os seus estádios”.
Tal princípio constitucional não demanda que a protecção penal da vida humana
tenha de ser idêntica, em intensidade, em todo o continuum da vida e em todas as
circunstâncias de facto.
O que o princípio da inviolabilidade da vida humana reclama é que a violação do
direito à vida (uterina e pós-uterina) tenha, sempre, protecção penal, valendo,
dentro dos diferentes níveis dessa protecção, os princípios gerais de direito
criminal, de matriz, igualmente, constitucional, da justificação do facto, da
culpa e do estado de necessidade.
Assim, não está o legislador ordinário impedido, em geral, de conformar
diferentes níveis de protecção criminal, expressos, maxime, no recorte do facto
ilícito típico e da pena, para os diferentes momentos e circunstâncias do
continuum em que se desenvolve a vida humana, diferenciando, dentro dele, a vida
intra-uterina da pós-uterina. O que a Constituição reclama é que, salvo a
existência de causas de desculpabilização ou de justificação, a vida seja
penalmente protegida.
Em segundo lugar, o argumento de que não existe “uma linha de inflexível
necessidade lógica”, como afirma o acórdão, entre a definição da inviolabilidade
da vida humana e a intervenção penal, “nomeadamente pela interferência de
perspectivas de justificação, de desculpa ou ainda de afastamento da
responsabilidade devido “à necessidade da pena”, assenta sobre uma patente
incongruência lógica, dado que as dimensões alegadas para afastar a intervenção
penal são já institutos que pressupõem, necessariamente, a existência dessa
protecção penal.
Em terceiro lugar, a convocação do entendimento seguido no referido Parecer do
Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, segundo o qual na mente
dos constituintes do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não caberia a protecção da vida
uterina só teria sentido para quem – posição que parece não ser, de modo
assumido, a do acórdão e não é, seguramente, a do Ac. 288/98, em que
constantemente se abona, nem dos votos de vencido a eles apostos – seguisse uma
tese radical de exclusão do âmbito de protecção conferida por tal artigo da vida
intra-uterina.
5.2 – Sendo, assim, admitido como está, pelo acórdão e por todos os vencidos,
que a vida humana intra-uterina goza de protecção constitucional, o que importa
saber, é se, a operação de concordância prática dos direitos e valores
constitucionalmente relevantes, presentes no caso, que o acórdão levou a cabo se
apresenta efectuada com respeito pelo princípio constitucional que emerge do
art.º 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP.
Por nós, temos por seguro que não. E firmamos esse juízo, essencialmente, nas
seguintes considerações.
Desde logo, porque não deixa de impressionar-nos que o acórdão perspective a
tutela de inviolabilidade da vida humana, estabelecida no art.º 24.º, n.º 1, da
CRP, desligada do ser que constitua o seu titular, acabando por reduzir,
subliminarmente, segundo uma óptica radical que tanto critica, o seu âmbito de
protecção apenas aos fetos com mais de 10 semanas de gestação e às pessoas
nascidas.
Ora, não vemos, como melhor se verá adiante, que tenha sentido falar-se de
inviolabilidade da vida humana sem ser por referência ao ser que dela seja
titular, seja este ser já uma pessoa ou apenas um ser a caminho de ser pessoa
(cf. Laura Palazzani, Il concetto di persona tra bioetica e diritto, Torino,
1996; A. M. Almeida Costa, “Abortamento provocado”, in Bioética, AA. VV.
Coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia e Walter Osswald, Lisboa, 1996, pp.
201 e segs., e João Carlos Loureiro, “Estatuto do Embrião”, in Novos Desafios à
Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer, Jorge Biscaia, Walter Osswald e
Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs).
Do mesmo passo, não se compreende que se erija a essencial fundamento da tutela
constitucional devida ao embrião/feto o princípio constitucional da dignidade
humana, quando este princípio supõe, precisamente, a existência de um ser dotado
de vida humana e o preceito do art.º 24.º, n.º 1, da CRP não só não aponta em
qualquer sentido restritivo, como corresponderia a uma solução contrária ao
princípio da “máxima efectividade e expansividade” dos direitos e garantias
fundamentais, constantemente, invocado para justificar a inclusão nos direitos
fundamentais de realidades que suscitam alguma dúvida.
Por outro lado, o acórdão não realizou qualquer juízo de concordância prática
entre os dois valores ou direitos constitucionais, tidos como estando em
conflito: o direito do ser, “embrião/feto humanos”, a nascer e a “liberdade da
mulher a manter um projecto de vida, como expressão do livre desenvolvimento da
sua personalidade”. E não efectuou, porque, pura e simplesmente, para fazer
prevalecer este último, rejeita a titularização, no âmbito do art.º 24.º, n.º 1,
da CRP (subjectivação constitucional), do direito à vida humana e,
decorrentemente, do conteúdo essencial do direito do feto a nascer, admitindo a
possibilidade de, sem censura penal, lhe tirar a vida humana.
De qualquer modo, pressuposta, como se defende na doutrina e jurisprudência
constitucionais, a inexistência de hierarquia entre direitos constitucionais,
precisamente com base na identidade da sua fonte, nunca a colisão de direitos
constitucionais poderá ser resolvida, pelo legislador ordinário, com base num
critério normativo de prevalência da liberdade da mulher a manter um projecto de
vida à custa da morte do feto, titular constitucional de vida humana e da
respectiva dignidade.
A operação de concordância prática entre direitos constitucionais, posicionados
como estando em conflito, demanda a realização de um juízo de ponderação
(legislativa ou judicial) que dê satisfação ao princípio constitucional da
máxima efectividade de protecção dos direitos e garantias fundamentais.
Tal equivale por dizer que esse juízo deve efectuar-se de modo a tentar obter
uma optimização do âmbito de eficácia da protecção constitucional conferida a
tais direitos e que nunca poderá chegar a um resultado de eliminação de um deles
em favor do outro, pois, neste caso, está-se, radicalmente, a eliminar o
conteúdo essencial do preceito constitucional que reconhece a inviolabilidade da
vida humana, na sua expressão de direito do titular da vida humana uterina a
nascer e a violar-se frontalmente o disposto na parte final do art.º 18.º, n.º
3, da CRP.
[E a solução não varia se se fizer radicar, segundo a lógica dubitativa que o
acórdão admite, a tutela constitucional do titular embrião/feto no princípio da
dignidade de vida humana – lógica essa, diga-se, incongruente, se referida à
dignidade do embrião/feto, por essa dignidade da vida humana supor a existência
da vida humana e de um seu titular, ou, então, contraditória, se a alegada
dignidade disser respeito à mulher grávida, por, nesse caso, inexistir a
perspectivada situação de colisão de direitos].
Por outro lado, o juízo de concordância prática não pode deixar de ter presente
a estrutura e natureza dos concretos direitos ou garantias constitucionais, que
se apresentam como estando em conflito, mormente para avaliação dos resultados
sob a óptica do princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de justa medida,
ao qual deve obediência.
Ora, nesta sede, não deve desconhecer-se que estão em causa direitos ou
garantias constitucionais em concreto, radicados em diferentes titulares
constitucionais: de um lado, a liberdade da mulher grávida a manter um projecto
de vida e do outro o direito do concreto embrião/feto a nascer, em cada situação
de gravidez. Cada situação de gravidez gera uma situação de existência de um
concreto titular do direito à vida humana a nascer.
Nesta perspectiva, cabe acentuar que a Constituição, sempre que quer conferir
uma especial intencionalidade protectora ou eficácia do âmbito de protecção
constitucional a certos direitos ou garantias constitucionais, usa expressões
reveladoras desse significado, como o adjectivo “inviolável” ou expressões de
exclusão como “ninguém”, “quaisquer”, etc. (cf., por exemplo, quanto ao primeiro
caso, os art.ºs 24.º, n.º 1, 25.º n.º 1 e 34.º, n.º 1, e, quanto ao segundo
caso, os art.ºs 26.º, n.º 1, 27.º, n.º 2, e 29.º, n.º 1, e, a ambas as
situações, o art.º 13.º, n.º 2).
O direito à vida humana é protegido pela Constituição (art.º 24.º, n.º 1) como
direito inviolável. O vocábulo “inviolável” só poderá significar que se trata de
um direito que não poderá ser violado em caso algum, mesmo pelo Estado
legislador. Nesta óptica, apenas, se conceberão causas de exclusão que
consubstanciem, perante a Constituição, situações de não violação, como sejam as
causas constitucionais de desculpabilização ou de justificação.
Trata-se, deste modo, de um direito ou garantia constitucional que se encontra
dotado de uma especial força de tutela constitucional. E bem se compreende que o
seja, porquanto se trata de um direito fundante de todos os outros, de um
direito que é pressuposto necessário de todos os outros, pois sem titulares de
vida humana não poderá falar-se em dignidade humana ou sequer constituir-se
comunidade organizada em Estado de direito democrático.
Ao contrário, o direito ou garantia fundamental que se apresenta em colisão
com ele – a liberdade da mulher a manter um projecto de vida como expressão do
livre desenvolvimento da sua personalidade – não se apresenta dotado
constitucionalmente de uma tal força excludente de lesão.
Na verdade, essa liberdade é não a liberdade a que se refere o art.º 27.º, n.º
2, da CRP, a liberdade física ou liberdade de “ir e vir” – essa sim dotada de
tal força excludente – mas sim uma específica dimensão do princípio do
desenvolvimento da personalidade, consagrado no art.º 26.º, n.º 1.
Assim sendo. Existente um direito à vida humana titularizado no ser resultante
da partogénese celular, ser esse diferente, não só biológica e geneticamente
(cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a
312 e Fernando Regateiro, “Doenças Genéticas”, in Comissão de Ética – Das Bases
Teóricas à Actividade Quotidiana, AA. VV. Coordenada por Maria do Céu Patrão
Neves, 2.ª edição, Coimbra, 2002, pp. 351 e 352), como também
constitucionalmente (cf., entre outros, João Carlos Loureiro, “Estatuto do
Embrião”, in Novos Desafios à Bioética, AA. VV., coordenada por Luís Archer,
Jorge Biscaia, Walter Osswald e Michel Renaud, Porto 2001, pp. 110 e segs., e A.
M. Almeida Costa, op. cit., pp. 210 e segs.), do ser da sua mãe ou mulher
grávida – seja ele já uma pessoa ou não, mesmo numa acepção constitucional – e
podendo ele estar em colisão com o direito a manter um projecto de vida como
expressão do livre desenvolvimento da sua personalidade, titularizado na mulher
grávida, não pode deixar, numa ponderação de concordância prática dos valores
constitucionais, de adoptar-se, do ponto de vista da sua estrutura e natureza
constitucional, uma solução que não acarrete o sacrifício do titular da vida
humana.
Anote-se, de resto, que só o (implícito) reconhecimento de uma alteridade de
titularidade constitucional do ser embrião/feto em relação à sua mãe é que
justifica que o próprio acórdão, na esteira, aliás, do de 1998, procure intentar
uma demonstração de existência de concordância prática entre o direito
titularizado da mulher grávida e o direito respeitante ao embrião/feto.
O aborto importa a morte do concreto titular da vida humana, do concreto
embrião/feto. Com ele extingue-se o direito de se desenvolver no seio materno (e
de mais tarde nascer), de acordo com a informação codificada no DNA, a vida
humana do concreto feto advindo do específico ovo ou zigoto, este, por sua vez,
resultante da fecundação do concreto ovócito pelo concreto espermatozóide. O ser
irrepetível advindo da partogénese celular deixa de existir, saindo violado, por
completo, o seu direito à vida humana.
Pelo contrário, o prosseguimento da vida uterina não extingue a liberdade da
mulher a manter um projecto de vida como expressão do livre desenvolvimento da
sua personalidade, mas tão só, quando muito, a obriga a que adapte, para o
futuro, o seu projecto de vida às novas circunstâncias, tal qual pode acontecer
por força de muitas outras circunstâncias possíveis naturalisticamente, como,
por exemplo, a doença, o desemprego, acidentes, etc.
Ela continua a ser titular de um direito pessoal ao livre desenvolvimento, de o
poder exercer e manifestar, repetidamente, em todas as outras condições da sua
vida. Seguindo a lógica do acórdão, a mulher grávida manterá a sua liberdade de
desenvolver o seu projecto de vida quantas as vezes que optar pela interrupção
da gravidez. Porém, em todas essas vezes, ocorrerá a extinção do direito à vida
humana de um concreto titular – o concreto feto em gestação.
Nesta linha de pensamento, há-de convir-se que a interrupção voluntária de
gravidez, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez, assume tão
só a natureza de um simples meio de contracepção ou mesmo de planeamento
familiar cuja determinação do concreto conteúdo corresponde a um direito
absoluto da mulher grávida, fazendo irrelevar, para o concreto embrião/feto,
qualquer protecção constitucional do seu direito à vida humana, consagrado no
art.º 24.º, n.º 1, da CRP.
Ou seja, a concepção do acórdão assenta numa ideia de completa liberalização do
aborto, condicionando-o a condições que visam apenas acautelar o aspecto de
saúde da mulher abortanda e não em qualquer ideia de que deve ser efectuada uma
ponderação de direitos ou valores: contra a vontade, de livre opção, da mulher
de abortar, nas primeiras 10 semanas de gravidez, em estabelecimento de saúde
legalmente autorizado, nada (absoluto) se pode opor.
Trata-se, por outro lado, de uma solução cuja admissibilidade não vemos como
possa ser acolhida pelo princípio constitucional da proporcionalidade, na sua
acepção de justa medida. Essa desproporcionalidade torna-se patente não só
quando abandona, por inteiro, a natureza do direito que está em colisão com o
direito da mulher grávida, permitindo o seu sacrifício, de plano, nas primeiras
10 semanas, como quando a valoração acaba por ficar dependente apenas da
decorrência de simples prazos de gestação, e da aleatoriedade decisória que,
durante eles, poderá ser feita, livremente, pela mulher grávida, podendo ser
levada a cabo, sem censura penal, num limite em que o feto tem até já forma
humana (desde as 8 semanas) (cf. Fernando J. Regateiro, Manual de Genética
Médica, Coimbra, 2003, pp. 310 a 312).
Como se verifica dos seus termos, o acórdão invoca a realização de uma
concordância prática dos direitos em questão no plano abstracto, indicando até,
nesse sentido, a existência de vários regimes de protecção da maternidade, que
identifica.
Todavia, a primeira objecção que poderá fazer-se a propósito de tal atitude é
que, posta a questão em termos abstractos (plano do conteúdo/extensão do direito
objectivo à vida humana), no plano de constitucionalidade, caberia ao próprio
legislador constitucional resolvê-la e não ao legislador ordinário, mormente no
que toca ao conteúdo essencial do direito, que é aquele que é tocado pelo
aborto.
E não se esgrima, contra esta posição, como está pressuposto pelo acórdão, para
justificar a existência de um juízo ponderativo de concordância prática, que só
tal operação permite enquadrar constitucionalmente as causas de
desculpabilização e de justificação da interrupção voluntária de gravidez
existentes na lei em vigor, pois estas, apenas, correspondem a concretizações,
relativamente aos concretos direitos constitucionais que estão em causa, de
princípios constitucionais autónomos, que valem para todo o direito criminal –
as causas de justificação e de desculpabilização.
Depois a tese do acórdão sofre de um verdadeiro ilogismo: é que os direitos cuja
existência alega, apenas, constituirão direitos para quem tiver a sorte de não
ser abortado. A sua eficácia depende da existência de titulares de direito à
vida humana que tenham nascido.
A vida humana não existe sem um titular e não é possível falar-se de violação,
que o preceito constitucional proíbe, sem ser relativamente à posição jurídica
de quem se encontre investido na titularidade de um direito.
De contrário, o que está em causa é, ainda, a definição do conteúdo
constitucional desse direito, dos seus contornos, do seu conteúdo essencial, no
mínimo. E, a ser assim, tal domínio não cabe nos poderes do legislador
ordinário, mas nos do constitucional.
Essa é, também, a razão pela qual repudiamos a tese, admitida no acórdão (pontos
7 a 10), sobre a admissibilidade de uma dúvida interpretativa sobre a solução,
em abstracto, no plano da constitucionalidade, de um conflito de valores ou
direitos constitucionais, como a que está, em causa, na proposta de referendo,
poder ser devolvida ao eleitorado, através de mecanismos como o referendo e não
de eleições em que possam ser assumidos poderes constituintes por parte da
Assembleia da República.
É que o voto expresso neste caso, desde que afirmativo, apenas pode traduzir
uma posição de poder político legislativo ordinário, no sentido transportado
pela pergunta, ou seja, corporiza, apenas, uma posição de poder legislativo
ordinário, não incorporando quaisquer poderes de definição do conteúdo dos
direitos e garantias constitucionais, só possível através da concessão/assumpção
de poderes constituintes.
Resta, por último, apreciar a posição em que se abona o acórdão, segundo a qual
não se esgota, no domínio penal, o âmbito de protecção do direito constitucional
à vida humana e de que não existe uma imposição constitucional à criminalização.
Estamos de acordo quanto à primeira consideração, mas já não podemos acompanhar,
de forma alguma, a segunda proposição.
E não podemos, porque entendemos que existem direitos constitucionais cuja
existência e exercício hão-de, necessariamente, impor a criminalização das
atitudes que os violarem, por, na sua defesa, o legislador ordinário dever usar
todos os meios constitucionalmente possíveis e entre estes, evidentemente, a sua
última ratio – o direito criminal.
É o caso do direito à vida humana uterina e pós-uterina. Trata-se de um direito
que é pressuposto necessário da existência de todos os demais (direito com
pretensão de absoluto), de um direito sem cuja existência, em seres concretos,
não é concebível qualquer princípio de dignidade da pessoa humana e existência
de uma comunidade politicamente organizada em Estado.
O direito à vida humana de qualquer titular constitucional que ele seja, nascido
ou não nascido, porque a Constituição os não distingue, é um direito fundante do
Homem e da sociedade organizada.
Na mesma situação se encontra, por exemplo, a protecção do princípio democrático
do Estado de direito. Sem protecção do princípio democrático do Estado de
direito, por todos os meios constitucionalmente permitidos, este não poderá
existir e subsistir. Sendo assim, não poderá o legislador ordinário deixar de
utilizar na sua protecção a última ratio – o direito criminal”.
4 – Para nós, pois, sintetizando na perspectiva do caso concreto, o
n.º 1 do artigo 24.º da Constituição protege a vida humana no grau de
inviolabilidade por todos os sujeitos, começando pelo Estado. E estando a
dispor, embora em abstracto, sobre a vida humana só pode referir-se à vida
humana enquanto valor concretamente existente e verificável e não enquanto
simples valor constitucional objectivamente afirmado, como discorre o Acórdão:
onde concretamente existir uma vida humana ela é inviolável. Donde a afirmação
da existência de uma vida humana pressupor sempre uma alteridade, seja ela em
relação à gestante ou às pessoas já nascidas.
A construção do Acórdão no sentido de ver, para efeitos do âmbito de
protecção da norma constitucional, o ente existente no seio materno como uma
unidade com a gestante durante o período em que é lícito o aborto – o que lhe
permite a afirmação de preponderância dos direitos fundamentais da gestante, e
não já uma dualidade ontológica e axiológica, é puramente formal, representando
uma intelecção formal construída ao arrepio da Natureza. A dualidade da vida
humana do feto, até ao nascimento com vida, e da gestante, na lógica do acórdão,
corresponderá a uma atribuição do legislador ordinário que só poderá ser travada
nos casos de manifesta evidência de violação do princípio da proporcionalidade,
a qual seria apenas reconhecível nos adiantados estados de gravidez. Tal
compreensão da realidade humana corresponde a colocar, nas mãos do legislador
ordinário, o recorte do âmbito material da garantia constitucional da
inviolabilidade da vida humana, a poder lesar a vida humana radicada em um
concreto ser, permitindo a sua morte.
A nosso ver, a Constituição actual não o permite. Assim, enquanto o
preceito constitucional não for alterado, entendemos que nunca o “modelo de
prazos” da interrupção voluntária da gravidez se pode ter por legitimado.
5 – Consequencialmente, o artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007 é
também inconstitucional.
Mas, independentemente da relação de dependência desta questão de
constitucionalidade relativamente à anterior, verifica-se ainda que este artigo
2.º, n.º 2, é inconstitucional a título autónomo.
Na verdade, ele viola directamente a garantia constitucional da
inviolabilidade da vida humana (artigo 24.º, n.º 1, da CRP) e – mesmo para quem
entenda não se estar perante um caso em que sai ofendido o conteúdo essencial do
artigo 24.º, n.º 1, da CRP – o princípio da necessidade e da proporcionalidade
das restrições a direitos fundamentais (artigo 18, n.º 2, da CRP), na medida em
que, na presença de bens constitucionais não hierarquisados entre si (os
direitos fundamentais da gestante e o direito constitucional do feto), o
preceito adopta uma estrutura de informação de total alheamento da vida humana,
em nada assumindo uma atitude de defesa da vida humana do feto.
6 – Finalmente, a proibição, pelo legislador ordinário – e é disso
que se trata! – de os médicos objectores de consciência poderem participar na
consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142.º do Código Penal ou no
acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o período de
reflexão, prevista no artigo 6.º, n.º 2, da Lei n.º 16/2007, é também
inconstitucional, por violação desproporcionada do direito fundamental da
liberdade de trabalho e de profissão, consagrada no artigo 47.º, e da garantia
de liberdade de consciência, reconhecida no artigo 41.º, ambos os preceitos da
Constituição, bem como do princípio da igualdade, estabelecido no artigo 13.º da
mesma Lei fundamental.
Antes de mais importa notar que não está aqui em causa uma restrição
destes direitos fundamentais em relação aos médicos que invoquem a objecção de
consciência a que se refere o artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 16/2007, ou seja,
aos médicos que declarem o “direito de objecção de consciência relativamente a
quaisquer actos respeitantes à interrupção voluntária de gravidez”.
A questão põe-se relativamente aos médicos que não declarem o
direito de objecção de consciência relativamente à consulta médica de
informação.
Trata-se de uma consulta médica para a qual têm a mesma habilitação
legal tanto os médicos que declarem ser objectores de consciência para o acto
abortivo, como aqueles que não façam essa objecção de consciência.
A consulta de informação não é uma consulta para a realização do
aborto. Daí que a descriminação feita pelo legislador apenas possa fundar-se
numa suspeita de que os médicos objectores de consciência para o acto de
realização do aborto, para a morte do feto, não tenham capacidade ou competência
para cumprir o programa legalmente estabelecido para a consulta de informação.
Ora, os termos em que pode fundar-se a objecção de consciência para
um e outro dos referidos actos são completamente diferentes, não se vendo que
exista razão, para além da suspeição legal discriminatória, para cercear,
relativamente a esse acto médico, o exercício do direito fundamental de trabalho
e de profissão e a garantia de objecção de consciência. O dizer-se que uma tal
opção do legislador corresponde como que a uma consequência da sua posição de
admitir a declaração de objecção de consciência significa que o legislador é
livre para optar entre o tudo e o nada, em matéria de liberdade de consciência,
quando o certo é que não está dispensado de um juízo de ponderação que não
conduza à diminuição do alcance do conteúdo do direito constitucional
estabelecido no artigo 41.º da Lei fundamental.
A proibição legal de intervenção do médico não objector de
consciência à consulta de informação é manifestamente desnecessária e
desproporcionada em função do programa vinculativamente estabelecido para essa
consulta e aos direitos fundamentais do médico que estão em causa.
Por outro lado, estamos perante uma discriminação atentatória do
princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição, na medida em
que, estando legislativamente definido o conteúdo da consulta de informação
(donde se não possa também previsionar que o médico não objector de consciência
tome uma atitude de favorecimento ao aborto!), coloca um e outro desses
profissionais em situação diferente, efectuando por via reflexa ou lateral – o
que em si evidencia a arbitrariedade da opção, face ao disposto no artigo 18.º,
n.ºs 2 e 3, da Constituição! – uma discriminação em razão das convicções
ideológicas proibida pelo n.º 2 daquele artigo 13.º.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Em meu entendimento, a norma do artigo 1º da Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril, na
parte em que altera o artigo 142º do Código Penal, impondo a não punibilidade da
interrupção da gravidez se realizada 'por opção da mulher, nas primeiras 10
semanas de gravidez', ofende o disposto no n.º 1 do artigo 24º da Constituição
por desproteger totalmente a vida do nascituro.
Por outro lado, o relevo que assim é concedido, para efeito da não punibilidade,
à vontade da mulher grávida, repercute-se necessariamente na afirmação de
reprovação ínsita no próprio tipo penal genericamente previsto no artigo 140º do
Código Penal. A desvalorização desse juízo do legislador ordinário, assim
desacompanhada de quaisquer motivos a que pudessem ser concedidos efeitos
justificadores, constitui, também ela, uma ofensa directa à vinculação
constitucional de protecção do direito à vida.
Os artigos 3º e 4º da mesma Lei n.º 16/2007 de 17 de Abril obrigam o Governo a
adoptar as providências administrativas necessárias 'à boa execução da
legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez'; na ausência que
qualquer referência às Regiões Autónomas, designadamente quanto a qualquer
procedimento prévio de concertação e cooperação político-administrativa que a
Constituição claramente exige nestas áreas, depreende-se que o legislador
ordinário admitiu que a vinculação do Governo seria suficiente para estender a
'boa execução da legislação atinente à interrupção voluntária da gravidez' às
Regiões, o que ofende claramente o princípio autonómico decorrente do n.º 2 do
artigo 6º e n.º 1 do artigo 227º da Constituição.
Consequentemente, votei no sentido da inconstitucionalidade das referidas
normas.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencida quanto à alínea b) da Decisão, por entender que lesam o disposto
no artigo 24.ºda Constituição as normas constantes dos artigos 1º, na parte em
que introduz a alínea e) do n.º 1 e a alínea b) do nº 4 do artigo 142.º do
Código Penal, 2.º, nº 2, 6.º, nº 2, todos da Lei nº 16/2007.
Foram os seguintes, os meus motivos.
1. O Tribunal chegou, quanto a este ponto, a um juízo maioritário de não
inconstitucionalidade a partir de algumas premissas metodológicas que subscrevo
inteiramente. A primeira é a da total novidade da questão que agora lhe foi
colocada. Também eu entendo que o Tribunal teve aqui que resolver um problema
novo, face ao já decidido na jurisprudência anterior sobre o tema (Acórdãos n.ºs
25/84, 85/85, 288/98 e 617/06). Antes do mais, novo em razão do objecto do
juízo, por estar agora em julgamento, e pela primeira vez, o sistema legal
finalizado do chamado “modelo de prazos”, em que se definem as condições
substantivas e procedimentais que determinam a não punibilidade da interrupção
voluntária da gravidez, quando realizada por opção da mulher durante as dez
primeiras semanas. Depois, problema novo em razão do fundamento do juízo, porque
a questão nuclear que houve que resolver foi a de saber se esse “modelo de
prazos”, assim finalizado em sistema legal, continha ou não elementos
suficientes de protecção do bem jurídico que é tutelado pelo artigo 24.º da
Constituição (vida pré-natal). Nada disto esteve em discussão na anterior
jurisprudência do Tribunal; tudo isto foi o que, de essencial, agora se teve que
resolver. O Acórdão de que dissenti esclarece bem o alcance da novidade do
problema desta feita colocado ao Tribunal, pelo que subscrevo inteiramente a
premissa inicial que sustentou o seu juízo.
Como subscrevo a premissa seguinte, relativa às dificuldades específicas com que
se defronta o Tribunal sempre que é chamado a julgar da suficiência ou
insuficiência do cumprimento, por parte do legislador ordinário, de deveres
objectivos de protecção de bens jusfundamentais. Também eu concordo que tal
juízo é estruturalmente diverso daquele outro que se faz sempre que estão em
causa, não deveres estaduais positivos de proteger e de promover certos bens,
mas deveres estaduais negativos de não perturbar ou de não afectar posições
jurídicas subjectivas. Quanto a estes últimos, é certo que ficam proibidas todas
as acções que afectem ou perturbem; em contrapartida, e quanto aos primeiros, a
Constituição não ordena que se adoptem todas as medidas de protecção ou promoção
para o caso pensáveis ou possíveis. Ampla é, portanto, a liberdade de
conformação do legislador quando escolhe o meio adequado para proteger ou
promover: como se diz no Acórdão (nº 11.4.3.), “[q]uando são adequadas
diferentes acções de protecção ou promoção, nenhuma delas é, de per si,
necessária para o cumprimento desse mandato: a única exigência é que se realize
uma delas, pertencendo a escolha ao Estado.”
O problema está, porém – e é a partir daqui que divirjo da orientação
maioritária –, no facto de o Tribunal se não poder demitir da tarefa que
especificamente lhe cabe, e que é a de julgar quais são as acções de protecção
ou de promoção que são adequadas e quais as que o não são. Para tal, é
necessário que se tenha algum critério a partir do qual se possa aferir a
“adequação” das acções às finalidades de protecção; é necessário que se tenha
algum tópico orientador, algum instrumento conceitual que permita detectar as
insuficiências de protecção, caso elas existam. Se assim não for, o
Untermassverbot, a proibição do deficit, torna-se coisa vazia, como coisa vazia
e destituída de conteúdo se tornarão os deveres de protecção. Deveres que não
sejam justiciáveis, ou sindicáveis pelo Tribunal, não são deveres.
Ora, em meu entender, o Acórdão acabou por não revelar um critério a partir do
qual se pudesse medir a existência, ou inexistência, de um deficit legislativo
de protecção. É certo que, como aí se diz (n.º 11.4.17), “cumpre reconhecer que
o julgador não dispõe de um instrumento de mensuração exacta do grau de
protecção exigível para o cumprimento, pelo Estado, do correspondente dever”. No
entanto, tal não implica que se só se justifique uma pronúncia de
inconstitucionalidade em caso de manifesto erro de avaliação do legislador,
detectado a partir de critérios de evidência. Enquanto critério de identificação
da existência, ou inexistência, de deficit de protecção legislativa esta
formulação parece-me claramente insuficiente. E parece-me antes que, sempre que
o legislador estiver constitucionalmente obrigado a proteger certo bem, tal
significa que as medidas a adoptar deverão propiciar a mais ampla protecção que
seja fáctica e juridicamente possível, i.e., que não seja incompatível com
outros princípios ou valores constitucionais que se devam também prosseguir. Uma
medida que fique aquém do fáctica e juridicamente possível – isto é, que não
confira a mais ampla protecção que seja ainda compatível com outros princípios e
valores constitucionais – não é, em princípio, “adequada”, pois não concretiza o
mandato de concordância prática entre diferentes bens jusfundamentais a que está
adstrito o legislador – tanto aquele que restringe, quanto aquele que protege ou
promove.
2. É para mim claro que, no caso, o legislador estava obrigado a proteger o bem
jurídico vida (vida pré-natal), tutelado pelo artigo 24.º da CRP. É para mim
também claro que, no sistema finalizado do “modelo de prazos” que a Lei nº
16/2007 instituiu, o lugar “sistémico” da protecção seria aquele conferido pelo
aconselhamento dispensado antes da prática, no quadro do serviço nacional de
saúde, do acto de interrupção voluntária da gravidez. Aparentemente, terá sido
também essa a ideia que norteou o legislador, pois só ela pode explicar que se
tenha elevado a realização da consulta obrigatória a que se refere a alínea b)
do nº 4 do artigo 142.º do Código Penal, na redacção dada pelo artigo 1º da Lei,
a condição de impunibilidade do acto de interrupção da gravidez. Paradoxalmente,
porém, a consulta obrigatória, que deveria ser o lugar sistémico para o
cumprimento do dever estadual de protecção da vida – tornando-se por isso aberta
em relação ao resultado, por dela não dever resultar nenhuma imposição da
conduta futura da grávida, mas comprometida quanto aos seus próprios fins, por
implicar um reconhecido empenhamento do Estado quanto à desincentivação do
aborto –, vem a ser regulada pelo legislador como se, afinal, de um estrito
procedimento formal se tratasse (para além de nela não poderem estar presentes,
por proibição decorrente do nº 2 do artigo 6º da Lei, os médicos objectores de
consciência).
Para a posição maioritária, que fez vencimento no Tribunal, este mero
procedimento, a que fica reduzida a consulta obrigatória, constitui só por si
protecção suficiente e eficiente do bem jurídico protegido pelo artigo 24.º da
CRP, pelo que com ela se cumprem os deveres que, por força da norma
constitucional, impendem sobre o legislador ordinário. O Tribunal entendeu
maioritariamente assim por duas razões fundamentais. Primeira, porque
considerando, como já se viu, que os deveres de protecção só são sindicáveis se,
à evidência, houver manifesto erro de avaliação do legislador, acaba por
concluir que o nível de protecção exigida é o mínimo, e sempre o mínimo
possível, nível esse naturalmente satisfeito por um mero procedimento formal.
Segunda, porque conclui também que seria incompatível com o outro princípio ou
valor constitucional que coexiste, no caso, com a necessidade da tutela da vida
– a dignidade e a autodeterminação da mulher grávida, e a formação da sua
decisão livre, consciente e responsável – qualquer modelo institucional que
pudesse ser vivido ou sentido pela mesma grávida como juízo externo pressionante
da sua conduta, ou como uma intrusão no seu processo interno de decisão.
Com nenhuma destas razões posso eu estar de acordo. Não estou de acordo com a
primeira porque penso, como já deixei descrito, que o critério de identificação
da existência de um deficit de protecção legislativa se não confunde com o
mínimo de protecção a que se refere o Acórdão. Não estou de acordo com a segunda
porque penso que, levada às últimas consequências, a ideia da necessidade de
defesa da grávida perante quaisquer juízos [institucionais] externos
pressionantes da sua conduta corresponde a um outro tratamento paradigmático da
questão, que nem sequer chega a equacionar a existência de deveres estaduais
objectivos de protecção do bem vida. De acordo com este modelo paradigmático –
que é o do Roe vs. Wade – a não punibilidade do acto de interrupção da gravidez
(num certo período de tempo) depende apenas de uma e só de uma condição: a
vontade da gestante. Por isso mesmo, na sua privacy, tal vontade é e deve ser
preservada de quaisquer juízos externos “pressionantes” de condutas. Não é,
porém, esse o paradigma de que parto; nem é tão pouco esse o paradigma de que
parte o próprio Tribunal na formulação do seu juízo, já que tal implicaria, quer
uma ruptura – que expressamente se recusou – com todo o lastro jurisprudencial
anterior, quer uma diversa equação inicial do problema que havia a resolver.
Por estes motivos, concluo, diversamente da maioria, que, ao desenhar, como
desenhou, o sistema decorrente dos artigos 1º, 2º e 6º da Lei nº 16/2007, o
legislador ordinário não cumpriu o deveres a que está vinculado nos termos do
artigo 24.º da Constituição.
Maria Lúcia Amaral
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Não acompanhei a pronúncia do Tribunal, quanto à alínea b) da
decisão, tendo-me antes pronunciado pela inconstitucionalidade material, por
violação do artigo 24º da Constituição, das normas constantes do artigo 1º, na
parte em que introduz a alínea e) do nº 1 e a alínea b) do nº 4 do artigo 142º
do Código Penal, 2º, nº 2, e 6º, nº 2, da Lei nº 16/2007.
Cumpre agora explicitar, ainda que em termos necessariamente breves, as razões
da minha divergência com a posição que fez vencimento, que se manifestam quer na
interpretação e implicações do parâmetro constitucional quer na apreciação do
complexo normativo sujeito à apreciação do Tribunal.
2. Em sede de interpretação do parâmetro constitucional considero,
com o acórdão, que a protecção que o artigo 24º da Constituição dá ao direito à
vida (ao referir, no seu nº1, que “a vida humana é inviolável”) abrange não só a
vida humana já nascida mas também aquela que se desenvolve intra-uterinamente.
Nestes termos, entendo que se impõe ao Estado a tomada em consideração do
embrião e do feto, pelo que se lhe encontra vedada a possibilidade de se alhear
juridicamente do seu destino, conformando a ordem jurídica sob um princípio de
atribuição ou de reconhecimento de carácter exclusivamente pessoal ou privado à
decisão de abortar, subtraindo-a a toda a forma de influência de orientação que
o Direito é susceptível de proporcionar. O que implica o reconhecimento de que,
como qualquer outro dever de protecção constitucionalmente estabelecido, também
o que é imposto pelo artigo 24º, nº1, da Constituição é tanto negativo como
positivo, gerando para o Estado não apenas o dever de omitir todas as acções
susceptíveis de destruir ou afectar negativamente a vida intra-uterina, como
também o de participar e intervir, promovendo-a e protegendo-a contra
intervenções arbitrárias de terceiros, sem exclusão das que possam proceder da
própria gestante. Revestindo tais deveres natureza indeterminada, e sendo por
isso a forma como os órgãos do Estado os exercem por eles decidida sob a sua
própria responsabilidade, o problema do controlo da constitucionalidade do
regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de
gestação condensado no bloco normativo formado pelos preceitos ora sob
apreciação apresenta-se como um problema de verificação e sindicância do
cumprimento do dever, jurídico-constitucionalmente imposto, de tutela da vida
intra-uterina, através de normas de protecção procedentes dos instrumentos
disponibilizáveis pelo direito ordinário.
No seguimento das posições afirmadas pela jurisprudência deste
Tribunal, reitera agora o acórdão que a vida intra-uterina constitucionalmente
tutelada o é como bem constitucionalmente protegido, sem que tal envolva a
aplicação do regime constitucional especial do direito à vida, que não valeria
assim directamente para a vida intra-uterina e para os nascituros. Cremos, no
entanto, e neste ponto não acompanhamos já o acórdão, que a distinção assim
feita não importa verdadeiramente consequências relevantes para a análise a que
importa proceder, uma vez que o reconhecimento da existência de um imperativo
jurídico-constitucional de protecção dispensa a verificação do título a que tal
protecção é assegurada, pois que, quer envolva a atribuição de um verdadeiro
direito subjectivo quer se trate da (simples) protecção como valor ou bem,
sempre o Estado se encontra vinculado à edição de normas de promoção e protecção
através da mobilização dos instrumentos de direito ordinário (assim também
Conceição Ferreira da Cunha, Constituição e crime – Uma perspectiva da
criminalização e da descriminalização, Universidade Católica Portuguesa, 1995,
p. 366).
E se não cremos ser relevante uma tal distinção quanto à afirmação da existência
do mandado jurídico-constitucional de protecção da vida intra-uterina, também
dela não retiramos quaisquer consequências agora quanto à questão da idoneidade
de um particular meio de protecção para o cumprimento daquele mandado. Na
verdade, esse juízo de idoneidade sempre pressupõe a compreensão prévia da
natureza e conteúdo do bem a tutelar, e este nunca poderá ser visto como simples
idealidade, mera representação do espírito ou produto do pensamento, havendo
antes de lhe ser reconhecida uma preponderante dimensão ou espessura ôntica,
integrado por uma determinada realidade cognoscível objectivamente, esta por sua
vez constituída, segundo os dados da ciência, por todos e cada um dos seres
humanos intra-uterinamente viventes, qualquer deles já portador de uma
identidade genética definida, e, nessa sua unicidade, singularmente
referenciável e diferenciável dos demais.
O sistema de protecção a organizar para a vida intra-uterina, como quer que
aquela se conceptualize, sempre exigirá por isso uma estrutura diferenciável da
que porventura possa servir à tutela de bens jurídico-constitucionais de
natureza transindividual, metaindividual ou até mesmo difusa – por, ao invés
daquele, se caracterizarem quer pela circunstância de se reportarem a uma
pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos ou portadores em termos
tais que não possibilitam a identificação de todos individualmente, quer pelo
elemento de indivisibilidade, no sentido de que o objecto da realidade que os
constitui não comporta a partilha entre os seus titulares, pertencendo como um
todo a todos eles em igual medida, sem admitir a atribuição exclusiva a qualquer
deles. Diferentemente, no caso da vida intra-uterina, o bem jurídico a tutelar
retira a sua validade e razão de ser constitucionais da circunstância de se
reportar a vidas humanas tão diferenciáveis e independentes entre si que apenas
lhe sobra em comum a circunstância de se encontrarem em estado embrionário ou
fetal de desenvolvimento.
O que implica a conclusão de que sempre será constitucionalmente inviável a
construção de um sistema de tutela em que, para as primeiras dez semanas de
gravidez, esta resulte de mera projecção retrospectiva da protecção garantida
ao(s) período(s) de gestação considerado(s) subsequentemente. Ao contrário,
há-de entender-se que a posição jusfundamental irradiante que, como consequência
da protecção constitucional da vida intra-uterina, há que reconhecer a cada ser
intra-uterinamente vivo gera para o Estado o dever de organizar e conformar a
ordem jurídica de uma tal maneira que a toda a expressão de vida embrionária ou
fetal, independentemente da fase ou momento do processo de gestação em que se
situe, seja facultado, e portanto também durante as dez primeiras semanas,
através da mobilização do direito ordinário, um nível mínimo de protecção
efectiva. O que exige que, a fim de não desconsiderar a densidade ou espessura
ônticas do bem jurídico-constitucional a tutelar, os instrumentos de tutela
disponibilizados, podendo embora exprimir uma forma de protecção diferenciada e
até progressiva ao longo da gestação, disponham sempre e em qualquer caso de
referencial minimamente antropocêntrico. Reconhece-se assim que o
desenvolvimento do processo de gestação constitui um ponto de partida
constitucionalmente viável para a instituição de um modelo de tutela
progressiva, exprimindo-se aqui uma gradualidade, não na qualidade ou valor do
objecto a tutelar, mas sim, e decisivamente, na relação de adequação entre o
meio de protecção a mobilizar e a realidade existencial a que se dirige a
tutela.
Em face do que se pode dizer que o Estado, dentro da margem de conformação que
lhe é reconhecida, se encontra assim obrigado a lançar mão de um instrumento de
direito ordinário que assegure ao bem em causa uma protecção eficiente, sem o
que estará ferido o princípio da proibição de insuficiência ou do défice de
protecção.
3. A análise do carácter eficiente dessa protecção só poderá
fazer-se de forma consistente em presença dos dados fornecidos pela ciência e
tendo em atenção o critério da legitimidade da intervenção punitiva tal como é
hoje de resto consensualmente entendido pela ciência do direito penal.
3.1 Os dados da ciência dão, actualmente como certa a ideia de que a
fusão dos dois gâmetas dá lugar a um «novo organismo cujo programa de vida e
desenvolvimento se não identifica com o dos seus progenitores». Inversamente,
«cada novo ser concebido recebe uma combinação completamente original que não se
havia produzido antes e que nunca mais voltará a produzir-se», encontrando-se
gravado na primeira célula do novo ser vivo «o programa que organiza depois
todas as células desse organigrama e que formarão parte da sua unidade».
«Com a união das duas células sexuais estabelece-se um novo programa, um
genotipo distinto do de cada um dos progenitores, que se mostra activo desde o
primeiro momento, não obstante esta actividade se vá desdobrando gradualmente».
Será «sob a influência directiva e perfeitamente ordenada desta espécie de
“centro de controlo” que constitui o genotipo» que se formará o novo organismo,
numa espécie de “auto-governo biológico”».
«Neste desdobramento – a ontogenése - vão-se formando uma série de fases em que
a seguinte não elimina a anterior, antes a pressupõe: situa-se sobre ela,
assimilando-a. Todo ele segundo a particular forma de autopossessão constituída
pelo genotipo do zigoto» (A. Sarmiento, G. Ruiz-Perez e J.C. Martin, Ética y
genética, p.41-43).
Conforme se pode, pois, verificar, sem exceder o âmbito da sua competência a
ciência atesta hoje que um embrião derivado da união dos dois gâmetas é, desde o
primeiro momento, um ser da espécie humana distinto da mãe – e não uma parte
dela –, com um programa genético próprio e originariamente diferenciado.
No contexto da resolução do vasto problema aqui recolocado, à ciência não
competirá certamente dizer mais do que isto.
Não lhe competirá, designadamente, definir o alcance ético ou jurídico dos dados
que proporciona, esclarecer o seu significado ou fornecer as valorações que são
próprias do Direito (neste sentido, cfr. Acórdão n.º 617/2006).
Mas o que está ainda no âmbito da sua competência afirmar serve para
comprometer, aos olhos de quem tenha de se ocupar de tais questões, a
possibilidade de uma visão integralmente despersonalizante do fenómeno ou, pelo
menos, despersonalizante ao ponto de implicar a desconsideração da existência de
uma situação de alteridade, excluindo a compreensão do feto como outro.
Assim, se certo é que à ciência não caberá fornecer, ainda que por mera dedução
lógica, o conceito de pessoa (cfr. Acórdão n.º617/2006), a informação que dela
se recolhe não deixará de condicionar a aceitabilidade, mesmo num plano
pré-constitucional, de teses que, tal como a defendida por Luigi Ferrajoli,
procuram responder ao problema do estatuto do embrião e do feto na linha da
defesa da ideia segundo a qual «o embrião é merecedor de tutela se e só quando
pensado e desejado como pessoa pela mãe».
Quando se trata de estabelecer a relevância normativa atribuível aos dados
biológico-cientificos no âmbito da problemática desenvolvida em torno da tutela
da vida pré-natal, duas afirmações parecem consensuais: a de que, por um lado, o
ordenamento não pode prescindir nem ignorar as indicações da ciência, mas deve
orientar-se, no mínimo, de forma compatível com elas; e a de que, pelo outro,
tais dados não têm carácter prescritivo-vinculante, não substituindo, conforme
acima se disse já, os juízos e as valorações que são próprios do Direito (cfr.
Kolis Summerer, Le nuove frontiere della tutela penale della vita prenatale,
Rivista italiana di diritto e procedura penale, 2003, Fasc. 4 p.1258).
Partindo de tais postulados, se tenderá a recusar-se a possibilidade de uma
fundamentação exclusivamente biológica para o solucionamento das questões
relativas, quer ao merecimento e à necessidade de tutela da vida pré-natal,
quer, em especial, à natureza do meio ou instrumento a mobilizar para o efeito,
do mesmo modo tenderá a aceitar-se que o reconhecimento, cientificamente
atestado, de que o embrião é um ser da espécie humana distinto da mãe que o
suporta, ao conferir, também pelo lado daquele, uma dimensão definitivamente
ontológica ao problema, debilita a viabilidade normativa de construções que
subordinem o reconhecimento do eventual grau de “pessoalidade” atribuível ao
embrião à coincidente representação que dele faça a mãe, apenas admitindo a
primeira onde a segunda esteja presente.
Por idêntico risco de quebra da cadeia de sentido de que participam os dados
biológico-científicos, os mesmos postulados tenderão a comprometer ainda a
possibilidade, colocada agora no plano de uma abordagem penal do fenómeno, de
inscrição do problema da tutela da vida pré-natal no capítulo recorrentemente
dedicado à discussão da legitimidade da intervenção penal no domínio das puras
violações morais ou de proposições meramente ideológicas, aqui consensualmente
contestada com fundamento, entre outros, nos princípios da neutralidade
moral, ideológica e cultural do Estado, do pluralismo da sociedade
tolerante ou da laicidade do ordenamento jurídico-constitucional (cfr.
Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, ps.124-125).
3.2. Se, no plano das ciências da natureza, as modernas
possibilidades de observação e estudo do feto desde a primeira fase da gravidez
vêm favorecendo o reconhecimento de uma “terceira vida” e de um novo sujeito, já
no plano da ciência jurídica, mais propriamente no âmbito da reflexão
desenvolvida em torno da função do direito penal, não se registam sinais de
retrocedimento na defesa da chamada concepção teleológico-funcional e racional,
prevalecendo consequentemente a ideia de que tal função só poderá consistir na
tutela subsidiária ou de ultima ratio de bens jurídicos dotados de dignidade
penal em consonância com o modelo valorativo jurídico-constitucional e cuja
lesão se revele digna e necessária de pena (neste sentido, Figueiredo Dias, ob.
cit., p.113 e ss.)
No actual estado do discurso sobre a legitimidade da intervenção penal e sua
justificação, a asserção segundo a qual não pode haver criminalização onde se
não divise o propósito de tutela de um bem jurídico-constitucional subsiste como
elemento de um binómio completado pela negação da validade da proposição
inversa: a de que sempre que exista um bem jurídico digno de tutela penal aí
deve ter lugar a intervenção correspondente (ob. cit. p.127).
No plano da explicitação dos juízos rectores da legitimidade das opções de
incriminação, assiste-se, pois, na generalidade da doutrina, à estabilização de
uma já consolidada tendência para, em associação e complemento ao critério do
bem jurídico, atribuir ao direito penal a natureza de ultima ratio da política
social, reafirmando-se a natureza definitivamente subsidiária da respectiva
intervenção e relegando-se esta para o plano das situações em que os outros
meios de política social, em particular de política jurídica não penal, se
revelem insuficientes ou inadequados. Justamente no que diz respeito a esta
última categoria, regista-se ainda a propensão para a ela reconduzir as
hipóteses em que a criminalização de certos comportamentos se revele, na
prática, factor de muitas mais violações do que aquelas que é susceptível de
evitar (ob. cit. p.128).
Em consonância com tais postulados, assiste-se, no âmbito do
pensamento desenvolvido em torno do sentido e limites da pena estatal, à
subsistência da afirmação dos princípios da subsidiariedade e da efectividade,
definidos, na senda das propostas de Liszt, a partir das características da
necessidade e da idoneidade da sanção penal: deverá recusar-se a possibilidade
do castigo, por falta de necessidade, quando outras medidas de política social
ou as próprias prestações voluntárias do delinquente garantam uma suficiente
protecção dos bens jurídicos e, por falta de idoneidade, quando, mesmo que se
não disponha de possibilidades mais suaves, a pena se revele
político-criminalmente inoperante ou mesmo nociva (apud Claus Roxin, Problemas
básicos del derecho penal, Biblioteca Juridica de Autores Españoles y
Extranjeros,1976, p.44).
No âmbito das mais recentes aproximações sociológicas à questão criminal, a
(in)eficácia da sanção aparece, por outro lado, ligada à ideia de consenso
social.
As teorias desenvolvidas em torno da relação entre consenso social e sistema de
direito penal apontam para a atribuição ao primeiro de uma posição central no
conjunto das razões que determinam a observância da lei (cfr. Enzo Musco,
Consenso e legislazione penale, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale,
Fasc.1, 1993, pg.81 e ss.) e, no desenvolvimento desta perspectiva, para a
conclusão segundo a qual da taxa de consenso conseguido pelo Estado em torno das
suas ofertas de pena (ou opções de incriminação) dependem as chances de garantir
a validade sociológica do modelo comportamental encorajado com o instrumento
penalísitco (cfr. Carlo Enrico Paliero, Consenso sociale e diritto penale,
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Anno XXXV, fasc. 3, p. 849 e
ss.).
No domínio das teorias sociológicas da criminalização primária, desenvolvem-se
compreensões da dicotomia necessidade de tutela/ exigência de pena que rejeitam
a existência de uma qualquer relação de suposição necessária, apontando-se
inversamente para a ideia de que o consenso social, se se condensa
essencialmente numa necessidade de tutela, pode ou não converter-se numa
exigência de pena.
De acordo com tais teorizações, a necessidade de tutela em que o consenso se
exprime refranger-se-á quando o instrumento de tutela a mobilizar seja
previsivelmente de natureza penalística, projectando-se em duas possíveis e
diversas direcções: tutela com a pena e através do direito penal, por um lado; e
tutela perante a pena e o direito penal, por outro.
No desenvolvimento de tal ponto de vista, assiste-se à formulação de conclusões
segundo as quais, nos casos em que, relativamente a um determinando modelo
comportamental, a colectividade se tenda a identificar prevalecentemente com a
figura da vítima, o pedal do consenso social premir-se-á essencialmente em
direcção à efectividade, favorecendo a conversão da necessidade de tutela numa
demanda de criminalização. Inversamente, quando a comunidade tenda a
identificar-se prevalecentemente com o autor de um possível conflito formalizado
ou a formalizar segundo o modelo penalístico, o consenso convergirá sobre o
pedal da garantia (e do garantismo), exigindo maior tutela diante do direito
penal e dos seus meios lesivos para a liberdade individual – propender-se-á,
neste caso, para exigir maior limitação e maior controlo do poder punitivo
estadual (cfr. ob. cit., ps. 872-874).
3.3. O ambiente em que as sociedades contemporâneas são chamadas a (re)pensar
os problemas concernentes à tutela da vida pré-natal, é, pois, complexo e
plurisignificante: nele confluem e coexistem dados, postulados e proposições
colocados pelas teorias produzidas no âmbito das diversas áreas do conhecimento,
os quais, favorecendo múltiplos pontos de vista sobre o problema, abrem espaço
ao desenvolvimento, agora no plano de uma abordagem mais próxima, quer das
perspectivas que retiram da informação científica e genética o essencial do
apoio para a reivindicação, em matéria de política legislativa, de um discurso
em torno dos fetal rights – compreendendo este teorizações acerca do direito do
feto a nascer, a nascer são, a não sofrer danos e a ser curado (cfr. Kolis
Summerer, ob. cit, p.1247) -, quer daquelas que, emergindo da ciência do direito
penal, mais propriamente do capítulo integrado pela discussão em torno da
qualidade dos instrumentos de tutela, reafirmam um paradigma da intervenção
penal radicado na função de tutela subsidiária dos bens jurídico-penais,
aprofundando a distinção entre necessidade de tutela e exigência de pena.
Todas estas referências de sentido, contribuindo para aumentar o grau de
complexidade das relações entre os sujeitos envolvidos e entre cada um deles e o
Estado – aqui entendido como centro de imputação de actividade jurídica e, nesta
acepção, como titular oficial do poder punitivo –, projectam, no plano
normativo, novas linhas de tensão, as quais, se para o legislador ordinário
implicam a (re)definição de equilíbrios no interior do espaço de
discricionariedade e conformação que lhe é próprio, já no plano constitucional
não poderão deixar de inscrever-se, conforme se verá, no âmbito da chamada
teoria dos deveres de protecção.
4. Assim perspectivado o problema, temos para nós que o sistema de direito
ordinário delineado pela Lei nº 16/2007 não fornece uma protecção suficiente da
vida intra-uterina nas primeiras dez semanas de gestação, situando-se por isso
aquém do limite colocado pela proibição do défice de protecção, o que acarreta a
sua desconformidade constitucional.
A demonstração deste ponto implica que nos detenhamos um pouco na caracterização
do regime que, em substituição da punibilidade de tal comportamento, o
legislador estabeleceu para a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou
sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente
reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando realizada, por opção
desta, nas primeiras dez semanas de gravidez.
Assentando na não intervenção do direito penal como mecanismo de protecção até
às dez semanas de gestação, o modelo legal sub judicio procede da ideia de que,
não obstante o efeito de indiciação produzido pela especial relevância
axiológica do bem jusfundamental a proteger, a indagação a que obriga o critério
da necessidade e as representações a que a mesma conduz retiram evidência à
necessidade de intervenção do direito penal, abrindo espaço à afirmação de meios
alternativos de tutela. O que resultaria da circunstância de, no caso de
interrupção voluntária da gravidez medicamente realizada, estar em causa
proteger a existência embrionária não de arbitrárias intervenções de qualquer
terceiro, mas do específico e particular perigo de lesão que, surgindo no
contexto de uma gravidez indesejada, procede da iniciativa da própria gestante.
Neste contexto, justificar-se-ia o recurso a eventuais soluções de tutela
preventiva, assentes numa estrutura comunicacional de maior proximidade,
designadamente as que se baseiam num princípio de auto-contenção do direito
penal através de um procedimento orientado jusfundamentalmente, abalando-se a
apriorística consideração de que, tratando-se do favorecimento espontâneo de
comportamentos compatíveis com a prossecução da gravidez, só a punição penal
poderia assegurar o mínimo de tutela constitucionalmente imposto.
4.1. Em concreto, avança-se um regime legal em que a exclusão da punibilidade da
interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua orientação, em
estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, quando realizada
por opção e mediante o conhecimento da mulher grávida, nas primeiras dez semanas
de gravidez, depende de a sua realização ter tido lugar, no mínimo, três dias
depois da realização de uma primeira consulta destinada a facultar à mulher
grávida o acesso a informação relevante para a formação da sua decisão livre,
consciente e responsável. Informação que abrange as condições de efectuação, no
caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas
consequências para a saúde da mulher, as condições de apoio que o Estado pode
dar à prossecução da gravidez e da maternidade, e a disponibilidade, durante o
período de reflexão, quer de acompanhamento psicológico, quer de acompanhamento
por serviço social.
Situada assim no interior de um sistema de prazos com aconselhamento obrigatório
de tipo meramente informativo, a protecção da vida intra-uterina tida em vista
pelo dispositivo legal resultante da admissão da possibilidade de algumas das
informações prestadas à gestante e a comunicação dos eventuais apoios por parte
do Estado virem a concorrer para a manutenção da gravidez e consequente
preservação do embrião ou do feto radica no estatuto da consulta que
obrigatoriamente precede a eventual concretização da interrupção, em especial no
procedimento que a informa. Assume-se que o procedimento desta forma instituído
conduzirá ao aumento da probabilidade de um resultado jusfundamentalmente
conforme, sendo susceptível de provocar um incremento das possibilidades de
obtenção de um resultado favorável à prossecução da gravidez.
Só que o sistema instituído pelo diploma, na sua concreta modelação, não
consente que se presuma a ampliação da probabilidade de um resultado compatível
com a preservação da vida intra-uterina, pelo menos na medida necessária para
ter por cumprido em suficiente medida o imperativo constitucional de tutela. Tal
resulta desde logo do elenco de informações a prestar à gestante no âmbito da
consulta. Na verdade, as primeiras – relativas às condições de efectuação, no
caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas
consequências para a saúde da grávida – traduzem-se em mera reprodução, em sede
de interrupção voluntária da gravidez, do regime do consentimento esclarecido
para acto médico que vigora no direito da medicina em geral, sendo aplicável a
toda e qualquer intervenção e tratamento médico-cirúrgico. O que se reforça com
a compreensão densificada do conteúdo do dever de esclarecimento hoje perfilhada
na doutrina, em especial pela ideia, consensual aí, de que só é eficaz o
consentimento assente em esclarecimento bastante e este pressupõe a
representação correcta de todas as circunstâncias relevantes para a motivação da
decisão de aceitação ou recusa de uma intervenção do género da indicada (cfr.
Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, p. 396). Pelo que
se impõe a conclusão de que, mesmo considerando as explicitações relativas à
indicação do tempo da gravidez e das consequências para a saúde física e
psíquica da mulher (constantes, respectivamente das alíneas a) e c) da Portaria
nº 741-A/2007, de 21 de Junho), continua a não ser detectável no regime jurídico
sob avaliação qualquer elemento superlativamente diferenciador da disciplina que
vigora no âmbito das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos em geral,
designadamente um elemento que, procedendo da consideração da presença do
embrião ou do feto, se apresente funcionalmente apto ao cumprimento do mandado
jurídico-constitucional de tutela.
E o mesmo se diga das restantes indicações que segundo o regime legal vigente,
deverão ser proporcionadas à grávida, e que vão desde o conhecimento das
condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e da
maternidade, à disponibilidade, durante o período de reflexão, quer de
acompanhamento psicológico quer de acompanhamento por técnico de serviço social.
Embora se não possa excluir, num juízo de prognose, a eventualidade de certas
destas informações, ou mesmo todas no seu conjunto, poderem contribuir,
designadamente em associação com outras circunstâncias particularizáveis em cada
caso, para o enfraquecimento – ou até mesmo para a anulação – de uma
predisposição originária favorável à interrupção da gravidez, o certo é que, de
um ponto de vista teleológico e dogmático, do que se trata aqui é de elementos
ou factores externos à modelação da decisão que se coloca perante as
alternativas representadas pela prossecução da gravidez e a concretização da
interrupção e, portanto, cuja possível influência naquele primeiro sentido é de
tal modo longínqua, contingente e difusa que não chega para exprimir um qualquer
consistente nível de comprometimento do sistema de direito ordinário na
realização do mandamento jurídico-constitucional de protecção da vida
intra-uterina.
4. 2. Adiante-se que se o padrão seguido na modelação do conteúdo da consulta
traduz uma opção normativa insuficiente para poder reportar o procedimento
instituído pela Lei nº 16/2007 ao cumprimento do dever constitucional de
protecção da vida intra-uterina, o critério em que assentam as regras definidas
para a determinação de quem nela pode participar compromete positivamente tal
possibilidade.
Da norma do artigo 6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 – cuja constitucionalidade, de
resto, vem autonomamente impugnada – resulta que os médicos ou demais
profissionais de saúde que invoquem a objecção de consciência relativamente a
qualquer dos actos respeitantes à interrupção voluntária da gravidez não podem
participar na consulta prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 142º do Código
Penal ou no acompanhamento das mulheres grávidas a que haja lugar durante o
período de reflexão.
Qualquer tentativa de captação da finalidade prosseguida pelo legislador através
deste preceito jurídico, singularmente ou no contexto da unidade do conjunto em
que se insere, conduzirá sem particular esforço interpretativo à conclusão de
que a exclusão da possibilidade de participação de médicos objectores de
consciência, quer na consulta que precede a concretização da interrupção da
gravidez, quer no acompanhamento que a gestante possa entretanto solicitar – o
que tenderá, de resto, a suceder em casos de angústia, dúvida ou hesitação - é
reveladora da intenção, não apenas de isentar o procedimento previsto de
qualquer propósito de influenciar a grávida no sentido da prossecução da
gravidez, como de assegurar que essa influência não possa vir a ser exercida no
interior do sistema e através dele, designadamente por iniciativa daqueles que o
legislador presume que em tal sentido operariam, não obstante as limitações que
de tal ponto de vista não deixariam de colocar-se, pelo menos no que diz
respeito à consulta, em face da previsão do art.2º, n.º2, da Lei n.º16/2007.
Perante o conjunto das soluções possíveis em matéria de determinação dos
profissionais habilitados para participar nos momentos de interacção do sistema
com a grávida – que vão desde a exclusão dos médicos disponíveis para a
realização de interrupções voluntárias da gravidez até ao afastamento dos
médicos objectores de consciência, passando pela admissão da possibilidade de
participação de uns e outros, isolada ou conjuntamente, – a opção normativa
expressa no artigo 6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 traduz um critério valorativo
assente na ideia de que a grávida deve ser institucionalmente preservada de
qualquer forma de ingerência no desenvolvimento do seu processo decisório, em
especial daquela que serviria ao favorecimento de uma decisão compatível com a
preservação da vida embrionária ou fetal.
Conforme referido foi já, em se tratando da verificação da viabilidade
constitucional de uma determinado sistema de direito ordinário na perspectiva da
proibição de insuficiência, ao juízo de constitucionalidade interessará
sobretudo o índice de protecção que o mesmo é susceptível de gerar no seu
funcionamento global e conjunto.
Ora, esta norma, ao excluir a intervenção dos médicos objectores de consciência
em todos os momentos em que a mesma poderia ter formalmente lugar, permite
verificar que o procedimento a que a anterior proibição penal cedeu lugar, não
só não contem qualquer elemento suficientemente orientado para o favorecimento
de decisões espontâneas favoráveis à prossecução da gravidez, como apresenta
opções que, por serem apenas racionalmente compreensíveis numa lógica assente na
ideia de que o Estado deverá abster-se de fornecer à gestante qualquer indicação
de valor e actuar como se o resultado da respectiva decisão final lhe fosse
naquele momento indiferente, se apresentam positivamente disfuncionais na
perspectiva do cumprimento do mandado jurídico-constitucional de protecção da
vida intra-uterina.
5. No segundo caso por excesso, no primeiro por defeito, as opções normativas
expressas nos artigos 2º, n.º2, e 6º, n.º2, da Lei n.º16/2007, exercem uma
influência decisiva na modelação do regime jurídico da interrupção voluntária da
gravidez, convertendo-o num sistema de regras e princípios onde, não apenas se
não inclui, como parece não ter lugar, qualquer mecanismo de conformação de
condutas orientado e apto ao favorecimento de um modelo comportamental
compatível com a preservação da vida intra-uterina.
O ponto de referência em que, por efeito de tais normas, o sistema é colocado é,
por isso, não apenas o de um espaço livre do direito penal (Rechsfrei Raum) mas
o de um espaço vazio de direito (Rechstleer Raum) – um espaço em que não existe
qualquer indicação normativa e o acto de interromper a gravidez fica subtraído a
toda a forma de influência e orientação pelo Direito.
Num sistema normativo em que a auto-contenção do direito penal se faça pela via
da imposição de um procedimento orientado jusfundamentalmente, o direito penal,
embora não disciplinando, na realidade orienta porque a exclusão da ameaça da
pena tem como indispensável condição o acatamento e a observância de um iter
procedimental apto a fomentar a conformidade material do resultado com um padrão
de validade retirado do bem jurídico tutelado constitucionalmente.
Quando assim suceda, o direito penal continuará a exercer, embora à distância,
um efeito de protecção, ainda que por uma via alternativa à sancionatória. O seu
desaparecimento de cena não é por isso total.
Em casos como este, os instrumentos de direito ordinário, no seu conjunto e
combinada actuação, continuarão a influenciar regulativamente a realidade no
sentido da intenção implícita no mandado jurídico-constitucional de tutela.
O sistema instituído pela Lei n.º 16/2007, ao exprimir uma renúncia pura e
simples ao direito penal como instrumento de tutela da vida intra-uterina até às
dez semanas de gestação fora do âmbito das fattispecies justificativas, quando
a interrupção resulte da opção livre da mulher e tenha lugar em estabelecimento
de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, sem colocar como condição para
essa retirada qualquer via funcionalmente orientada e apta à realização daquele
fim, suprimiu integralmente o anterior meio de protecção sem o substituir por
uma verdadeira alternativa de tutela.
Uma vez que o mecanismo procedimental que comprime o direito penal e o faz
recuar se apresenta destituído, quer na racionalidade das opções que encerra,
quer na intencionalidade que globalmente exprime, de qualquer aptidão para
tornar sociologicamente válido um modelo comportamental compatível com a
salvaguarda da vida intra-uterina, a disciplina jurídica instituída pela Lei
n.º16/2007 vem situar a interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas de
gestação numa zona onde o Direito se abstém de fornecer critérios valorativos de
acção e se coíbe de conformar normativamente as escolhas.
Pela vacuidade que deste ponto de vista encerra, a solução normativa procedente
das normas dos artigos.1º, 2º, n.º2 e 6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 acaba por
consentir aproximações à chamada zona de normalidade social, o que coloca o
regime num ponto manifestamente aquém do limite de suportabilidade em que se
traduz o princípio da proibição do défice de protecção ou da insuficiência.
Vistas as coisas pelo lado da gestante, tal conclusão, ao invés de se
enfraquecer, ganha acrescida evidência.
Se se partir do pressuposto de que a solução que toda a norma exprime traduz a
ponderação e a valoração dos diversos interesses que através dela se regulam,
ver-se-á que ao da preservação da vida intra-uterina só poderá contrapor-se,
numa leitura conflitual do problema, o da defesa da autodeterminação da mulher
grávida e do livre desenvolvimento da sua personalidade.
Ora, um dos indicadores da possível violação da proibição da insuficiência no
cumprimento dos imperativos jurídico-constitucionais de tutela consiste na
sobre-avaliação, no âmbito da solução normativa dispensada, dos interesses e
bens jurídicos contrapostos (neste sentido, Canaris, Direitos Fundamentais e
Direito Privado, Almedina, 2003, ps.123 e 138-139).
Ao isentar o procedimento que substituiu o anterior tipo incriminador do
propósito de influenciar a grávida no sentido da preservação da vida
intra-uterina e cuidando expressamente da exclusão da possibilidade de nesse
sentido poder vir a ser exercida qualquer forma de ingerência no respectivo
processo decisório, a solução normativa enunciada nos artigos 1º, 2º, n.º2, e
6º, n.º2, da Lei n.º16/2007 conduz à conclusão de que, mesmo que se tratasse aí
de dar expressão à tutela da autodeterminação da gestante e do seu direito ao
livre desenvolvimento da personalidade, estes estariam em qualquer caso
sobre-avaliados.
E isto porque a tutela da autodeterminação e do direito da mulher grávida ao
livre desenvolvimento da sua personalidade não carece que se vá ao ponto de
preservar a gestante do confronto institucional com orientações de desincentivo
à concretização da predisposição por si originariamente manifestada, nem de
excluir a vinculação do respectivo processo decisório a indicações valorativas
de correcção da acção.
A tutela da autodeterminação e do direito da mulher grávida ao livre
desenvolvimento da sua personalidade não implica, em síntese, a sua radicalizada
compreensão no sentido de algo próximo do right to be left alone proclamado pela
Supreme Court norte-americana que, tal como este, conduza o Estado a deixar a
grávida sozinha, isolada na privacidade da sua escolha, quando aquela, na
realidade, o não está mais.
Também deste ponto de vista – que é o da alteridade – a modelação do sistema
instituído pela Lei n.º16/2007, revela-se manifestamente lacunosa.
Com efeito, se tal modelação se inscreve, como à partida se viu já que pode, no
espaço de liberdade de conformação cometido ao legislador ordinário, ela acaba
por dar expressão somente a parte dos factores que convergem no contexto de
reflexão que àquele se coloca – os que provêm da ciência do direito penal –,
desconsiderando aqueles que, procedendo dos dados fornecidos pela biologia e
pela genética, apontam para uma compreensão relacional do fenómeno na base da
consideração do feto como o outro (cfr. supra nº 3.1).
6. Diga-se ainda que se a intenção de realizar o imperativo jurídico
constitucional de protecção da vida intra-uterina não é percepcionável a partir
do conjunto normativo em que o legislador consubstanciou o modelo, alternativo
ao da punibilidade da interrupção, que daquele complexo legal se depreende, o
mesmo se diga, por maioria de razão, dos outros lugares do sistema convocados
pelo acórdão como podendo ainda contribuir para o cumprimento daquele imperativo
constitucional de tutela. Diga-se desde logo que tal mobilização só teria
cabimento se, contra o que acima se sustentou, o bem jurídico-constitucional
aqui em análise fosse de natureza difusa, transindividual ou metaindividual,
reportando-se a uma pluralidade indeterminada ou indeterminável de sujeitos ou
portadores.
Simplesmente, na presença da vida intra-uterina não é mais possível representar
dessa forma o bem jurídico a proteger de forma efectiva nem aceitar o carácter
efectivamente protector de qualquer instrumento de direito ordinário que não
tenha no seu horizonte cada uma das vidas iniciadas já. Nestes termos não é
possível acompanhar o acórdão quando reconhece eficácia protectora a
instrumentos do direito ordinário pensados para evitar gravidezes indesejadas ou
para desenvolver o apoio social à maternidade. Uma vez que nenhum destes
instrumentos jurídicos é dotado de eficiente aptidão protectiva da vida humana
intra-uterina no momento em que o problema do aborto se coloca não é o facto de
serem múltiplos nem o resultado da sua soma que permitirá atingir o nível de
protecção susceptível de cumprir o mandamento constitucional.
7. Em face do que concluímos que, consistindo qualquer sistema numa combinação
de elementos organizada de modo a que o complexo daí resultante exprima, no seu
conjunto, um conteúdo significante unitário, proporcionado este pela ideia de um
fim, aquele que procede à definição do regime jurídico da interrupção voluntária
da gravidez de acordo com uma fórmula assente na exclusão da proibição penal até
às dez semanas de gestação mediante a realização prévia de uma consulta de tipo
meramente informativo na qual se encontram impedidos de participar os médicos
objectores de consciência é, com clareza, um sistema em cuja unidade se não
inscreve qualquer mecanismo orientado e apto a incrementar um modelo
comportamental favorável à prossecução da gravidez em termos suficientemente
compatíveis com a realização do mandado jurídico-constitucional de tutela da
vida intra-uterina.
O conteúdo significante que essa unidade exprime dá inversamente conta de um
pensamento que atribuí ao Estado uma posição de neutralidade valorativa nos
momentos de interacção formal com a grávida e, no limite, abstém o Direito,
enquanto instrumento de conformação normativa da vida em sociedade, de definir
um padrão de dever-ser no âmbito das “interacções humanamente significativas” em
que se inscreve o problema da interrupção voluntária da gravidez.
Tanto basta, pois, para, entendendo desrespeitada a proibição da insuficiência
no cumprimento dos deveres de protecção da vida intra-uterina, ter votado a
inconstitucionalidade, por violação do artigo 24º, n.º1, da Constituição, da
solução normativa, contida nos artigos 142º, n.º1, al.e), e n.º4, al.b), do
Código Penal, na redacção conferida pelo artigo 1º da Lei n.º16/2007, 2º, n.º2,
e 6º, n.º2, ambos da Lei 16/2007, consistente na exclusão da punibilidade da
realização, por opção da mulher, da interrupção da gravidez durante as primeiras
dez semanas de gestação, mediante a realização prévia de uma consulta
informativa na qual se encontram impedidos de participar, assim como no
acompanhamento a que haja lugar durante o período de reflexão, os médicos que
invoquem objecção de consciência.
Rui Manuel Moura Ramos