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Processo nº 877/09
1ª Secção
Relatora: Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público, B. e C. e outros, foi
interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal
Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal de 10 de Dezembro de 2008.
2. Em 16 de Dezembro de 2009 foi proferida decisão sumária, ao abrigo do
disposto no nº 1 do artigo 78º-A da LTC, pela qual se entendeu não tomar
conhecimento do objecto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«1. Respondendo ao convite que lhe foi dirigido ao abrigo do artigo 75º-A, nº 6,
da LTC, o recorrente declara que pretende também a apreciação “da
inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 223º, nº 1 do CPC”. Trata-se
de norma que não constava, de todo, do requerimento de interposição de recurso –
peça processual que define o respectivo objecto –, o que obsta à apreciação da
mesma, justificando a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
2. O recorrente requer a este Tribunal a apreciação de norma que reporta aos
artigos 145º, nº 1, e 327º do Código de Processo Penal.
Constitui requisito do recurso de constitucionalidade interposto a suscitação
prévia, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
da questão de inconstitucionalidade normativa cuja apreciação é requerida
(artigo 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da LTC). Este requisito não pode
dar-se como verificado, não podendo tomar-se conhecimento do objecto do presente
recurso, justificando-se, assim, a prolação da presente decisão (artigo 78º-A,
nº 1, da LTC).
Na motivação do recurso interlocutório interposto pelo recorrente não foi
suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada aos
artigos 145º, nº 1, e 327º do Código de Processo Penal (supra, ponto 2. do
Relatório). O recorrente sustentou apenas que, com o indeferimento da sua tomada
de declarações na sessão de julgamento de 29 de Março de 2007, foi violado o
artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (a par de outras normas de
direito infraconstitucional).
3. O recorrente requer também a apreciação da “inconstitucionalidade do artigo
412º, nº (s) 3 e 4 do Código de Processo Penal (nova redacção), com referência
ao artigo 5° do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe é dada pelo
tribunal recorrido ao aplicar todos os seus pressupostos e requisitos a um
recurso que deu entrada em juízo antes da entrada em vigor desta norma”.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, embora caiba de
decisões dos Tribunais, é um recurso normativo, ou seja, visa a apreciação da
conformidade constitucional de normas. Conforme jurisprudência reiterada e
uniforme do Tribunal Constitucional, a este cabe admitir “os recursos de
decisões dos outros tribunais que apliquem normas cuja constitucionalidade foi
suscitada durante o processo (...), identificando-se assim, o conceito de norma
jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade,
pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir
objecto de tal recurso” (Acórdão nº 361/98 e, entre muitos outros, Acórdãos nºs
286/93 e 223/2003, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No requerimento de interposição de recurso para este Tribunal e na resposta ao
convite que lhe foi feito ao abrigo do artigo 75º-A da LTC, o recorrente
refere-se à inconstitucionalidade do artigo 412º, nºs 3 e 4, do Código de
Processo Penal, na redacção vigente, com referência ao artigo 5° do mesmo
Código, quando interpretado no sentido de todos os seus pressupostos e
requisitos serem aplicáveis a um recurso que deu entrada em juízo antes da
entrada em vigor desta norma.
A questão efectivamente colocada pelo recorrente prende-se, afinal, com a
escolha da norma a aplicar – o artigo 412º, nºs 3 e 4, na redacção vigente ou na
redacção anterior –, questão que se coloca ao nível do direito ordinário.
Verdadeiramente, o que vem questionado é a decisão tomada pelo tribunal
recorrido de escolher uma e não outra norma, decisão da qual a recorrente
discorda, mas que não é sindicável pelo Tribunal Constitucional.
Escreveu-se no Acórdão do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 361/98 que
“dizer que a opção que privilegia a aplicação de uma norma em vez de outra viola
um dado princípio constitucional é, na verdade, imputar tal violação à própria
decisão, uma vez que se não está a fazer qualquer ‘interpretação normativa’ que
possa ser utilizada como regra para outras aplicações, mas apenas a fazer a
subsunção dos factos à norma aplicável”.
Como não foi posta uma questão de inconstitucionalidade normativa e este
Tribunal não tem “competência para sindicar a boa ou má aplicação do direito
infra-constitucional ao caso concreto”, nem “para aferir se essa aplicação do
direito infra-constitucional consubstancia uma decisão judicial desconforme com
a Constituição” (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 713/204, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt; itálico aditado), resta concluir que não pode
conhecer-se, também nesta parte, do objecto do recurso, justificando-se a
prolação desta decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. Notificado desta decisão, o recorrente vem agora reclamar para a conferência,
ao abrigo do nº 3 do artigo 78º-A da LTC, nos seguintes termos:
«1º
O recorrente reitera os seus fundamentos, nomeadamente, do recurso datado de
22-07-2009, tal como a resposta ao despacho de 17-11-2009.
2º
A inconstitucionalidade alegada pelo recorrente verifica-se, não apenas em
abstracto, mas no caso concreto.
3º
Aliás, tratando-se da arguição de inconstitucionalidades que se referem em
exclusivo a normas de carácter processual referentes à admissão dos recursos,
não se vislumbra como tal situação poderia ser arguida perante um tribunal a
quo, sem se saber em primeiro lugar, qual o teor da sua decisão e se da mesma
haveria necessidade de recorrer ou não.
4º
Não faz sentido arguir a inconstitucionalidade de normas processuais referentes
a recursos quando nem se sabe se haverá essa necessidade ou não.
5º
Poder-se-ia sobretudo, colocar essa questão, após a prolação da decisão e em
sede de reclamação, conforme sucedeu no presente caso, para permitir ainda ao
juiz a quo refazer a sua decisão.
6º
Assim, o recorrente suscitou a questão do juiz natural, quando o processo ainda
se encontrava na 2ª instância, bem como a inconstitucionalidade referente à
aplicação de uma lei retroactiva, isto é, na sede onde elas se verificaram.
7º
E não existem quaisquer dúvidas de que o tribunal da relação errou
flagrantemente ao aplicar uma norma legislativa a um processo que deu inicio
antes da sua entrada em vigor.
8º
O recorrente apresentou o seu recurso da dita sentença absolutória em 07-05-
2007 na 1ª instancia.
9º
Nessa data, ainda não estavam em vigor as alterações ao Código de Processo Penal
operada com a Lei 48/2007, que apenas entrou em vigor a posteriori de 29 de
Agosto de 2007, ou seja, com o recurso já instaurado.
(…)
13º
ORA, NÃO EXISTEM ASSIM QUAISQUER DÚVIDAS QUE O ACÓRDÃO DE 10-12-2008 APLICOU
RETROACTIVAMENTE E ILEGALMENTE UMA LEI PROCESSUAL A UM RECURSO, QUANDO O MESMO
FOI APRESENTADO NUMA ALTURA EM QUE A LEI QUE ALTEROU A NORMA PREVISTA NO ARTIGO
412º, Nº 4 DO CPP AINDA NÃO ESTAVA EM VIGOR, VIOLANDO EXPRESSAMENTE O ESTATUÍDO
NO ARTIGO 5º DO CPP, BEM COMO O ARTIGO 29º DA CRP.
(…)
16º
No recurso de 18-04-2007, o recorrente pretende ver discutida a
inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 327º, conjugada com o artigo
145º ambos do Código de Processo Penal, na interpretação perfilhada pelo
tribunal de 1ª instância ao não ter permitido novas declarações ao recorrente,
por violação do princípio da igualdade prevista no artigo 13º da Constituição da
República Portuguesa e que se traduz nos princípios do contraditório e da
igualdade de armas.
17º
Outrossim, o que aconteceu com a prolação do Acórdão, em que clara e
manifestamente é aplicada a alteração legislativa da Lei 48/2007, de 29/8,
referente à norma prevista no artigo 412º, nº (s) 3 e 4 do CPP a um recurso que
estava abrangido pelo regime anterior, dispensa outros comentários tendo em
conta a inequívoca inconstitucionalidade e por conseguinte a violação da Lei.
18º
Destarte, o recorrente pretende ver discutida a inconstitucionalidade do artigo
412º, nº (s) 3 e 4 do Código de Processo Penal (nova redacção), com referência
ao artigo 5º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe é dada pelo
tribunal recorrido ao aplicar todos os seus pressupostos e requisitos a um
recurso que deu entrada em juízo antes da entrada em vigor desta norma, por
violação designadamente, dos artigos nº (s), 16º, 17º e 29º da Constituição da
República Portuguesa.
(…)
24º
Também foi violado o artigo 32º, nº 9 da CRP por violação do princípio do juiz
natural, suscitando-se este facto na arguição de nulidade formulada pelo
recorrente em 06-01-2009, pretendendo ver-se discutida a inconstitucionalidade
da norma prevista no artigo 223º, nº 1 do CPC.
25º
O recorrente pretende ver discutidas todas estas inconstitucionalidades,
conjuntamente com a gravíssima inconstitucionalidade atinente ao artigo 412º, nº
(s) 3 e 4 do Código de Processo Penal.
EM CONCLUSÃO:
a) É inconstitucional a norma prevista no artigo 412º nº (s) 3 e 4 do CPP
quando aplicada retroactivamente a um recurso que deu entrada ao abrigo do
regime anterior, por violação dos artigos nº (s) 16, 17 e 29 da C.P.P.
b) A Lei 48/2007 de 29 de Agosto não se aplica ao recurso do recorrente, em
virtude de o recurso do mesmo ter sido interposto em 7 de Maio de 2007.
c) São inconstitucionais as normas previstas nos artigos nº (s) 145º e 327º
do CPP, ao não ter sido permitida a reinquirição do recorrente, por violação do
princípio da igualdade».
4. Notificados os recorridos, respondeu apenas o Ministério Público, nestes
termos:
«1º
Na Decisão Sumária de fls 1443 a 1455, decidiu-se não conhecer do recurso, no
que respeita às três questões colocadas pelo recorrente.
2º
Na reclamação dessa decisão, cabia ao recorrente invocar os argumentos que
entendesse serem pertinentes, no sentido de abalar a decisão recorrida: ou seja,
que em relação a qualquer das questões, se verificavam o pressuposto de
admissibilidade do recurso.
3º
Ora, nessa reclamação, precisamente sobre a verificação ou não desses
pressupostos, nada se diz, limitando-se o recorrente a reafirmar a
inconstitucionalidade das normas.
4º
Diremos, no entanto, que aparecendo a norma do artigo 223º, nº 1, do CPC, apenas
referida no requerimento apresentado na sequência do convite feito nos termos do
artigo 75º-A, nº 6, da LTC, parece-nos evidente que, nesta parte, não deverá
conhecer-se do objecto do recurso.
5º
Também nos parece claro que, quanto aos artigos 145º, nº 1, e 327º do CPP, não
foi suscitada durante o processo – podendo tê-lo sido - qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa que se reportasse àquelas disposições.
6º
Por último, e no que respeita aos artigos 412º, nº 3 e 4, nova redacção, com
referência no artigo 5º, todos do CPP, o que o recorrente questiona é que tendo
ocorrido numa sucessão de leis, o regime que devia ter sido aplicado era o
anterior às alterações introduzidas pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto.
7º
Ao questionar-se, nestes casos, qual a lei aplicável, embora invocando a
Constituição, é seguro que o que se está a pôr em causa é a própria decisão.
8º
Isto não significa que o conhecimento de qualquer questão relacionada com a
aplicação, no tempo, da lei processual penal, esteja sempre vedado ao Tribunal
Constitucional.
9º
Na verdade, o Tribunal pode e deve exercer a sua competência, mas exclusivamente
nos casos em que tal questão assuma contornos normativos (vd., vg. Acórdão nº
263/2009).
10º
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos decidiu-se não tomar conhecimento do objecto do recurso
quanto à norma prevista no artigo 223º, nº 1 do Código de Processo Civil, por a
mesma não constar do requerimento de interposição do recurso, peça processual
que define o respectivo objecto; quanto à norma reportada aos artigos 145º, nº 1
e 327º do Código de Processo Penal, por não ter sido observado o ónus da
suscitação, durante o processo, perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, da questão de inconstitucionalidade; quanto à inconstitucionalidade
do artigo 412º, nºs 2 e 4 do Código de Processo Penal, com referência ao artigo
5º do Código de Processo Penal, por o recorrente não colocar uma questão
normativa, antes pondo em causa a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra.
1. Quanto à questão de inconstitucionalidade reportada ao artigo 223º, nº 1 do
Código de Processo Civil, o reclamante em nada contraria o fundamento da decisão
sumária, uma vez que o fundamento da decisão de não conhecimento não foi o da
não suscitação prévia de tal questão (cf. supra artigo 24º da reclamação).
Resta, por isso, reiterar que, não constando tal disposição legal do
requerimento de interposição de recurso, não pode o Tribunal conhecer de norma a
ela reportada na sequência de resposta a convite feito ao recorrente para
indicar, com precisão, a(s) norma(s) cuja apreciação pretendia (artigo 75º-A, nº
6, da LTC). Esta resposta servia para prestar indicações em falta, para precisar
as normas que já constavam do requerimento de interposição e não para alargar o
objecto do recurso, cuja definição ocorre nesta peça processual.
2. Em bom rigor, relativamente à norma reportada aos artigos 145º, nº 1 e 327º
do Código de Processo Penal, o reclamante em nada contraria o fundamento da
decisão sumária (cf. supra artigo 16º da reclamação e alínea c) das respectivas
conclusões), uma vez que as considerações tecidas sobre arguição de
inconstitucionalidades que se referem em exclusivo a normas de carácter
processual referentes à admissão dos recursos (cf. supra artigos 3º, 4º e 5º da
reclamação) nada têm a ver com aquelas disposições legais. Importa, por isso,
reiterar que o recorrente não cumpriu o ónus da suscitação prévia (artigos 70º,
nº 1, e 72º, nº 2, da LTC) na motivação do recurso interlocutório interposto
para o Tribunal da Relação de Coimbra. Sustentar que, com o indeferimento da sua
tomada de declarações na sessão de julgamento de 29 de Março de 2007, foi
violado o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (a par de outras
normas de direito infraconstitucional) não corresponde, de todo, à satisfação
daquele ónus.
3. No que se refere à inconstitucionalidade do artigo 412º, nºs 2 e 4, do Código
de Processo Penal, com referência ao artigo 5º do mesmo Código, importa afirmar
desde logo que as considerações tecidas sobre arguição de inconstitucionalidades
que se referem em exclusivo a normas de carácter processual referentes à
admissão dos recursos (cf. supra artigos 3º, 4º e 5º da reclamação) não são
pertinentes para contrariar a decisão reclamada, uma vez que o fundamento da
decisão de não conhecimento não foi o da não suscitação prévia. A decisão
sumária estendeu-se também a esta parte do requerimento de interposição de
recurso, porque o recorrente não pôs a este Tribunal uma questão de
inconstitucionalidade normativa. Razão que não é contrariada através da
argumentação mobilizada. Pelo contrário, a reclamação revela o bem fundado do
decido.
Com efeito, a alegação de que o tribunal da relação errou flagrantemente ao
aplicar uma norma legislativa a um processo que deu início antes da sua entrada
em vigor (cf. supra artigo 7º da reclamação) e a argumentação reiterada de que é
inconstitucional a aplicação da disposição legal em causa a um recurso
interposto antes da entrada em vigor da mesma (cf. supra artigos 13º, 17º, 18º
da reclamação e alíneas a) e b) das respectivas conclusões) confirmam o carácter
não normativo do recurso interposto. O que bem se mostrava na pretensão do
recorrente em ser apreciada a “inconstitucionalidade do artigo 412º, nº (s) 3 e
4 do Código de Processo Penal (nova redacção), com referência ao artigo 5° do
Código de Processo Penal, na interpretação que lhe é dada pelo tribunal
recorrido ao aplicar todos os seus pressupostos e requisitos a um recurso que
deu entrada em juízo antes da entrada em vigor desta norma” (itálico aditado).
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2010
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão