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Processo n.º 978/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, A., no requerimento de interposição de recurso para o
Tribunal Constitucional, afirma pretender o seguinte:
“ 2. (…) ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação efectiva feita
nos autos do artigo 97° nº 5 do CPP, no sentido de que a especificação dos
motivos de facto da decisão, num incidente de recusa, não obriga à fixação
prévia dos factos provados e não provados e à explicitação do procedimento
lógico seguido pelo tribunal na formação de tal decisão, bastando uma decisão
que se apoia «…na alegação introduzida pelo requerente, seguida da argumentação
apresentada pelo visado e da análise global da situação vertida nos autos...», e
3. Da interpretação do invocado artigo 379° do CPP no sentido de que os
eventuais erros de julgamento «... só são passíveis de conhecimento por via de
recurso extravasando, por isso, o âmbito de intervenção consentido por pelo
referido artigo 379º…» “.
2. Por despacho proferido, em 07 de Outubro de 2009 (fls. 30), o Juiz-Relator
junto da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto, recusou a admissão de
recurso de constitucionalidade, com fundamento na falta de suscitação
processualmente adequada da inconstitucionalidade de qualquer das interpretações
normativas que o recorrente havia fixado como objecto do referido recurso, ou
seja, dos artigos 97º, n.º 5 e 379º, ambos do CPP.
3. Inconformado, A. reclama para a conferência prevista no artigo 78º-A, nº 3,
da LTC, nos seguintes termos:
«1. O douto acórdão de folhas 138 e seguintes não delimitou dos factos alegados
como causa de pedir da recusa, os que considera provados e não provados, nem
explicitou o procedimento lógico que levou a considerar provada a factualidade
que esteve subjacente ao mesmo e, por isso mesmo, considerou erradamente que o
fundamento do pedido foi a «... simples discordância jurídica em relação aos,
actos processuais praticados por um juiz...» já que o reclamante foi «...
restringir o fundamento da recusa ao facto de o juiz assumir reiteradamente as
posições do M°P°, sem mais... »
2. Por isso se apresenta como um arrazoado de considerações, de palpites, de
ponderação de hipóteses, em vez de factos concretos.
3. Estão, efectivamente, em discussão aspectos formais da elaboração da decisão
que, por desrespeitados, ainda que obrigatórios, levaram a uma decisão iníqua.
4. Sem acesso à decisão, era impossível prever os seus vícios de formação.
5. Por força disso, o reclamante reagiu nos termos de folhas 147 a 149, onde
arguiu as irregularidades do aludido acórdão e levantou a inconstitucionalidade
da interpretação efectuada na prática do artigo 97° nº 5 do CPP, a norma
aplicada, já que é a norma que determina como devem ser fundamentadas as
decisões que não conhecerem a final do objecto do processo, ordenando que devem
ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
No caso, discute-se a fundamentação de facto, ou melhor a ausência da
fundamentação de facto e as suas consequências.
6. Na sequência aconteceu o douto acórdão de folhas 159 a 160, onde se descartou
a posição do reclamante com o argumento de estar esgotado o poder jurisdicional,
de não ser necessário fixar os factos provados e não provados, por não
dependerem da realização de uma audiência, de não ser possível conhecer
eventuais erros de julgamento, por a decisão não admitir recurso, e de a
inconstitucionalidade arguida ser uma questão nova.
7. Não é verdade que o poder jurisdicional se tenha esgotado; não é verdade que
os factos não tenham de ser fixados, previamente à aplicação de quaisquer
normas; não é verdade que não havendo recurso, strictu sensu, de uma decisão, os
eventuais erros de julgamento não possam ser erradicados; não é verdade que a
inconstitucionalidade não possa ser arguida quando o interessado não dispôs de
oportunidade processual para levantar a questão.
8. Como foi o caso. É perfeitamente inimaginável que pretenda sustentar uma
decisão judicial onde não foram especificados os motivos de facto da decisão:
onde se não delimitem os factos subjacentes à decisão e/ou se não explique como
se chegou a eles.
9. Tal acórdão provocou o recurso de folhas 165 e 166 e a decisão que se lhe
seguiu a presente reclamação.
10. É efectivamente verdade que o douto acórdão de folhas 138 e seguintes não
delimitou os factos que estavam subjacentes à causa de pedir da recusa, como não
explicitou o procedimento lógico que o levou erradamente a considerar que os
factos subjacentes a tal pedido eram, «... sem mais...» «... a simples
discordância jurídica em relação aos actos processuais praticados por um juiz...
»
11. Como explicitamente se disse a folhas 159/v, quando se questionava
exclusivamente a fundamentação de facto do decidido a folhas 138 e seguintes, «…
o acórdão visado apresenta a sua fundamentação respaldado no texto da lei e
apoiado em alguma jurisprudência, a que se seguiram considerações de
enquadramento geral de justificação lógica...»
Afinal o acórdão de folhas 138 e seguintes está ou não fundamentado de facto? A
fundamentação de facto é coisa tão inócua que nem sequer merece tratamento? É
possível aplicar normas sem que previamente se fixem os factos segundo as regras
de fixação dos mesmos?
12. 0 reclamante não questiona considerações. Quer é que se fique
definitivamente a saber quais são os factos que permitiram o acórdão de folhas
138 e seguintes e como se chegou a eles. Onde estavam alegados antes e como -
que procedimento lógico foi seguido - foram fixados. É que o que se concluiu no
acórdão, porque se não respeitou o ditame legal, que se pondera na causa de
pedir da recusa, sem mais, a simples discordância jurídica em relação aos actos
processuais praticados pelo senhor juiz visado, é uma monstruosa falsidade.
13. É que a norma aplicável (artigo 97° nº 5 do CPP), a que se quer fugir, mas
que é a que está em questão, obriga a que na fundamentação das decisões
judiciais sejam especificados - particularizados, mencionados, indicada a
espécie de - os motivos de facto e de direito da decisão. Se se consideram como
sustentando o decidido estes ou aqueles factos, temos o direito de saber não só
quais são, como donde vieram e ainda a razão pela qual se consideram apurados,
aceites para sustentarem o decidido.
14. O reclamante não tinha outra forma de reagir ao acórdão de folhas 138 e
seguintes a não ser como o fez, arguindo a sua falta de fundamentação de facto e
questionando a constitucionalidade da interpretação efectuada da norma que
determina a forma de tal género de fundamentação nas decisões similares às do
aludido acórdão. O reclamante não tinha tido oportunidade processual de
questionar antes tal interpretação, perfeitamente inaudita e imprevisível. A
aceitar-se a tese da decisão de folhas 159/60, a fundamentação de facto seria
equivalente ao arbítrio puro.
15. Por maioria de razão, a inconstitucionalidade da interpretação efectuada a
folhas 159/60 do artigo 379° do CPP, que nem sequer nunca tinha sido invocado ou
previsto.
Termos em que, deve ser ordenado que o recurso interposto seja admitido,
porquanto o reclamante não teve oportunidade processual de levantar a questão da
inconstitucionalidade da interpretação efectivamente efectuada, na decisão de 27
de Julho, do artigo 97° n°5 do CPP no sentido de não ser necessário para
fundamentar de facto uma decisão judicial, a especificação de entre os factos
alegados, os provados e não provados e como se chegou a eles, antes de conhecer
o teor do douto acórdão de folhas 138 e seguintes, por tão inaudito ele se
apresentar nesse particular, como não tinha tido oportunidade processual de
questionar a interpretação efectuada do artigo 379° do CPP, realidades que foram
devidamente expressas a folhas 165/6.» (fls. 1 a 3).
4. Em sede de vista, o Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no
sentido da improcedência da reclamação ora em apreço, nos seguintes termos:
«1. O Acórdão da Relação do Porto que decidiu indeferir o pedido de recusa do
juiz, formulado pelo arguido, encontra-se devidamente fundamentado.
2. Aliás, o reclamante, quando arguiu a sua nulidade, não questionou a falta de
fundamentação.
3. Nessa arguição, o que vem questionado é o facto de a fundamentação não ser
exactamente nos moldes exigidos pelo artigo 97º, nº 5, do CPP.
4. Ora, o que o Tribunal da Relação entendeu, foi que, dada a matéria específica
tratada no acórdão, as exigências constantes daquele preceito não poderiam ser
transportadas automaticamente, para uma decisão que julgasse um incidente de
recusa do juiz.
5. Parece-nos, pois, que a dimensão normativa que o recorrente pretende ver
apreciada, não coincide integralmente com a que foi aplicada na decisão
recorrida.
6. Por outro lado, estando a decisão devidamente fundamentada, a questão de
constitucionalidade colocada pelo recorrente, tal como ele coloca, sempre seria
de considerar manifestamente infundada.
7. Pelo anteriormente exposto, deve a reclamação ser indeferida.» (fls. 34 e 35)
5. Por ter sido invocado um novo fundamento para a rejeição do recurso
interposto, em sede de parecer proferido pelo Ministério Público, a Relatora
convidou o recorrente a pronunciar-se sobre o mesmo, através de despacho
proferido em 05 de Janeiro de 2010. Na sequência desse convite, o reclamante
viria a apresentar o seguinte requerimento:
«Não tem razão o Mº Pº cuja posição parte de dois equívocos, a saber:
- que não seja a falta de fundamentação que está em discussão, e que,
mesmo mais especificamente, não seja a falta de fundamentação nos termos em que
a lei o exige, isto é, nos termos do artigo 97º nº 5 do CPP. Foi sempre a falta
de fundamentação, nos termos impostos pela lei ordinária, nos termos impostos
por esse concreto normativo, que o reclamante questionou;
- que não tenha sido essa a dimensão normativa efectivamente aplicada,
apesar de a decisão recorrida se defender que não tem que, em caso de incidente
de recusa, previa e justificadamente fixar os factos objecto da causa de pedir,
como se fosse possível aplicar normas concretas sem previamente se delimitarem
os factos a que se irão aplicar.
Deve, pois, a reclamação ser conhecida e provida.» (fls. 38).
Cumpre agora apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
6. Quanto à interpretação do artigo 379º do CPP, alegadamente aplicada pelo
despacho de fls. 159 e 169, que indeferiu a arguição de nulidade do acórdão
proferido pelo tribunal “a quo”, importa notar que o ora reclamante nunca
suscitou, de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade da mesma,
nem sequer no referido requerimento de arguição de nulidades (fls. 147 a 149). E
não vinga a tese segundo a qual a aplicação daquele preceito legal seria
imprevista.
Com efeito, a interpretação do artigo 379º do CPP aplicada, no presente caso,
corresponde à aplicação literal do preceito, afigurando-se como norma central na
solução da questão controvertida, visto que é aplicável a todas as situações de
nulidade de sentença. Como tal, o ora reclamante não poderia deixar de antecipar
a potencial aplicação de tal interpretação normativa, pelo que, não constituindo
decisão-surpresa, não se admite a dispensa do ónus de prévia e adequada
suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa, conforme imposto pelo
n.º 2 do artigo 72º da LTC.
Assim, quanto à interpretação normativa relativa ao artigo 379º do CPP,
confirma-se o despacho de rejeição proferido pelo Juiz-Relator junto do tribunal
recorrido, por falta de suscitação processual adequada da questão de
inconstitucionalidade, ficando este Tribunal impedido de conhecer do objecto do
recurso, quanto a esta parte, por força do n.º 2 do artigo 72º da LTC.
7. Já quanto à interpretação normativa do artigo 97º, n.º 5 do CPP, tal como
configurada pelo ora reclamante, no requerimento de interposição do recurso,
acima transcrito, ela foi efectivamente acolhida pelo tribunal “a quo”. Acresce
ainda que a questão de inconstitucionalidade foi adequadamente suscitada, no
requerimento de arguição de nulidade, apresentado, em 3 de Agosto de 2009, pelo
que cumpre as exigências do n.º 2 do artigo 72º da LTC, conforme resulta de
jurisprudência consolidada neste Tribunal.
Porém, conforme notado pelo parecer do Ministério Público, o recurso interposto
poderia ser alvo de rejeição por, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, ser “manifestamente infundado”. Ora,
tal constitui fundamento de rejeição do recurso, nos termos da parte final do
n.º 2 do artigo 76º da LTC.
Com efeito, ainda que a decisão recorrida pudesse não cumprir todos os
requisitos constantes do n.º 5 do artigo 97º do CPP, certo é que aquela se
encontra devidamente fundamentada, sendo clara, perceptível e coerente do ponto
de vista da lógica argumentativa. Tanto assim é que o próprio reclamante, ao
arguir a nulidade daquela decisão, nem sequer invocou como causa de nulidade a
falta de fundamentação. Ora, conforme a jurisprudência consolidada neste
Tribunal tem vindo a afirmar, apesar de consagrar o dever (e o correspectivo
direito) de fundamentação das decisões jurisdicionais (artigo 205º, n.º 1, da
CRP), a Constituição não fixa propriamente – de modo esgotante – qual a extensão
e o alcance óptimo desse dever de fundamentação. Por exemplo, através do Acórdão
n.º 680/98 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) foi
relembrado que:
«É certo que a Constituição não determina, ela própria, o alcance do dever de
fundamentar as decisões judiciais, remetendo para a lei a definição do
respectivo âmbito. Certo é também, igualmente, que o legislador, ao concretizar
a liberdade de conformação que a Constituição lhe confere, não a pode reduzir de
tal forma que, na prática, venha a inutilizar o princípio da fundamentação.
Como se escreveu no acórdão nº 310/94 deste Tribunal (Diário da República, II,
de 29 de Agosto de 1994), ficou “devolvido ao legislador, em último termo, o seu
‘preenchimento’, isto é, a delimitação do seu âmbito e extensão. Com efeito, o
legislador constituinte consagrou o dever de fundamentação das decisões
judiciais – fê-lo na revisão constitucional de 1982 –, em termos prudentes,
evitando correr o risco de estabelecer uma exigência de fundamentação demasiado
extensa e, por isso, inapropriada e excessiva. Daí o ter-se limitado a consagrar
o aludido princípio ‘em termos genéricos’, deixando a sua concretização ao
legislador ordinário.
Isso não significa, tal como se vincou nos arestos citados deste Tribunal (cfr.
ponto 8. do acórdão citado), que assiste ao legislador ordinário uma liberdade
constitutiva total e absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de
fundamentação das decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a
imposição constitucional.
Do princípio consagrado no artigo 208º, nº 1, da Constituição, enquanto garantia
integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (artigo 2º),
há-de decorrer para o legislador, pelo menos, a obrigação de prever a
fundamentação das ‘decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa
em juízo, como instrumento de ponderação e legitimidade da própria decisão
judicial e de garantia do direito ao recurso’ (cf. J. J. Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 1993, pp. 798-799). De qualquer modo, os limites a tal liberdade
constitutiva do legislador (ou ‘discricionaridade’ legislativa) hão-de ser muito
largos e respeitar a um núcleo essencial mínimo de decisões judiciais. De outro
modo, na verdade, ‘subverter-se-á o próprio sentido da cláusula constitucional
(que é intencionalmente o de uma ‘incumbência’ ao legislador) e o seu citado
propósito cautelar” (...).»
Daqui pode extrair-se que a Lei Fundamental apenas exige que as decisões
jurisprudenciais sejam alvo de fundamentação, ou seja, de uma justificação
clara, perceptível e coerente dos raciocínios de facto e de Direito que
conduziram à tomada de determinada posição.
Ora, a Constituição não exige que a fundamentação da decisão seja feita segundo
o modelo previsto no art. 97º, nº 5, do CPP, pelo que é manifestamente infundada
a questão de constitucionalidade suscitada pelo reclamante, sendo certo que do
teor da decisão são clara, perceptível e coerentemente dedutíveis as razões
pelas quais o tribunal a quo decidiu.
Em suma, por se tratar de questão “manifestamente infundada”, de um ponto de
vista estritamente jus-constitucional, deve o recurso interposto ser rejeitado,
também quanto à questão normativa levantada pela aplicação do n.º 5 do artigo
97º do CPP.
III – DECISÃO
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3
do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada
pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente
reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo reclamante em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º
do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2010
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão