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Processo n.º 35/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão:
“1. Revelam os autos o seguinte:
a) O Tribunal de Família e Menores de Cascais, por sentença de 22 de Abril de
2008, aplicou a um menor, neto da recorrente, a medida de confiança a
instituição com vista a futura adopção, ao abrigo dos artigos 35.º, n.º 1,
alínea g), 38.º e 8.º-A da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei
n.º 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto).
b) O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 21 de Outubro de 2008 (fls.
648 e segs.), confirmou essa decisão;
c) A recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de
Justiça e, no mesmo requerimento, para a hipótese de se entender que esse
recurso não era admissível, para o Tribunal Constitucional (fls. 700);
d) No Tribunal da Relação, o recurso foi admitido para o Supremo Tribunal de
Justiça;
e) Subindo o Processo ao Supremo Tribunal de Justiça, o Relator proferiu
despacho a rejeitar o recurso por não admissível, face ao disposto no n.º 2 do
artigo 1411.º do Código de Processo Civil;
f) A recorrente reclamou deste despacho para o Presidente do Supremo Tribunal de
Justiça;
g) O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu despacho no sentido de
que não lhe cabia, mas à conferência, o poder de conhecer da reclamação;
h) Por acórdão de 25/6/2009, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu não admitir a
reclamação.
i) A recorrente apresentou um requerimento em que simultaneamente arguiu a
nulidade desse acórdão, interpôs dele recurso para o Tribunal Constitucional e
reiterou o interesse no recurso do acórdão de 21 de Outubro de 2008 para o
Tribunal Constitucional;
j) Por acórdão de 5 de Novembro de 2009, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu
a arguição de nulidades do acórdão de 25 de Junho de 2009;
k) Notificada deste acórdão, a recorrente apresentou um requerimento em que
pediu a remessa dos autos para o Tribunal Constitucional, a fim de serem
apreciadas as questões suscitadas no Tribunal da Relação de Lisboa e em 1.ª
instância”.
l) Foi proferido despacho a mandar baixar o processo ao Tribunal da Relação para
apreciar o requerimento referido na alínea que antecede;
m) No Tribunal da Relação, foi proferido despacho com referência ao requerimento
referido na alínea k) a admitir o recurso para o Tribunal Constitucional;
n) O requerimento de interposição do recurso relativo ao acórdão da Relação é do
seguinte teor:
“(...)
III) A recorrente declara também aqui, manter interesse no recurso interposto no
Tribunal da Relação de Lisboa, a fls… (26.10.2008) para o Tribunal
Constitucional, nos termos e com os fundamentos seguintes:
- O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70 da LTC (Lei
28/82 de 15.11).
- Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos
seguintes, arts 4 e 35 da LPCJP) quando interpretadas no sentido de permitir que
o Tribunal opte pela Adopção, quando há uma avó, de 54 anos, trabalhadora
activa, com competências parentais para cuidar de seu neto, capacidade
financeira, plena integração, social, familiar e profissional e perfeitamente
estável emocionalmente.
- Tais normas – arts 4 e 35 da LPCJP, interpretadas no sentido de encaminhar um
menor para a adopção, nas circunstâncias em que a 1ª e 2ª Instância o fizeram,
violam o disposto no artº 36º da Constituição da República Portuguesa.
- Pretende ver-se apreciada a constitucionalidade da norma dos arts 4 e 35 da
LPCJP, por violação do disposto no art. 36 da CRP, quando interpretadas (as
primeiras) no sentido de permitir que o Tribunal opte pela Adopção, quando há
uma avó, de 54 anos, trabalhadora activa, com competências parentais para cuidar
de seu neto, capacidade financeira, condições habitacionais, plena integração,
social, familiar e profissional e perfeitamente estável emocionalmente.
- Persistindo o TRL em julgar tal decisão conforme com a Constituição, pretende
ver-se apreciada a conformidade da identificada interpretação (arts 4 e 35 da
LPCJP) com o Diploma Fundamental (art. 36).
- As questões de inconstitucionalidade, foram expressamente suscitadas, nas
alegações/motivações de recurso, na primeira instância.
- O presente recurso subirá imediatamente, nos próprios autos e com efeito
suspensivo.
Invoca o apoio judiciário concedido em primeira instância.
Termos em que requer a V. Exa. se digne admiti-lo, seguindo-se os demais termos
legais, até final.”
2. A conturbada marcha processual que a exposição antecedente deixa
transparecer, justifica que se torne claro um ponto prévio. Objecto do presente
recurso de constitucionalidade é o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
21 de Outubro de 2008 (fls. 648/684) – por evidente lapso, a recorrente
identifica o acórdão como sendo de 26 de Outubro de 2008 – que, negando
provimento a recurso interposto pela ora recorrente, confirmou a decisão do
Tribunal de Família e Menores de Cascais que aplicou ao seu neto a medida de
confiança a instituição com vista a futura adopção.
E tem de considerar-se definitivamente resolvida a questão da
(ir)recorribilidade desse acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. De outro
modo, não seria admissível o recurso do acórdão da Relação.
Efectivamente, com o requerimento de fls. 844 em que pede a remessa dos autos ao
Tribunal Constitucional para apreciação das questões suscitadas no Tribunal da
Relação, a recorrente desiste implicitamente do recurso de constitucionalidade
interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Na verdade, face ao
princípio da exaustão dos meios ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC) e ao
disposto no n.º 2 do artigo 75.º da LTC, só por se considerar definitiva a
decisão do Tribunal da Relação seria este susceptível de recurso.
Aliás, a recorrente não reagiu face à simples remessa do processo pelo Supremo
Tribunal de Justiça ao Tribunal da Relação, sem expressa pronúncia sobre o
recurso interposto para o Tribunal Constitucional (despacho de fls. 851), o que
implica a aceitação de que a decisão que não admitiu recurso para o Supremo se
tornara definitiva.
3. Isto posto, o recurso não pode prosseguir, o que imediatamente se decide ao
abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC).
Com efeito:
A)
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC só pode ser
interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de
modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (alínea b) do n.º 1
do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
A recorrente diz ter dado cumprimento a esse ónus nas alegações/motivação de
recurso interposto da decisão de 1.ª instância. Mas essa afirmação não
corresponde ao que os autos evidenciam. Percorridas as alegações de fls. 572/577
nenhuma questão de constitucionalidade normativa nelas se descortina. A
recorrente insurge-se contra a apreciação dos factos e a interpretação e
aplicação da lei efectuada pelo tribunal de 1ª instância, mas não coloca
tribunal superior perante uma qualquer questão de desconformidade das normas
aplicadas a regras ou princípios constitucionais.
Aliás, já o acórdão do Tribunal da Relação de 16 de Dezembro de 2008, que recaiu
sobre arguição de nulidades do acórdão de 21 de Outubro (acórdão recorrido),
salientara, precisamente, que nenhuma questão de constitucionalidade fora
colocada para esse Tribunal resolver.
Consequentemente, o recurso não pode prosseguir por não ter sido previamente
suscitadas, de modo processualmente adequado, quaisquer questões de
constitucionalidade incidente sobre normas extraídas dos preceitos legais que a
recorrente identifica.
B)
A isto acresce que as questões que a recorrente identifica no requerimento de
interposição não constituem objecto idóneo para o recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade, tal como a Constituição (artigo 280.º da CRP) e
a Lei (artigo 70.º da LTC) o configuram.
Efectivamente, no nosso sistema jurídico ao Tribunal Constitucional apenas cabe
apreciar questões de constitucionalidade que incidam sobre as normas aplicadas
(ou a que seja recusada aplicação com fundamento em inconstitucionalidade) pelas
decisões recorrida. Ora, saber se “há uma avó, de 54 anos, trabalhadora activa,
com competências parentais para cuidar do seu neto, capacidade financeira, plena
integração, social, familiar e profissional e perfeitamente estável
emocionalmente” é questão de julgamento do caso, não de confronto da norma com a
Constituição. Os tribunais da causa fizeram sobre a realidade um juízo diferente
daquele que essa proposição enuncia, domínio esse em que a sua decisão é
soberana. O que, visto por outro ângulo significa que não pode dizer-se que
tenham feito dos artigos 4.º e 35.º da LPJCP a interpretação que a recorrente
refere.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) UCs, sem prejuízo
do benefício de apoio judiciário.”
2. A recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
“Maria Fátima Carvalho Seixas, Recorrente, inconformada com a decisão sumária
que não conheceu o objecto do recurso, vem dela reclamar para a conferência, o
que faz aqui, nos termos e com os fundamentos seguinte:
Há diversas questões de inconstitucionalidade para decidir.
Na motivação do recurso de 1ª Instância para a Relação, foram suscitadas
diversas questões de inconstitucionalidade.
“O Acórdão de que aqui se recorre, violou os superiores interesses do menor, o
disposto nos arts. 4 e 35 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo,
preceitos estes que foram interpretado em violação do artigo 36 da Constituição
da República Portuguesa.” Devem, por isso, interpretar-se correctamente os
citados preceitos legais (arts 4 e 35 da LPCJP) em conformidade com o artigo 36
da Constituição de República Portuguesa, revogando-se a decisão recorrida, que
deverá ser substituída por outra que confie o menor à ora recorrente (art. 35
n.º 1 alínea b da LPCJP), ainda que inicialmente, por períodos experimentais de
seis meses, renováveis, com monitorização das entidades competentes.
Nada foi apreciado. O que consubstancia omissão de pronuncia.
Nas motivações do recurso apresentado na Relação, para o STJ, voltaram a ser
suscitadas as mesmas questões de inconstitucionalidade. Nada foi apreciado. O
que consubstancia omissão de pronuncia.
No requerimento de fls. 844 a recorrente não desistiu do recurso interposto para
o Tribunal Constitucional. Como resulta do próprio requerimento, a recorrente
declara expressamente “quando se entenda não ser admissível recurso . . . “,
questão que é bem diferente da renuncia ao recurso. Nem da lei resulta que, tal
requerimento, nos moldes em que foi apresentado, possa implicar renuncia ou
desistência ao direito de recorrer.
Termos em que deve ser proferido Despacho que conheça os recursos interpostos
pela recorrente.”
3. O Ministério Público respondeu:
1º
Na Decisão Sumária de fls. 887 a 892, decidiu-se não conhecer do objecto do
recurso, porque a recorrente não suscitara durante o processo uma questão de
inconstitucionalidade normativa.
2º
Quanto à desistência do recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça, que a recorrente refere na reclamação agora apresentada, dir-se-á que
não lhe assiste qualquer razão.
3º
Na verdade, considerou-se na decisão reclamada, que o pedido de remessa dos
autos ao Tribunal Constitucional para apreciação das questões suscitadas no
Tribunal da Relação (requerimento de fls. 844), equivalia a uma desistência do
recurso de constitucionalidade interposto do acórdão do Supremo Tribunal de
Justiça.
4º
A recorrente afirma agora que não desistiu daquele recurso, porque como
resultava do próprio requerimento, declarara expressamente o seguinte: “quando
se entende não ser admissível recurso (...)“
5º
Ora, esta afirmação não consta do requerimento de fls. 844.
6º
Por outro lado, como se diz na decisão reclamada, só seria possível conhecer do
recurso de constitucionalidade interposto do acórdão da Relação, se se
entendesse que dele já não cabia recurso, mostrando-se, pois, esgotados os
recursos ordinários que, no caso, caberiam.
7º
Poderíamos ainda acrescentar que, não tendo o Supremo Tribunal de Justiça
admitido o recurso, não aplicou, nem podia ter aplicado, as normas referidas
pela recorrente e que têm a ver, exclusivamente, com o mérito da causa.
8.º
Quanto à não suscitação de forma adequada da questão de inconstitucionalidade
normativa, tal conclusão só pode sair reforçada pelo que a recorrente afirma na
reclamação.
Aí, diz-se, elucidativamente, o seguinte:
“O Acórdão de que aqui se recorre, violou os superiores interesses do menor, o
disposto nos art.ºs 4.º e 35.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em
Perigo, preceitos esses que foram interpretados com violação do artigo 36.º da
Constituição
( )“
9º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
4. A reclamação é manifestamente infundada, não chegando o
recorrente a atacar qualquer dos fundamentos da decisão reclamada.
De todo o modo, quanto aos argumentos ou fundamentos que é possível
vislumbrar na reclamação, sempre se dirá o seguinte:
Quanto ao primeiro desses fundamentos, a eventual circunstância de
ter havido omissão de pronúncia, por parte dos tribunais da causa quanto à
apreciação de questões de inconstitucionalidade que perante eles tivessem sido
suscitadas não tem qualquer reflexo na admissibilidade de recurso para o
Tribunal Constitucional. Trata?se, se existir, de vício da estrutura dessas
decisões que, por um lado, não incumbe ao Tribunal Constitucional apreciar, e,
por outro, não integra qualquer dos tipos de recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC.
E quanto ao segundo, reafirma-se que a decisão recorrida só pode
consistir no acórdão do Tribunal da Relação e, para isso, tem de entender-se
como definitivamente resolvida a questão da recorribilidade desse acórdão para o
Supremo Tribunal de Justiça. Efectivamente, foi esse o recurso que foi admitido
(fls. 875; cfr. alíneas k), l) e m) do n.º 1 da decisão sumária).
E como na decisão reclamada se refere, só a circunstância de se entender que
estava definitivamente resolvida a questão do recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça permite que se interponha recurso do acórdão da Relação, uma vez que só
cabe recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC de decisões
relativamente às quais se tenha esgotado (ou se tenha renunciado) aos recursos
ordinários que no caso caberiam (cfr. artigo 70.º, n.ºs 2, 3 e 4 e artigo 75.º,
n.º 2, da LTC). Num recurso deste tipo, não é logicamente possível interpor
simultaneamente recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do tribunal
inferior para apreciação da constitucionalidade das normas aplicadas na solução
das questões que se pretendeu, sem sucesso, submeter ao tribunal superior e da
decisão deste que não admitiu o recurso. É precisamente a estabilização desta
decisão que permite afirmar que estão esgotados os meios ordinários
relativamente à decisão do tribunal inferior, que é condição de recorribilidade
de “decisões negativas de inconstitucionalidade” proferidas por tribunais que
não se encontrem no vértice da hierarquia da ordem jurisdicional respectiva.
Aliás, não é exacto que o requerimento de fls. 844 contenha a
expressão que a recorrente refere. Mas como bem salienta o Exmo.
Procurador-Geral Adjunto, ainda que se admitisse que a decisão recorrida pudesse
ser o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nunca o recurso poderia ser
admitido porque este acórdão, limitando-se a julgar inadmissível uma reclamação
para a conferência e negando-se a apreciá-la, não aplicou, nem podia ter
aplicado, as normas referidas pela recorrente que respeitam, exclusivamente, ao
mérito da causa.
5. Decisão
Pelo exposto decide-se indeferir a reclamação e condenar a
recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs, sem
prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Lx., 10/2/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão