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Processo n.º 339/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Judicial da Comarca de Caminha, em
que é recorrente o MINISTÉRIO PÚBLICO e recorrido A., foi interposto recurso de
constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da
decisão daquele Tribunal de 16.10.2008, na parte em que recusou a aplicação, com
fundamento em violação dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da
Constituição, da norma ínsita no artigo 1817.º, n.º 4, do Código Civil.
2. O presente recurso emerge de acção de investigação de paternidade, intentada
por A. contra B., na qual, além do mais, o réu invocou a excepção de caducidade
do direito de autor.
Por decisão em despacho saneador, ora recorrida, o Tribunal Judicial da Comarca
de Caminha julgou improcedente a referida excepção, tendo para o efeito recusado
a aplicação da norma do artigo 1817.º, n.º 4, do Código Civil, na sua segunda
parte (aplicável ao caso ex vi artigo 1873.º do mesmo Código), com fundamento na
inconstitucionalidade do prazo aí fixado para a proposição da acção (prazo de um
ano a contar da data em que o tratamento como filho, pelo pretenso pai, tenha
cessado voluntariamente).
A fundamentação da decisão recorrida é a seguinte, na parte que agora releva:
«(…) o n.° 1 da mesma norma foi julgado, com força obrigatória geral,
inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.°, n.°
1, 36.°, n.° 1, e 18.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, pelo
Acórdão do Tribunal Constitucional proferido em 10 de Janeiro de 2006 e
publicado no Diário da República, I Série-A, n.° 28, de 28 de Fevereiro de 2006.
Deveremos retirar consequências relativamente aos restantes números do artigo em
causa, designadamente, quanto ao n.° 4, invocado pelo Réu?
Pensamos que sim.
E neste ponto acompanhamos as considerações tecidas no Acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça de 23.10.2007, que tomamos a liberdade de citar: “As mesmas
razões, salvo o devido respeito, se colocam face aos demais números do artigo
1817.°, pois nuns e noutros casos, o que sempre está presente é o direito à
identidade pessoal, ao bom nome e reputação, à dignidade pessoal e genética do
investigante, direitos de tal modo elevados que não podem ser limitados por
prazos curtos. (...) Não se colocam de resto aos investigados situações de risco
de caírem nas malhas dos “caça fortunas”, pois os avanços científicos,
designadamente na área do ADN, são de tal maneira elevados que não dão margem a
prémios por jogos oportunísticos na determinação científica a cadeia biológica,
nem conduzem à determinação da paternidade/maternidade com base em elementos
inseguros de prova. (...) A lei ordinária acabou já com a indicação no registo
com a enunciação de filho de pai ou mãe incógnito. (...) Com a
inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817.° foram postos em causa as últimas
résteas, a nível de restrições legais, que inviabilizavam a investigação da
paternidade ou maternidade para além de um curto prazo de tempo”.
Consideramos, pois, que a norma constante do n.°4 do artigo 1817.° do Código
Civil é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos
16.°, n.° 1, 36.°, n.°1, e 18.°, n.° 2, da Constituição da República
Portuguesa.»
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. Não há interesse processual em apreciar a questão de inconstitucionalidade
da norma desaplicada, o n.° 4 do artigo 1817.° do Código Civil, porque, sendo
aplicável aos processos pendentes o regime inovatoriamente definido pela Lei n.°
14/2009, de 01 de Abril, por força da disposição transitória do respectivo
artigo 3.°, independentemente do juízo que viesse a ser formulado, sobre a
constitucionalidade, tal não teria qualquer repercussão no julgamento da causa.
2. A declaração de inconstitucionalidade, operada pelo Acórdão n.° 23/2006, não
pode ser interpretada como implicando um regime de irremediável
imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, mesmo quando
intentadas após a cessação do tratamento como filho, conduzindo à
inconstitucionalidade consequencial do prazo previsto na segunda parte do n.° 4
do artigo 1817.º do Código Civil aplicável por força do artigo 1873.° do mesmo
Código.
3. O prazo de um ano, posterior à cessação do tratamento como filho, para a
propositura da acção de investigação (segunda parte do n.° 4 do artigo 1817.°) é
suficiente e adequado para o investigante mover a acção contra o pretenso
progenitor, não se perspectivando qualquer obstáculo, objectivo ou subjectivo,
relevante a que o autor, com 60 anos de idade, a pudesse ter instaurado
tempestivamente, não sendo, por isso, tal norma inconstitucional.
4. Termos em que deverá proceder o presente recurso.»
4. O recorrido contra-alegou, concluindo o seguinte:
«I) Aplicar-se ao caso dos autos — acção proposta em 03/06/2008 — a disposição
transitória constante do artigo 3.° da Lei 14/2009 configura uma manifesta
violação do princípio constitucional da justiça e da tutela da confiança
contidos no princípio do estado de direito democrático, decorrente do artigo 2.°
da Constituição da República Portuguesa;
II) Nesta conformidade, não sendo aplicável qualquer prazo de caducidade ao
direito de acção que se pretende fazer valer, à data da sua propositura, em
30/06/2008, deve ser declarada a inconstitucionalidade material do artigo 3.° da
Lei 14/2009 e, consequentemente, recusada a aplicação de tal norma ao presente
caso;
III) O STJ — posteriormente ao acórdão n.° 23/2003 deste Tribunal Constitucional
— vem invariavelmente decidindo que a declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral do prazo previsto no artigo 1817.°, n.° 1 do C.C.,
suprimia todos os prazos, isto é, deixava de sujeitar a qualquer prazo a
propositura de uma acção de investigação de paternidade;
IV) Assim, a decisão recorrida, que concluiu pela inconstitucionalidade da norma
do n.° 4 do artigo 1817.° do C . C., como decorrência da declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do n.° 1 do mesmo preceito,
não merece censura, por estar de acordo com as mais modernas posições quer da
Jurisprudência, quer da Doutrina Portuguesas;
Nesta conformidade, deve o recurso improceder, com todas as consequências
legais.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
A) Questão prévia: (in)utilidade do recurso
5. Nas suas alegações, o Ministério Público questionou a utilidade do presente
recurso, invocando, em síntese, que a nova redacção do artigo 1817.º do Código
Civil, resultante da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, é aplicável ao caso dos
autos, não se revestindo de qualquer efeito útil a apreciação da
inconstitucionalidade da norma na anterior versão. Mais salienta que, ainda que
se entenda que o tribunal recorrido não possa já decidir sobre tal questão (a da
aplicação do novo regime), sempre será à luz deste novo regime que a acção será
julgada em sede de recurso ordinário.
O recorrido contrapôs que, na sua perspectiva, a norma do artigo 3.º da Lei n.º
14/2009 é inconstitucional, na medida em que a aplicação deste preceito às
acções pendentes (intentadas após a declaração de inconstitucionalidade com
força obrigatória geral do n.º 1 do artigo 1817.º do CC), como é o caso da
presente acção, constitui uma projecção retroactiva desta lei nova aos processo
pendentes que, além do mais, frustra a confiança do aqui recorrido num
«entendimento unânime, claro e indiscutível de que a propositura deste tipo de
acção não estava sujeita a qualquer prazo», violando o princípio da tutela da
confiança contido no princípio do estado de direito democrático.
Saliente-se, em primeiro lugar, que não cabe no âmbito do presente recurso
apreciar a inconstitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, agora
invocada pelo recorrido.
No que respeita à questão suscitada nas alegações do Ministério Público, não
obstante a pertinência da mesma, temos de concluir em sentido contrário, no
sentido da utilidade do presente recurso.
É verdade que a nova redacção do artigo 1817.º do Código Civil, introduzida pela
Lei n.º 14/2009 (que, nomeadamente, aumentou o prazo aqui em causa de um para
três anos) seria neste momento aplicável ao caso dos autos (por força do
disposto no artigo 3.º da referida Lei n.º 14/2009, que determina a sua
aplicação aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor). No entanto, o
despacho aqui recorrido foi proferido em 16.1.2009, portanto em data anterior à
entrada em vigor da Lei n.º 14/2009 (que ocorreu em 2.4.2009 – cfr. artigo 2.º
da Lei).
Significa isto que na hipótese de o Tribunal confirmar o juízo de
inconstitucionalidade constante da decisão recorrida, esta se manterá
inalterada, excepto se da mesma for interposto recurso. A interposição de
recurso, embora provável, não é, contudo, certa, pois depende da vontade da(s)
parte(s) com legitimidade para accionar tal mecanismo processual.
O Tribunal não pode, por isso, basear um juízo de (in)utilidade da sua decisão
assente no pressuposto (incerto) de que posteriormente irá ser interposto
recurso do despacho saneador aqui recorrido e no pressuposto (igualmente
incerto, porque nem sequer sindicável por este Tribunal) de que o tribunal ad
quem irá aplicar a nova redacção do preceito ao caso dos autos.
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão n.º 626/2009, a propósito de questão
idêntica, mas respeitante à norma do n.º 3 do artigo 1817.º do Código Civil (na
redacção anterior à lei n.º 14/2009), onde se lê:
«Daí que não tenha sentido antecipar-se, num juízo probabilístico, a posição
dessas instâncias [instâncias superiores à instância recorrida], cuja
intervenção ainda é incerta, para se verificar a utilidade da intervenção do
Tribunal Constitucional.
E o facto de posteriormente à emissão da decisão recorrida ter sido alterada a
norma cuja aplicação foi recusada, isso também não influi na utilidade do
conhecimento do mérito dessa desaplicação, uma vez que esta foi determinante do
sentido da decisão recorrida, pelo que o julgamento pelo Tribunal Constitucional
da questão de constitucionalidade colocada terá reflexo na manutenção dessa
concreta decisão.»
Pelo exposto, conclui-se pela utilidade do presente recurso.
B) Mérito do recurso
6. A norma objecto do recurso
A norma do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, na redacção da Lei n.º 21/98,
de 12 de Maio, estabelece o seguinte:
«4. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe, sem que tenha
cessado voluntariamente esse tratamento, a acção pode ser proposta até um ano
posterior à data da morte daquela; tendo cessado voluntariamente o tratamento
como filho, a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano a contar da data
em que o tratamento tiver cessado.» (destacado nosso).
A decisão recorrida recusou a aplicação da segunda parte desta norma, com
fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos “artigos 16.º, n.º 1,
36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição”. Em consequência desta recusa de
aplicação, julgou improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada
pelo réu na acção.
A questão a decidir é, assim, a da constitucionalidade da norma do n.º 4 do
artigo 1817.º do Código Civil, enquanto aplicável à acção de investigação de
paternidade por força do disposto no artigo 1873.º do mesmo Código, no segmento
que, para os casos em que o investigante é tratado como filho pelo pretenso pai,
fixa o prazo de caducidade do direito à investigação da paternidade em um ano, a
contar da cessação voluntária do tratamento como filho.
Redunda manifesto do teor da decisão recorrida que esta se estribou nos mesmos
parâmetros constitucionais que fundamentaram o Acórdão n.º 23/2006, pelo qual o
Tribunal Constitucional decidiu declarar a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil,
aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê,
para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos
a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas
dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da
República Portuguesa.
É, por isso, notório que a decisão recorrida incorreu em lapso quando se refere
ao artigo 16.º, n.º 1, da Constituição (respeitante ao âmbito e sentido dos
direitos fundamentais, em geral), pois, na verdade, queria indicar o artigo
26.º, n.º 1, da Constituição, na parte respeitante ao direito fundamental à
identidade pessoal.
Assim, a constitucionalidade da norma questionada deve ser analisada, em
primeira linha, à luz dos direitos fundamentais à identidade pessoal e ao livre
desenvolvimento da personalidade e do direito de constituir família, conjugados
com a “regra do carácter restritivo das restrições de direitos, liberdades e
garantias” (na expressão de JORGE MIRANDA, em JORGE MIRANDA/ RUI MEDEIROS,
Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, 159) – cfr. artigos 26.º, n.º
1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
7. Os prazos de caducidade do direito de investigar a maternidade e a
paternidade
É conhecida a evolução do ordenamento jurídico português no que respeita aos
limites temporais à investigação da paternidade e da maternidade (uma descrição
detalhada dessa evolução legislativa e da sua teleologia pode ler-se, por
exemplo, em GUILHERME DE OLIVEIRA, Critério Jurídico da Paternidade, Coimbra,
1998, 461 e s.; para uma análise pormenorizada da jurisprudência do Tribunal
Constitucional nesta matéria veja-se, nomeadamente, o recente Acórdão n.º
626/2009).
Importa, no entanto, relembrar alguns aspectos desse desenvolvimento legislativo
e jurisprudencial, indispensáveis à análise do prazo que concretamente aqui é
questionado.
O Código Civil de 1966, na sua versão originária veio encurtar os prazos para a
investigação da então denominada “filiação ilegítima”, prevendo que a acção só
podia ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros
anos posteriores à sua emancipação ou maioridade, salvo nos casos especiais em
que filho exibia um escrito do suposto progenitor ou beneficiava de tratamento
como filho (artigo 1854.º). Esta solução procurava combater os inconvenientes
apontados ao direito anterior (o Decreto n.º 2, de 25 de Dezembro de 1910,
permitia que a acção de investigação da paternidade ou maternidade fosse
intentada em vida do pretenso pai ou mãe ou dentro do ano posterior à sua morte,
salvo certas excepções), tendo na génese, como razão principal, a «consideração
ético-pragmática de combate à investigação como puro instrumento de caça à
herança paterna e de estímulo à determinação da paternidade (e, em casos
muitíssimo menos frequentes, da maternidade) em tempo socialmente útil.» (cfr.
ANTUNES VARELA in PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, V,
Coimbra, 1995, 83).
A Reforma de 1977, dando cumprimento, além do mais, ao princípio constitucional
da não discriminação entre filhos, independentemente de os progenitores estarem
ou não casados (artigo 36.º, n.º 4), operou mudanças significativas no regime
das acções de investigação, nomeadamente, adoptando o princípio da livre
investigação da paternidade fora do casamento (eliminando as “condições de
admissibilidade” da acção previstas na versão originária do Código Civil) e
estabelecendo um regime de presunções da relação biológica de paternidade
(artigo 1871.º). Mas no que respeita aos prazos de caducidade das acções de
investigação manteve, no essencial, o regime de 1966 (artigos 1817.º e 1873.º).
Segundo GUILHERME DE OLIVEIRA (“Caducidade das acções de investigação”, Lex
Familiae, Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, n.º 1, Coimbra, 2004,
7-13, 9), a Comissão encarregue da Reforma «terá pensado que a limitação
resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma ampla liberdade de
intentar a acção – aliás em condições de passar a beneficiar, muitas vezes, de
uma presunção legal – de tal modo que não se podia dizer que essa restrição
afectava o conteúdo essencial do direito fundamental.»
Posteriormente, a Lei n.º 21/98, de 12 de Maio, veio explicitar certos aspectos
do regime (clarificando que no âmbito do n.º 4 do artigo 1817.º só releva a
cessação voluntária do tratamento como filho e fixando regra expressa quanto à
repartição do ónus da prova do decurso do prazo de proposição da acção) sem,
contudo, alterar os prazos já constantes do artigo 1817.º, que assim se
mantiveram desde a versão originária do Código Civil até à recente aprovação da
Lei n.º 14/2009.
O entendimento de que o regime da caducidade previsto no Código Civil era
compatível com os princípios constitucionais foi também defendido pelo Tribunal
Constitucional, numa primeira fase, com base, designadamente, no fundamento,
entretanto abandonado, de que os prazos de caducidade eram meros
condicionamentos, e não verdadeiras restrições, do direito de investigação
inerente ao direito fundamental à identidade pessoal (cfr. os Acórdãos n.ºs
99/88, 413/89, 451/89, 370/91, 311/95 e 506/99).
Posteriormente, o Tribunal inverteu a sua jurisprudência nesta matéria: pelo
Acórdão n.º 456/2003 julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 1817.º
(enquanto impede a investigação de paternidade em função de um critério de
prazos objectivos, nos casos em que os fundamentos e as razões para instaurar a
acção de investigação surgem pela primeira vez em momento ulterior ao termo
daqueles prazos); e pelo Acórdão n.º 486/2004 julgou inconstitucional a norma do
n.º 1 do mesmo preceito (na medida em que prevê a extinção do direito de
investigar a paternidade, em regra, a partir dos vinte anos de idade).
A nova orientação jurisprudencial culminou no Acórdão n.º 23/2006, que declarou
a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º
1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do
mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar
a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por
violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e
18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Mais recentemente, o Acórdão n.º 626/2009, julgou inconstitucional a norma
constante do n.º 3 do artigo 1817.º, do Código Civil (redacção do Decreto-Lei
n.º 496/77, de 25 de Novembro), quando interpretado no sentido de estabelecer um
limite temporal de 6 meses após a data em que o autor conheceu ou devia ter
conhecido o conteúdo do escrito no qual o pretenso pai reconhece a paternidade,
para o exercício do direito de investigação da paternidade.
Os acórdãos citados não censuraram a existência de prazos de caducidade, mas
apenas consideraram constitucionalmente desconforme o prazo concreto aí em
questão, por inviabilizar ou dificultar excessivamente a possibilidade de o
interessado averiguar o vínculo de filiação natural.
Mas não pode ser ignorado, na contextualização do problema em apreciação, que a
imprescritibilidade das acções de investigação é solução consagrada em ordens
jurídicas que nos estão próximas. De facto, como salientado no Acórdão n.º
486/04, ela vigora na Alemanha, Itália, Brasil e Macau (neste território, para
os casos de o vínculo produzir apenas efeitos pessoais). Na Suíça prevê-se uma
cláusula de salvaguarda para um atraso desculpável na proposição da acção.
E, também entre nós, são progressivamente mais as vozes que propugnam a solução
de imprescritibilidade.
Já em 1999, o Provedor de Justiça, na Recomendação n.º 36/B/99, recomendava a
alteração da legislação no sentido de «a par da existência de prazo para
propositura de acções com fins patrimoniais, ser consagrada a
imprescritibilidade para a propositura das acções de investigação de
paternidade/maternidade, desde que os efeitos pretendidos sejam de natureza
meramente pessoal».
A solução da imprescritibilidade das acções de investigação é também defendida,
actualmente, por parte significativa da doutrina portuguesa - cfr. GUILHERME DE
OLIVEIRA, “Caducidade das acções de investigação”, cit, 7 e 13, onde o autor
clarifica que mudou de posição relativamente ao que defendia anteriormente;
JORGE DUARTE PINHEIRO, “Inconstitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 4, do Código
Civil – anotação ao Ac. do TRC de 19.10.2004, Proc. 718/04”, Cadernos de Direito
Privado, 13, Janeiro/Março 2006, 51-71, 69, e RAFAEL VALE E REIS, O Direito ao
Conhecimento das Origens Genéticas, Coimbra, 2008, 207 e s., maxime 214 e 494.
Os referidos Autores reconhecem que, pelo menos em casos limite, a ausência de
prazos traz o inconveniente de permitir a proposição tardia da acção com vista
apenas à obtenção de benefícios patrimoniais, mas divergem quanto à forma de
paralisar o exercício abusivo do direito a investigar a maternidade e
paternidade. As soluções avançadas são o recurso ao instituto do abuso de
direito (artigo 334.º do Código Civil) ou a outra solução tributária do mesmo
princípio (GUILHERME DE OLIVEIRA, “Caducidade…”, cit., 13); ou uma solução legal
que permitisse o afastamento judicial dos efeitos patrimoniais do vínculo
(sucessórios e de alimentos), desde que assente na exigência do preenchimento de
pressupostos legais rigorosos, nomeadamente, na demonstração de que a acção foi
intentada com um atraso irrazoável e que, através dela, o autor apenas quis
obter vantagens patrimoniais, pelo que a limitação dos efeitos resultaria de
factos censuráveis, provados no processo, e imputáveis ao filho/autor (neste
sentido RAFAEL VALE E REIS, ob. cit, 210-212); ou uma determinação que confine o
artigo 1817.º à disciplina do prazo para a proposição de uma acção de
investigação com efeitos sucessórios (JORGE DUARTE PINHEIRO, ob. cit., 71).
A recente Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, veio alterar o artigo 1817.º do Código
Civil, mas persistiu na previsão de prazos de caducidade do direito de
investigar, limitando-se a alargar o respectivo limite temporal (o prazo-regra
constante do n.º 1 passou para 10 anos e os prazos especiais, previstos nos n.ºs
2 a 5 do artigo 1817.º, passaram para 3 anos). Aquando da aprovação desta lei,
foi rejeitado o Projecto de Lei n.º 178/X, de 2002, apresentado pelo partido “Os
Verdes”, no qual, renovando anteriores iniciativas e louvando-se na referida
Recomendação do Provedor de Justiça, se proponha consagrar a possibilidade de
propor a acção de investigação a todo o tempo, desde que os efeitos pretendidos
fossem de natureza meramente pessoal.
No presente recurso apenas está em causa a constitucionalidade da específica
limitação constante da norma do n.º 4 do artigo 1817.º, na redacção anterior à
Lei n.º 14/2009, não cabendo a este Tribunal apontar qual a solução desejável de
entre as várias constitucionalmente admissíveis. Este excurso só releva na
medida em que faz presentes linhas valorativas que podem influir na apreciação
da questão a decidir.
8. O direito fundamental a investigar a paternidade
Em matéria do direito a investigar a paternidade (e a maternidade) relevam as
exigências constitucionais em matéria de direito da família, concretamente, o
direito de constituir família (artigo 36.º, n.º 1) e a citada proibição de
discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4).
Mas o parâmetro constitucional mais significativo para a análise do regime de
caducidade das acções de investigação é o direito à identidade pessoal, ou seja,
o “direito à historicidade pessoal” (na expressão de GOMES CANOTILHO/ VITAL
MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª edição revista,
Coimbra, 2007, 462) consagrado, de entre outros direitos de personalidade, no
artigo 26.º, n.º 1, da Constituição.
Logo no Acórdão n.º 99/88 o Tribunal Constitucional afirmou que «a “paternidade”
representa uma “referência” essencial da pessoa (de cada pessoa), enquanto
suporte extrínseco da sua mesma “individualidade” (quer ao nível biológico, e aí
absolutamente infungível, quer ao nível social) e elemento ou condição
determinante da própria capacidade de auto-identificação de cada um como
“indivíduo” (da própria “consciência” que cada um tem de si); e, sendo assim,
não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e ver reconhecido
o pai (…) como uma das dimensões dos direitos constitucionais referidos [direito
à integridade pessoal, em especial, à integridade moral, e direito à identidade
pessoal – artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP], em especial do direito à
identidade pessoal, ou uma das faculdades que nele vai implicada.»
Sendo o direito ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade decorrência,
nomeadamente, do direito à identidade pessoal, beneficia do regime
constitucional dos direitos, liberdades e garantias, só podendo ser restringido
nas condições estabelecidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.º da Constituição.
Como resulta claro do Acórdão n.º 99/88, a posição inicialmente defendida pelo
Tribunal Constitucional no sentido da conformidade constitucional dos prazos
previstos para a acção de investigação, baseava-se no duplo fundamento de que,
por um lado, tais prazos constituíam mero condicionamento do exercício do
direito de investigar e não propriamente uma restrição ao direito à identidade
pessoal (posição contestada, desde logo, no voto de vencido do Conselheiro Luis
Nunes de Almeida); e, por outro, na consideração de que, mesmo aceitando que a
distinção entre condicionamento e restrição é “fundamentalmente prática” e,
muitas vezes, é apenas “um problema de grau ou de quantidade” (seguindo o
ensinamento de VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Coimbra, 2009, 210, n. 51), sempre se mantinha a
justeza da conclusão à luz de um critério de adequação e proporcionalidade,
pelas razões assim resumidas no citado aresto:
«Tudo está em que, face ao direito do filho ao reconhecimento da paternidade, se
perfilam outros direitos ou interesses, igualmente merecedores de tutela
jurídica: em primeiro lugar, e antes de mais, o interesse do pretenso progenitor
em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de incerteza
quanto à sua paternidade, e em não ter que contestar a respectiva acção quando a
prova se haja tornado mais aleatória; depois, um interesse da mesma ordem por
parte dos herdeiros do investigado, e com redobrada justificação no tocante à
álea da prova e às eventuais dificuldades de contraprova com que podem vir a
confrontar-se; além disso, porventura, o próprio interesse, sendo o caso, da paz
e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai. É o equilíbrio
entre o direito do filho e este conjunto de interesses que normas como as dos
n.ºs 3 e 4 do art. 1817º do Código Civil visam assegurar, sem que se possa dizer
que o façam de modo desproporcionado (isto é, com excessivo sacrifício daquele
direito) – quer considerado o estabelecimento, em si, de prazos de caducidade,
quer considerada a duração de tais prazos. E como todos os interesses em
presença não deixam igualmente de encontrar ressonância constitucional – seja
ainda nos arts. 25º, n.º 1 (integridade moral), e 26º, n.º 1 (direito à
reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar), seja no art.
67º (protecção da família), seja só no valor da segurança e certeza do direito,
já que a tal valor objectivo, que intimamente se conexiona com o direito à
protecção jurídica (art. 25º), não pode negar-se semelhante dignidade num Estado
justamente ‘de direito’ – eis como não pode ver-se excluída pela Constituição a
solução consagrada pelo legislador nos preceitos questionados.».
Este entendimento foi abandonado no Acórdão n.º 486/2004 (cuja fundamentação
serviu de base à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral
constante do Acórdão n.º 23/2006). Aí, partiu-se de uma análise substancial
sobre se o tipo de limitação em causa, pela gravidade dos seus efeitos e pela
sua justificação, é ou não actualmente aceitável, à luz do princípio da
proporcionalidade, e após exame das justificações avançadas para a exclusão do
direito a investigar a paternidade depois dos vinte anos de idade do pretenso
filho, conclui-se que o regime constante do artigo 1817.º, n.º 1, do Código
Civil (na redacção anterior à Lei n.º 14/2009) não é constitucionalmente
admissível, por violação da exigência de proporcionalidade (latu sensu)
consagrada no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, pelas razões assim resumidas:
«(…) pelo menos no actual contexto, tal regime passou a traduzir uma apreciação
manifestamente incorrecta dos interesses ou valores em presença, em particular,
quanto à intensidade e à natureza das consequências que esse regime tem para
cada um destes: não só os prejuízos, designadamente não patrimoniais, que advêm
da perda, aos vinte anos de idade, do direito a saber quem é o pai, se
apresentam claramente desproporcionados em relação às desvantagens eventualmente
resultantes, para o investigado e sua família, da acção de investigação (quer
esta proceda – caso em que só será mais evidente a falta de justificação para
invocar estes interesses –, quer não), como são possíveis, como se disse,
alternativas, quer ligando o direito de investigar às reais e concretas
possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem total imprescritibilidade
da acção (por exemplo, prevendo um dies a quo que não ignore o conhecimento ou a
cognoscibilidade das circunstâncias que fundamentam a acção), quer para obstar a
situações excepcionais, em que, considerando o contexto social e relacional do
investigante, a invocação de um vínculo exclusivamente biológico possa ser
abusiva, não sendo de excluir, evidentemente, o tratamento destes casos-limite
com um adequado “remédio” excepcional (seja ele específico – cfr. o regime
referido do Código Civil de Macau – ou geral, como o abuso do direito,
considerando-se ilegítimo desprezar os efeitos pessoais a ponto de se considerar
a paternidade como puro interesse patrimonial, a “activar” quando oportuno).»
Em suma, e na linha da orientação fixada desde o citado Acórdão n.º 486/2004, é
de concluir que a previsão de um prazo de caducidade para intentar a acção de
investigação constitui um limite ao exercício do direito fundamental em causa
que, na prática, significa negar a possibilidade ao investigante de conhecer e
ver reconhecida a sua “historicidade pessoal” após o decurso de tal prazo. Pois,
como já se salientou no Acórdão n.º 626/2009, no actual ordenamento jurídico
português, a acção de investigação de paternidade constitui «o único meio
destinado à efectivação do direito fundamental ao conhecimento da ascendência
biologicamente verdadeira».
9. As razões subjacentes à fixação de um prazo de caducidade da acção de
investigação
Sendo pacífico que o legislador pode conformar o exercício do direito
fundamental aqui em causa em função de outros interesses ou valores
constitucionalmente relevantes, torna-se determinante perceber quais as razões
que, hoje, podem justificar a necessidade de se preverem prazos limitativos da
acção de investigação.
Como é salientado, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência deste Tribunal,
os dados do problema mudaram significativamente desde a aprovação do Código
Civil de 1966.
Para além das mudanças no ordenamento jurídico, principalmente ao nível
constitucional, a que já se foi aludindo, sofreram significativa evolução os
elementos sociológicos e científico-técnicos que rodeiam esta questão.
Precisamente à luz deste novo contexto, a doutrina (cfr., por todos, GUILHERME
DE OLIVEIRA, “Caducidade…”, cit., 7 e s.) e a jurisprudência constitucional (v.,
principalmente, o citado Acórdão n.º 486/2004) têm “desmontado” as razões – de
progressivo “envelhecimento” das provas, de segurança jurídica do pretenso pai e
seus herdeiros e de prevenção da “caça às fortunas” – tradicionalmente invocadas
como justificativas da previsão de prazos de caducidade da acção de
investigação.
Está totalmente afastado o risco de “envelhecimento” das provas. Contrariamente
ao que acontecia ao tempo da Reforma de 1977, em que só se dispunham em Portugal
de meios de prova que excluíam a paternidade (ou a maternidade), os meios de
prova técnico-científicos hoje disponíveis permitem, mesmo após a morte,
estabelecer uma percentagem de probabilidade de se ser o pai biológico (ou a mãe
biológica) superior a 99,5 %, o que, de acordo com as perícias médico-legais,
corresponde a uma “paternidade praticamente provada” [como é salientado por J.
P. REMÉDIO MARQUES, “Anotação ao Ac. TC n.º 486/04 (caducidade de acção de
investigação de paternidade)”, Jurisprudência Constitucional, 4,
Outubro-Dezembro, 2004, 40-50, 47]. Assim, a justificação relativa à prova
perdeu todo o seu valor, atenta a actual eficácia e generalização das provas
científicas.
Note-se que a esta conclusão não obsta o facto de o investigado (ou os seus
familiares) poder recusar a realização do vulgarmente designado teste de ADN.
Pois, nesse caso, o investigado não merece protecção perante uma situação de
incerteza (objectiva, que não jurídica, atentas as presunções de prova
constantes do artigo 1871.º do Código Civil) por ele próprio criada.
Suplantadas as dúvidas quanto à possibilidade de provar objectivamente a
filiação, fica a questão da segurança jurídica, traduzida no interesse do
progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada uma situação de
incerteza quanto à sua paternidade, a que se junta o argumento de que uma acção
de investigação tardiamente intentada visa frequentemente fins exclusivamente
patrimoniais (de “caça à herança”).
Como salienta GUILHERME DE OLIVEIRA (“Caducidade das acções…”, ob. cit., 10), a
garantia de segurança jurídica nesta matéria tem sentido, essencialmente, no
âmbito patrimonial. E não se coloca da mesma forma, se tivermos em consideração
a posição do pretenso progenitor ou a posição dos seus herdeiros. Quanto ao
primeiro, ainda que esteja em causa uma situação em que é «surpreendido com as
consequências de um “acidente” passado há muito tempo, dir-se-á que tem sempre
de assumir as responsabilidades, porque mais ninguém o pode fazer no lugar
dele».
Como também salienta este Autor, o perigo de as acções serem tardiamente
intentadas por razões puramente egoísticas, embora não tenha desaparecido,
perdeu muita da sua importância face à alteração da estrutura social e da
riqueza, não tendo qualquer valia em situações em que a acção é intentada entre
autores e réus com meios de fortuna semelhantes ou num momento em que o
investigante não tem pretensões materiais, porque já não está em condições de
formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá pretensões de
natureza sucessória. Outras situações há, ainda, em que tais pretensões
materiais são irrelevantes porque, pura e simplesmente, o investigado não tem
bens (ou não os tem em valor significativo).
Quanto aos herdeiros, o sistema jurídico não tem uma preocupação absoluta com a
sua segurança patrimonial e com a tutela das suas legítimas expectativas,
bastando lembrar que qualquer herdeiro preterido pode intentar uma acção de
“petição da herança”, a todo o tempo, com a consequente restituição de todos os
bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro (artigo
2075.º do Código Civil).
Ainda a respeito dos herdeiros do pretenso pai, não deixa de ser impressivo
confrontar o prazo de que dispõe o sucessível para aceitar a herança – 10 anos,
a contar em regra, do conhecimento de haver sido chamado à herança (artigo
2059.º, n.º 1, do Código Civil) – com os prazos previstos no artigo 1817.º do
Código Civil, concretamente, com o prazo de 1 ano aqui em questão. O que
significa que, para além do universo dos sucessíveis (legais ou voluntários) ser
naturalmente indefinido em vida do de cujus, mesmo após a sua morte, e até ao
esgotamento daquele prazo de 10 anos, fica em aberto o universo de herdeiros de
entre os sucessíveis chamados à herança.
Para sintetizar esta questão da “segurança patrimonial”, relembre-se o que a
respeito se diz no Acórdão n.º 486/2004, a propósito do prazo constante do n.º 1
do artigo 1817.º (na redacção anterior à Lei n.º 14/2009): «pode duvidar-se de
que o pretenso progenitor mereça uma protecção da segurança da sua vida
patrimonial que justifique a regra de exclusão do direito do investigante, logo
a partir dos vinte anos e sem consideração de outras circunstâncias, a saber que
é o seu pai. É que não pode conceder-se a uma certeza ou segurança patrimonial
de outros filhos, ou do pretenso progenitor, relevância decisiva para excluir o
direito, eminentemente pessoal e que integra uma dimensão fundamental da
personalidade, a saber quem é o pai ou a mãe biológicos.»
Outra razão esgrimida como justificadora do regime de prazos é o direito do
pretenso pai à reserva da intimidade da vida privada e familiar, que resultaria
afectado pela revelação de factos tidos por comprometedores. Também este ponto
carece de uma leitura actualizada.
Já não poderão servir de justificação as razões anteriormente invocadas de
protecção da paz e harmonia da família conjugal constituída pelo pretenso pai,
pois, não só essas eram razões que serviam de base às antigas limitações da
acção de investigação, banidas, por imposição constitucional, após a Reforma de
1977 (cfr., a este respeito, o Acórdão n.º 694/95, que julgou inconstitucionais
as normas dos artigos 1860.º, alínea e), e 1864.º, primeira parte, da versão
originaria do Código Civil de 1966, relativas ao requisito da sedução como
pressuposto de admissibilidade da acção de investigação da paternidade), como
tal protecção conduziria ao resultado inadmissível de conferir maior protecção,
contra potenciais investigantes, ao “investigado casado”, comparativamente com o
“investigado solteiro” (cfr. Acórdão 486/2004).
Por outro lado, como é salientado no Acórdão n.º 486/2004, uma «alegada
“liberdade-de-não-ser-considerado-pai”, apenas por terem passado muitos anos
sobre a concepção, ou um interesse em eximir-se à responsabilidade jurídica
correspondente, determinada fundamentalmente pelo “princípio da verdade
biológica” que inspira o nosso direito da filiação, não podem considerar-se
dignos de tutela, pelo menos, a ponto de sacrificar o direito do filho a apurar
e ver judicialmente declarado que é o seu pai.» Neste sentido, não será
atendível a invocação do direito ao livre desenvolvimento da personalidade do
progenitor para fundamentar um direito do progenitor a não assumir o estatuto
(RAFAEL VALE E REIS, ob. cit., 207-208).
Em suma, como se lê no Acórdão n.º 626/2009, a «desvalorização de todas as
referidas razões que vinham justificando a previsão de limites temporais,
relativamente ao exercício do direito de investigação e reconhecimento de
paternidade, e a ausência de quaisquer outras razões reportadas a outros
direitos e interesses constitucionalmente protegidos, determinou que se
começasse a considerar insustentável continuar a alegar a não
inconstitucionalidade dos prazos de caducidade estabelecidos nos artigos 1817.º
e 1873.º do Código Civil».
10. O prazo de caducidade de um ano a contar da cessação do tratamento como
filho
Independentemente de saber se a previsão de um prazo de caducidade continua ao
serviço da tutela de direitos ou interesses constitucionalmente relevantes (no
sentido de que deixou de estar ao serviço da tutela de tais direitos ou
interesses v., designadamente, RAFAEL VALE E REIS, ob. cit., 207 e s.) ou de se
saber se é medida necessária (ou seja, conforme ao princípio da exigibilidade,
incluído no princípio da proporcionalidade, em sentido amplo) à tutela dos
interesses que se contrapõem ao do investigante, o certo é que o prazo aqui
concretamente em questão (prazo de 1 ano, consagrado no n.º 4 do artigo 1817.º,
na redacção anterior à Lei n.º 14/2009) não passa o teste da proporcionalidade
(em sentido estrito).
Vejamos porquê.
Nos Acórdãos n.ºs 99/88 e 370/91 o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a
norma ínsita no n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil, no sentido da não
inconstitucionalidade do prazo aí fixado. Já vimos, no entanto, que a
fundamentação de tais acórdãos não é a adoptada na jurisprudência mais recente
do Tribunal, sobre esta matéria, sendo certo que, da nossa parte, subscrevemos a
orientação fixada desde o Acórdão n.º 486/2004.
Na economia do artigo 1817.º, o prazo de 1 ano previsto no n.º 4, in fine,
constitui um alargamento do prazo-regra fixado no n.º 1. As razões subjacentes
são as resultantes da “compreensão das realidades práticas da vida”, assim
resumidas por ANTUNES VARELA (em PIRES DE LIMA/ ANTUNES VARELA, Código Civil
Anotado, V, cit., 84/85):
«Se o filho, nascido fora do casamento, for todavia tratado como tal pelo seu
verdadeiro progenitor, embora este não figure no assento de nascimento nessa
qualidade ou nem sequer haja no registo assento do seu nascimento, parece
evidente que não existe, na esfera das suas recíprocas relações, nenhuma
necessidade prática de determinação da relação de filiação, nem sequer ambiente
propicio para a instauração da acção judicial.
Um tal ambiente e a correlativa necessidade só surgem normalmente a partir do
momento em que cessa o tratamento prestado ao investigante pelo seu pretenso
progenitor. E daí que a lei, muito judiciosamente, para não fomentar a guerra em
ambiente que era de paz familiar, só a partir do momento de ruptura inicie a
contagem do prazo dentro do qual a acção deve ser proposta, sob pena de
caducidade.»
Ora, precisamente pelas razões que fundamentaram a previsão de um prazo “mais
alargado” para as situações em que o investigante beneficiava do tratamento como
filho, se tem de concluir que o prazo de 1 ano a contar da cessação voluntária
desse tratamento é, à luz dos critérios de proporcionalidade e adequação
exigidos pelo artigo 18º, n.º 2, da Constituição, manifestamente insuficiente e
desadequado.
Como desde logo salientou LUIS NUNES DE ALMEIDA, no voto de vencido aposto no
Acórdão n.º 99/88 (e renovado no Acórdão n.º 370/91), «sendo o investigante
tratado como filho pelo pretenso pai, e cessando, por qualquer razão, de forma
abrupta, esse tratamento, é perfeitamente compreensível que o mesmo investigante
mantenha durante um lapso de tempo relativamente longo a legítima esperança de
ver reatado o relacionamento anteriormente havido como seu presumido progenitor.
É que, em muitos casos, a cessação do tratamento será ocasionada por eventuais
zangas ou motivos ocasionais que, no domínio das relações familiares, têm
normalmente tendência a resolver-se com o mero decurso do tempo.
Ora, a mera instauração da acção de investigação teria naturalmente como efeito
impedir que o investigado voltasse a ter com o investigante o tipo de relação
que com ele mantivera anteriormente, porquanto a situação de litigância se não
apresenta, obviamente, como favorável a um tal reatamento»
A este argumento – o de que o “impedimento moral” (que fundamenta a previsão de
um prazo de caducidade mais longo que o prazo-regra) se mantém presente após a
cessação voluntária do tratamento como filho e permanece durante um longo
período de tempo ou mesmo, em certos casos facilmente conjecturáveis, durante
toda a vida do investigado – há ainda que acrescentar uma outra razão
demonstrativa da limitação excessiva de tal prazo e respeitante ao termo inicial
do mesmo.
O prazo de 1 ano em questão começa a contar da “cessação voluntária do
tratamento como filho” pelo pretenso pai. É sabido que o tratamento de alguém
como filho se traduz numa série de actos e atitudes do pretenso pai, destinados
a prestar a investigante um mínimo de assistência material, afectiva e moral
(cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.12.1991, P.
081214). A cessação de tal tratamento consubstanciar-se-á também numa sucessão
de actos ou atitudes – ou, muitas vezes, de meras omissões – demonstrativas, não
só de que o investigado já não beneficia de tal assistência (cessação do
tratamento como filho), mas também de que o investigante teve intenção de fazer
cessar essa assistência (cessação voluntária). Daqui se extrai sem esforço a
dificuldade em demonstrar o momento exacto em que cessou o tratamento voluntário
como filho. Embora a prova do esgotamento do prazo de caducidade incumba ao
investigado (artigo 1817.º, n.º 6, do Código Civil, na redacção da Lei n.º
21/98), o certo é que estas circunstâncias agravam a exiguidade do prazo em
questão. Em rigor, obrigam o investigado a, por cautela, agir judicialmente ao
primeiro sinal de cessação voluntária do tratamento como filho, sob pena de
deixar esgotar o curto prazo de 1 ano. Ou seja, nas palavras do citado voto de
vencido, «obriga-se o investigante a tentar obter por via de um litígio o que
ele, muito humanamente procurará obter por via de um acto voluntário, tanto mais
quanto já beneficiou do tratamento como filho por parte do investigado».
Em suma, a norma constante do n.º 4 do artigo 1817.º do Código Civil (na
redacção da Lei n.º 21/98, de 12 de Maio), aplicável por força do artigo 1873.º
do mesmo Código, na medida em que prevê, para a proposição da acção de
investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar da data em que tiver
cessado voluntariamente o tratamento como filho, traduz uma restrição
desproporcionada ao direito fundamental à identidade pessoal, em violação do
disposto nos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição.
III ? Decisão
Pelo exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º,
n.º 2, da Constituição, a segunda parte da norma constante do n.º 4 do artigo
1817.º do Código Civil (na redacção da Lei n.º 21/98, de 12 de Maio), aplicável
por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a
proposição da acção de investigação de paternidade, o prazo de um ano a contar
da data em que tiver cessado voluntariamente o tratamento como filho;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos