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Proc.º n.º 504/2000.
2.ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por intermédio do Acórdão deste Tribunal nº 73/2000, tirado nestes autos de fls. 169 a 174 e rectificado pelo Acórdão nº 132/2000 (fls. 244 e 245), foi decidido, em aplicação da jurisprudência firmada pelo Acórdão nº
683/99, tirado em plenário, conceder provimento ao recurso - e, em consequência, determinar a respectiva reforma em consonância com o juízo de não inconstitucionalidade aí tomado - do aresto lavrado em 10 de Dezembro de 1997 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o qual condenou o réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, a, por entre o mais, reintegrar a autora, M, no seu posto de trabalho como auxiliar de acção educativa na escola de São João do Estoril, autora essa que, com o réu, tinha celebrado, em 8 de Março de
1993, um contrato, designado como contrato de trabalho a termo certo, o qual terminaria em 31 de Agosto desse ano de 1993, sendo que, contudo, a mesma autora continuou a prestar o mesmo labor ao serviço do réu até 31 de Agosto de 1994, data na qual este último fez cessar o contrato celebrado com a autora.
Tendo os autos sido remetidos ao indicado Tribunal da Relação de Lisboa, aí foi, em 10 de Maio de 2000, proferido novo acórdão, no qual se declarou nula a cessação da relação de emprego da autora ocorrida em 31 de Agosto de 1994 e se condenou o réu a reintegrar a autora no seu posto de trabalho e a pagar-lhe determinadas retribuições, cujo montante se apuraria em execução de sentença, para além de juros de mora.
Para tanto, e no que ora releva, o acórdão de 10 de Maio de 2000 prosseguiu um raciocínio que, em síntese, se fundou nas seguintes premissas:-
- o contrato de trabalho celebrado entre a autora e o réu em 8 de Março de 1993 era um contrato de trabalho a termo 'de natureza exclusivamente civil';
- não tendo esse contrato sido renovado, mediante comunicação feita pelo réu à autora nos termos do nº 3 do artº 20º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, haveria ele de considerar-se caduco em 31 de Agosto de 1993;
- contudo, porque depois desse dia 31 de Agosto de 1993 se manteve entre autora e réu uma relação de emprego em que ambas as partes continuaram a cumprir as respectivas obrigações, porque não houve a celebração, entre as partes, de um outro qualquer contrato, e porque, conforme foi decidido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 683/99, não poderia considerar-se que o contrato de trabalho anteriormente celebrado podia converter-se em contrato sem termo, haver-se-ia então de concluir que aquela relação de emprego - mantida após 31 de Agosto de 1993 e que se não podia aceitar como defluindo de um contrato de prestação de serviço, à míngua de qualquer acordo entre as partes em tal sentido - constituiu uma 'relação de emprego atípica' ou 'uma relação de trabalho de facto, totalmente nova, não prevista legalmente, mas que não pode deixar de merecer a tutela do direito, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer no que respeita à sua cessação';
- sendo assim, a cessação daquela relação de emprego, epitetada de atípica e que ocorreu em 31 de Agosto de 1994, devia considerar-se 'em tudo semelhante a um despedimento promovido por um empregador, sem aviso prévio e sem justa causa', razão pela qual, in casu, e em face de uma lacuna de regulamentação, seriam de aplicar, por analogia, as normas que se reportam ao despedimento sem justa causa e aviso prévio do contrato individual de trabalho e que são as que se contêm nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
Desse acórdão arguiu o Ministério Público a respectiva nulidade, o que veio a ser indeferido por acórdão de 21 de Junho de 2000.
2. É do acórdão de 10 de Maio de 2000 que, pelo Ministério Público, vem interposto recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse que se estribou nas alíneas b) e g) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, dizendo, por entre o mais, no requerimento de interposição de recurso:-
'..........................................................................................................................................................................................................................................
O presente recurso é interposto com fundamento nas alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15.11.
Por um lado, o douto Acórdão reformado faz tábua rasa do pressuposto fundamental em que assenta a tomada de posição do Plenário do Tribunal Constitucional e o douto Acórdão do TC de fls. 160, ao admitir um regime de vinculação laboral ao Estado, sem termo, regulado pela lei geral do contrato individual de trabalho, exorbitando da regulamentação especial e taxativa de tal vinculação, centrada na nomeação, no contrato administrativo e no contrato de trabalho com termo, em violação ao disposto no artº 47º, nº 2 da CRP.
Por outro, criando ‘ope iudicis’ uma realidade ‘sui generis’ a que chama de relação de emprego ‘atípica’ sem termo, em tudo semelhante, ponto por ponto, ao contrato individual de trabalho da lei geral da contratação laboral, aplicando indevidamente os artigos 12º e 13º do DL 64-A/89, de 27 de Fevereiro, ao declarar a ilicitude do despedimento e os efeitos dessa ilicitude, pressupõe o legitimar, por exclusiva iniciativa do julgador, de um regime de vinculação ao Estado, contra o estabelecido ‘ope legis’ relativamente ao especial regime de vinculação laboral à Administração Pública nas modalidades previstas no D.L.
427/89, de 07.12, artigos 3º e 14º).
O douto Acórdão em referência não aceita o pressuposto essencial de que parte o Plenário do Tribunal Constitucional ao considerar inconstitucional a conversão de contratos de trabalho a termo em contratos de trabalho sem termo, atendo o disposto no artigo 14º, nº 3 do DL nº 427/89, de 7 de Dezembro, dada a inadmissibilidade legal, como forma de contratação com o Estado, do contrato de trabalho sem termo previsto no regime geral da contratação laboral.
Em suma, o douto Acórdão desta Relação pretende alcançar o mesmo desiderato, relação de emprego sem termo, ‘ope judicis’, a partir de um inicial contrato de trabalho a termo que foi celebrado entre a A.. e o Estado, contra a interpretação claramente expendida pelo Tribunal Constitucional.
..........................................................................................................................................................................................................................................'
Por despacho de 27 de Setembro de 2000, o relator não tomou conhecimento do objecto do recurso fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º, prosseguindo os autos quanto ao recurso previsto na alínea g) dos mesmos número e artigo.
Desse despacho, e no concernente à não tomada de conhecimento do recurso baseado na dita alínea b) reclamou o Ministério Público para a conferência; porém, por intermédio do Acórdão nº 510/2000, a reclamação foi julgada improcedente.
Determinada a feitura de alegações, rematou o Ministério Público a por si produzida com as seguintes «conclusões»:-
' 1º - O recurso previsto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 tem como função verificar se o Tribunal ‘a quo’, ao reformular a decisão que inicialmente proferiu, se conformou com o sentido e alcance de um precedente juízo (ou declaração) de inconstitucionalidade, emitido pelo Tribunal Constitucional - a quem compete interpretar e definir o sentido preciso dos seus precedentes juízos de inconstitucionalidade.
2º - Tendo sido a decisão do Tribunal Constitucional proferida no âmbito do próprio ‘processo pretexto’, compete ainda ao Tribunal Constitucional - mesmo fora do âmbito da tipologia de recursos de fiscalização concreta - sindicar uma possível ofensa ao caso julgado decorrente do juízo de inconstitucionalidade definitivamente emitido acerca da concreta situação dos autos.
3º - Para apurar da conformidade da decisão impugnada com o precedente juízo de inconstitucionalidade, tem o Tribunal Constitucional de conferir a necessária prevalência a uma visão substancial das realidades e interesses conflituantes e controvertidos, não podendo limitar-se a uma visão estritamente formalístico-conceitual, que atribua relevância decisiva à formulação literal e verbal da decisão recorrida.
4º - Não se conforma manifestamente com o sentido e o alcance do juízo de inconstitucionalidade emitido pelo acórdão 683/99 (aplicado à concreta situação dos autos pelo acórdão 73/2000, proferido no âmbito do próprio ‘processo pretexto’) a interpretação normativa do artigo 14º, nº 3, do Decreto-Lei 427/89 que ‘substitui’ a conversão das relações laborais a prazo, irregularmente celebradas e mantidas pelo Estado, em relações laborais permanentes e duradouras por uma pretensa ‘estabilização’ e definitividade de relações de trabalho ‘de facto’ - qualificadas como ‘atípicas’ - decorrentes do simples facto de tais relações a prazo se terem prolongado no tempo, para além do prazo máximo de duração previsto na lei geral.
5º - E configurando-se a invocação da figura da ‘relação laboral atípica’ como simples qualificação conceitual ou formal que determina a aplicação aos litígios de ‘todo’ o regime ‘típico’ e geral do contrato individual de trabalho.
6º - Afrontando tal interpretação normativa, de forma manifesta, o caso julgado decorrente do referido acórdão 73/2000.
7º - O que conduz à procedência do presente recurso, devendo a decisão recorrida ser substituída por outra que se conforme com o dito sentido e alcance
‘substanciais’ do decidido definitivamente pelo Tribunal Constitucional'.
A recorrida não apresentou alegação.
Tendo em conta que a primitiva decisão da Relação data de há mais de três anos, não havendo ainda, por isso, decisão definitiva nos presentes autos, o que tudo se deveu às vicissitudes por que os mesmos passaram, foram dispensados os «vistos».
Cumpre, pois, decidir.
II
3. Não se põe em dúvida a possibilidade de o Tribunal Constitucional sindicar a eventual violação de caso julgado - formado de acordo com o que se consagra no nº 1 do artº 80º da Lei nº 28/82 - que se consubstancie na circunstância de o órgão de administração de justiça que, antecedentemente, viu uma sua decisão ser objecto de reforma por determinação de outra, proferida por este Tribunal, não ter, na reformada decisão, acatado o sentido e alcance daquela última, e isto sem sequer se entrar em linha de conta com as possibilidades recursórias que são permitidas por algumas das alíneas do nº 1 do artº 70º do mesmo diploma.
Isso o entenderam, verbi gratia, os Acórdãos números 532/99 e
340/2000, publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 27 de Março e 9 de Novembro de 2000.
Assente esta realidade, impõe-se, pois, saber se a decisão tomada no acórdão sub specie, em rectas contas, respeitou o sentido e alcance do Acórdão deste Tribunal nº 73/2000.
4. A resposta a esta questão é, adiante-se já, negativa.
Efectivamente, no aludido Acórdão nº 73/2000 foi seguida a orientação expressa na Acórdão nº 683/99, o que vale por dizer que se entendeu que era contrário à Lei Fundamental e, mais propriamente, ao que se consagra no seu artigo 47º, nº 2, uma interpretação normativa - reportada ao nº 3 do artº
14º do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro - de onde decorresse que os contratos de trabalho celebrados pelo Estado se convertiam em contratos sem termo, ultrapassado que fossem o limite máximo de duração total fixado na lei geral sobre contratos de trabalho a termo.
Para alcançar esse juízo decisório, o Tribunal Constitucional, inter alia, estribou-se numa corte argumentativa que, como se referia já no despacho proferida nestes autos de fls. 286 a 291, se pode sintetizar no seguinte:-
'................................................................................................................................................................
- não havendo qualquer previsão legal de contratos de trabalho com o Estado por tempo indeterminado, a aceitação de uma qualquer figura de relação laboral que, na prática e por via sucedânea, redundasse na manutenção do vínculo por tempo indeterminado, acarretaria, como consequência necessária, a contradição com a taxatividade legal das vias de acesso à função pública através de um novo modo de acesso de forma definitiva e tendencialmente perpétua, o que conferiria ao trabalhador, pelo menos, o gozo da protecção conferida aos restantes trabalhadores vinculados ao Estado por forma temporal indeterminada;
- essa aceitação prejudicaria o «direito de igualdade» no acesso à função pública, de que são titulares outras pessoas, potenciais candidatos a um lugar definitivo e sem termo, mas que não estão interessadas num contrato a termo certo;
- a criação de uma tal relação de emprego por tempo indeterminado iria ou poderia consequenciar que os quadros de pessoal pudessem, posteriormente, vir a ser ocupados a título definitivo pelos particulares sujeitos dessa relação, sem que tivesse havido, para tanto, qualquer precedência de concurso constitucional e legalmente exigido, com o que se violaria o nº 2 do artigo 47º da Lei Fundamental.
................................................................................................................................................................'
Acontece que o Tribunal da Relação de Lisboa, no aresto por ela prolatado em 10 de Maio de 2000, muito embora, na sequência do decidido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 73/2000, não viesse a «converter», pelo decurso do tempo fixado na lei geral reguladora dos contratos de trabalho a termo, a relação laboral que se estabeleceu entre o Estado Português e MA numa relação conceptualizada como um contrato de trabalho sem prazo, o que é certo é que não deixou de caracterizar essa relação como integrando um contrato de trabalho «atípico» que, independentemente da sua caracterização, haveria de sofrer o mesmo tratamento normativo que é conferido ao contrato individual de trabalho, ao menos quanto aos modos da sua cessação, designadamente no que tange ao despedimento sem justa causa e sem aviso prévio.
E, nesta senda, concluir-se-á, necessariamente, que, de um lado, não poderá haver, por parte da entidade empregadora Estado, e enquanto o
«trabalhador» (ou, se se quiser, a outra «parte» da relação laboral «atípica») a tanto não der causa, a adopção de um comportamento que redunde em, unilateralmente, pôr termo àquela relação; e, por outro, que o «trabalhador», se porventura a mencionada entidade empregadora vier, sem que exista justa causa, a dar por finda tal relação, terá jus a ser reintegrado no seu posto de trabalho.
Significa isto, pois, que, talqualmente se disse no já citado despacho de fls. 286 a 291, 'a relação laboral atípica que se constituiu ..., tenderia a tornar-se tendencialmente perpétua ou de vínculo temporalmente indeterminado', o que vale por dizer que, segundo o raciocínio seguido pelo acórdão lavrado no Tribunal de Relação de Lisboa em 10 de Maio de 2000, seria criada, desta arte, e por um apelo ao regime geral ou comum regulador dos contratos de trabalho, uma relação laboral duradoura na Administração Pública, sem que o «trabalhador» se viesse a sujeitar à regra do concurso, justamente aquilo que o Tribunal Constitucional considerou como feridente da Constituição.
Por outras palavras, e passe o plebeísmo, a decisão ora sub specie
«faria entrar pela janela» o que o conteúdo decisório tomado no Acórdão 72/2000 vedou que «entrasse pela porta».
5. Dito isto, fácil é de concluir que, efectivamente, o acórdão em apreço não deixou de tomar uma decisão que, de modo objectivo, é de considerar como não sendo respeitadora do sentido e alcance do juízo de inconstitucionalidade levado a efeito pelo Acórdão nº 73/2000.
III
Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso e determina-se a reforma do acórdão ora impugnado em consonância com o sentido e alcance do Acórdão deste Tribunal nº 73/2000, proferido nos vertentes autos em 9 de Fevereiro de 2000 e rectificado pelo Acórdão nº 132/2000, lavrado em 23 de Fevereiro seguinte.
Lisboa, 28 de Março de 2001- Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa