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Proc. nº 574/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, por sentença de 3 de Novembro de 1999, decidiu condenar MJ, como autor material de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292º do Código Penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 700$00. O arguido foi ainda condenado em taxa de justiça e na inibição da faculdade de conduzir pelo período de dois meses, nos termos do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
MJ interpôs recurso da sentença de 3 de Novembro de 1999 para o Tribunal da Relação do Porto. Nas alegações apresentadas, o arguido suscitou a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, por violação do artigo 30º, nº 4, da Constituição. O arguido sustentou ainda a inconstitucionalidade orgânica do preceito indicado, por violação do artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 10 de Maio de 2000, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2. MJ interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 10 de Maio de 2000, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.
Junto do Tribunal Constitucional o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo: A - A partir do momento em que a lei diz que acresce necessariamente à condenação pelo crime de condução sob a influência de álcool, a inibição de conduzir, nem que esta seja de um dia - o que não acontece, pois o mínimo legal
é de um mês - já se está a cair na alçada do artigo 30º/4 da CRP. B - Tal não sucederia se na redacção daquele preceito estivesse consignado o vocábulo 'definitiva' a seguir ao vocábulo 'perda', admitindo-se nesta hipótese, que pudesse haver uma perda temporária dos direitos em causa. C - Ou ainda teria toda a razão de ser a doutrina contrária se fosse admitida a possibilidade de não aplicar ou mesmo de suspender a aplicação da pena acessória, o que não é possível, segundo a jurisprudência dominante. D - Assim, no actual sistema, ao julgador cabe apenas graduar a pena acessória, e portanto sabe-se de antemão que à condenação pelo crime de condução sob influência do álcool, se segue inevitavelmente, pelo menos um mês de inibição da faculdade de conduzir. E - E relativamente a este mínimo legal o julgador não tem qualquer intervenção, não são tidos em conta os princípios da necessidade e da culpa, pois é a própria lei ('ope legis') que estabelece este mínimo automático, reservando ao 'livre arbítrio do julgador' a restante margem até ao máximo legal. F - Não existe a tal 'pena compósita' pois enquanto se admite a suspensão da pena principal, não se passa o mesmo relativamente à inibição da faculdade de conduzir! G - Tendo em conta que a graduação da sanção acessória também era feita anteriormente no âmbito dos art. 46º/2.a) a e) do anterior C. Estrada, preceitos declarados inconstitucionais com força obrigatória geral, pelo Ac. de 8/8/90, não se vê como possa ser alterada tal doutrina no caso e norma em apreço, dada a inegável similitude! H - E sendo materialmente inconstitucional o preceito em causa, não deixará de o ser organicamente por não se retirar directamente da Lei de autorização legislativa (na nossa modesta interpretação) tal violação.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, tirando as seguintes conclusões:
1º - A proibição de penas automáticas não pode abranger os casos em que a um certo tipo de crime corresponda uma sanção do tipo proibição ou inibição de conduzir, principal ou acessoriamente, desde que não tenha carácter perpétuo e possa ser fundamentada em termos de ilicitude e de culpa pela mediação do juiz.
2º - Já constando do artigo 4º do Decreto-Lei nº 124/90 que às penas ... acresce a sanção acessória da inibição de conduzir, o artigo 69º do Código Penal
, na redacção que veio a ser fixada na sequência da Lei nº 35/94, não excede a autorização legislativa, pelo que não se mostra violado o artigo 168º, nº 1, da Constituição, na versão anterior à última revisão constitucional.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
3. O preceito impugnado tem a seguinte redacção: Artigo 69º Proibição de conduzir veículos motorizados
1. É condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período ficado entre 1 mês e 1 ano quem for punido: a) Por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário; ou
(...)
O Tribunal Constitucional já se pronunciou diversas vezes sobre a conformidade à Constituição de normas que prevêem a medida de inibição de conduzir em caso de condenação por infracção às regras relativas à condução de veículos motorizados.
No Acórdão nº 53/97, de 23 de Janeiro (D.R., II Série, de 5 de Março de 1997), o Tribunal Constitucional considerou o seguinte: Admitindo que a faculdade de conduzir veículos automóveis é um direito civil, é certo que a perda desse direito é uma medida que o juiz aplica e gradua dentro dos limites mínimo e máximo previstos, em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente, segundo os critérios do artigo 71º do Código Penal. Poder-se-á, assim, dizer que o juiz não se limita a declarar a inibição como medida decorrente de forma automática da aplicação da pena, com mero fundamento na lei (...). A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última. Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais. Atenta a natureza da infracção, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta, surge como adequada e proporcional a sanção de inibição de conduzir.
Nos presentes autos seguir-se-á o mesmo entendimento.
O recorrente afirma, porém, que o preceito não seria inconstitucional se existisse a possibilidade de suspender a aplicação da medida de inibição de conduzir. O recorrente sublinha, também, que quanto ao mínimo legal de um mês o julgador não tem 'qualquer intervenção'.
Ora, resulta claramente da sentença condenatória que nunca esteve em causa, nos presentes autos, a aplicação do mínimo da medida de inibição de conduzir ou a sua suspensão. Na verdade, o arguido foi condenado em dois meses de inibição de condução, em função das específicas circunstâncias do caso concreto, devidamente evidenciadas na decisão recorrida.
5. O recorrente suscita, por outro lado, a inconstitucionalidade orgânica do artigo 69º, nº 1º, alínea a), do Código Penal.
O artigo 3º-A, alínea 34), da Lei nº 35/94, de 15 de Setembro, que autorizou o Governo a alterar o Código Penal, tem a seguinte redacção:
34) Substituir o artigo 69.º por um novo artigo com a mesma numeração, que introduzirá a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, por um período fixado entre um mês e um ano, para quem for condenado: a) Por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário; b) Ou por crime praticado com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante. A proibição produzirá efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e poderá abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria ou de uma categoria determinada; será comunicada aos serviços competentes e implicará, para o condenado que for titular de licença de condução, a obrigação de a entregar na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, que a remeterá
àquela, salvo tratando-se de licença emitida em país estrangeiro, com valor internacional, em que a entrega será substituída por anotação, naquela licença, da proibição decretada. O artigo disporá, ainda, que não conta para o prazo da proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança; e que a pena acessória de proibição de conduzir não será aplicada quando tiver lugar a aplicação, pelo mesmo facto, da cassação ou de interdição da concessão de licença a título de medida de segurança;
O Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, em cumprimento da lei de autorização legislativa, introduziu a medida de inibição de conduzir.
O recorrente, contudo, sublinhando que o actual artigo 69º, nº 1, alínea a), refere 'É condenado ... quem ...', afirma que 'introduzir a pena acessória ...', como se diz na lei de autorização legislativa, 'não tem o sentido automático que o Código Penal na sua redacção final imprimiu', pelo que o preceito em apreciação seria organicamente inconstitucional. Ora, como se demonstrou supra, o artigo 69º, nº 1º, alínea a), do Código Penal, não consagra qualquer pena automática.
Como, na perspectiva do recorrente, o Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, apenas ultrapassou a respectiva lei de autorização legislativa, em virtude de ter consagrado uma pena automática, e, como se demonstrou, tal automaticidade não se verifica, não procede a alegada inconstitucionalidade orgânica.
Assim sendo, apenas se acrescentará que a actual redacção do artigo
69º, nº 1º, alínea a), do Código Penal, respeita manifestamente os limites da respectiva lei de autorização legislativa na medida em que de facto se limitou a
'introduzir a pena acessória de proibição de conduzir', tal como consta da respectiva lei de autorização legislativa.
6. O presente recurso é, pois, improcedente.
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 69º, nº 1º, alínea a), do Código Penal, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 28 de Março de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa