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Proc. n.º 628/00 Acórdão nº 169/01
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. C..., Lda. propôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Lagos, acção declarativa com processo sumário contra E..., Lda. (adiante designada E...) pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 1.343.420$00, acrescida de juros. Na contestação (fls. 15 e seguintes) veio a ré pedir a absolvição do pedido,
'porque a pretensa dívida se acha prescrita ou porque, em qualquer caso, tudo o que havia a pagar à A. lhe foi, há muito, pontualmente entregue'. Na réplica (fls. 44 e seguintes) sustentou a autora, nomeadamente, a improcedência da excepção da prescrição dos seus créditos e a da inexigibilidade dos juros moratórios. Foi proferido despacho saneador e elaborada especificação e questionário (fls.
110 e seguintes). A ré E... agravou do despacho saneador que relegou para a sentença o conhecimento da inexigibilidade dos juros peticionados pela autora (fls. 117) – recurso que não foi admitido, por despacho de fls. 128 – e, bem assim, reclamou da especificação e do questionário (fls. 118 e seguintes). Notificada da reclamação contra a especificação e o questionário, a autora respondeu (fls. 126 e 127), pedindo que a reclamação fosse desatendida. A reclamação foi indeferida na sua totalidade, por despacho de fls. 128 e v.º, pelos seguintes fundamentos: 'o tribunal especificou os factos que julga assentes por virtude de confissão, acordo das partes ou prova documental e quesitou os pontos de facto controvertidos que devam ser provados (art. 611º, n.º 1, do C.P.C.)'. A ré E... agravou então, para o Tribunal da Relação de Évora, do despacho saneador (fls. 131), tendo o recurso sido admitido por despacho de fls. 133. Agravou, igualmente, do despacho que ordenou a sua notificação para os termos do disposto no n.º 2 do artigo 572º do Código de Processo Civil (fls.134), recurso esse que foi admitido por despacho de fls. 135. Agravou, ainda, do despacho que admitiu o depoimento de parte requerido pela autora (fls. 139), tendo por despacho de fls. 141 v.º sido admitido tal recurso. Por despacho de fls. 166, todos os quesitos foram considerados não provados, sendo a fundamentação a seguinte: 'As respostas dadas ficam a dever-se à total ausência de conhecimentos quanto à matéria de facto alegada revelada pela única testemunha inquirida (por ser a única presente) – C...'. A autora reclamou das respostas aos quesitos, tendo tal reclamação sido indeferida (cfr. acta de fls. 169 e seguintes). Por sentença de 15 de Julho de 1999, proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Lagos, foi a acção julgada improcedente porque não provada e, em consequência, absolvida a ré E... do pedido (fls. 176 e seguintes). Pode ler-se no texto da sentença, para o que aqui releva:
'[...] da matéria de facto dada como provada resulta que:
1. A. e R. celebraram um contrato nos termos do qual aquela se obrigava a fiscalizar as obras a realizar nos lotes 77 e 74 da Quinta da Fortaleza, pertencentes a esta última;
2. A R. entregou à A. uma letra do seu aceite no montante de 500.000$00;
3. Em 14.10.91 a A. comunicou à Câmara Municipal de Vila do Bispo que os contratos que celebrara com a R. já não se encontravam em vigor. Assim, não se tendo apurado quais os montantes que A. e R. haviam acordado para o pagamento dos trabalhos realizados por aquela primeira, é impossível determinar, mesmo em abstracto, qual seria o montante eventualmente em dívida
(sendo certo que, a fazer-se essa demonstração, caberia à R. provar ter efectuado o pagamento). Resulta, pois, evidente que a matéria de facto apurada não é suficiente para alcançar o efeito jurídico pretendido pela A., por terem ficado por demonstrar elementos essenciais ao mesmo. Daí que, em conformidade com quanto vem de dizer-se, se imponha a conclusão de que o pedido terá de improceder.'
2. Inconformada com a sentença, C..., Lda. dela interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora (fls. 184), tendo nas respectivas alegações (fls. 190 e seguintes) concluído do seguinte modo:
'1 - Os documentos juntos aos autos de fls. 51 a 61 não foram impugnados pela Recorrida.
2 - Por isso, nos termos conjugados dos artºs 374º, nº 1 e 376º, nº 1, ambos do C.C., fazem prova plena das declarações neles contidas.
3 - Por isso, a matéria de facto neles contida deveria ter sido levada à especificação.
4 - Nos termos do Assento nº 14/94, do STJ, de 25.5.94, a especificação, na vigência do Código de Processo Civil de 1961, antes e depois da reforma nele introduzida pelo DL nº 242/85, de 9 de Julho, pode ser sempre alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final.
5 - Ao não considerar a força probatória dos factos relatados nos documentos de fls. 51 a 61 dos autos, o Tribunal «a quo» violou por erro de interpretação as disposições combinadas dos artºs 374º, nº 1 e 376º, nº 1 do C.C. e 511º e 563º, nº 2, ambos do C.P.C.
6 - Deve, por isso, revogar-se a, aliás, douta sentença «sub judice» e substituir-se por outra que, reapreciando criticamente a prova, julgue a acção procedente e condene a Recorrida no pedido.'
A apelada E... produziu também alegações (fls. 197 e seguintes), tendo apresentado as conclusões que seguem:
'I – A acção aqui em causa era de cobrança de dívida. II – Daqui decorre que, à apelante competia, para obter ganho de causa, provar, quer a existência da dívida, quer o seu montante. III – Não logrou provar nem uma, nem outra (art. 342º/1 do CC). IV – Por isso viu as suas pretensões sossobrarem em prol da apelada. V – Diz agora a apelante, que, com a réplica, juntou prova documental bastante da existência dessa dívida. VI – E que, por isso, quer pela via da ampliação oficiosa da especificação, quer pela outra via da resposta ao quesito 4º, o tribunal «a quo» deveria ter valorado tais documentos nesse mesmo sentido e, consequentemente, condenado a recorrida conforme pedido. VII – Não tem razão, a recorrente. VIII – E não tem porque confunde a prova da interpelação feita, à apelada, para pagar, com a prova da existência da dívida, que é coisa que lhe é lógica e cronologicamente anterior. IX – Se, com os ditos documentos, a recorrente logrou provar alguma coisa, tal foi apenas que interpelou, a recorrida, para pagar. X – O que nunca conseguiu provar foi que esta lhe devesse alguma coisa e em que montante, até porque os ditos documentos não eram os adequados para o efeito! XI – A sentença recorrida é, portanto, correcta, não merecendo, por isso, qualquer censura. XII – Ademais, os documentos ora esgrimidos, pela recorrente, sendo receptícios, faziam recair, sobre ela o ónus da prova da sua «colocação ao alcance do destinatário» (art. 224º/1 do CC). XIII – Tal prova não foi feita, e tanto basta para lhes retirar qualquer eficácia sequer como documentos interpelatórios (que era, como vimos, a única coisa que poderiam ser). XIV – Se a isto acrescentarmos que, os documentos de fls. 51 e 54 nem sequer tinham como destinatário a apelada, temos traçado o peso probatório dos mesmos documentos, que manifestamente é nenhum. XV – Deve, pois, manter-se o julgado, por não ser passível de qualquer censura!'
Por acórdão de 6 de Abril de 2000 (fls. 206 e seguintes), o Tribunal da Relação de Évora decidiu: a) Anular totalmente o julgamento já realizado e, consequentemente, as respostas já dadas aos quesitos, o que arrastou a anulação da sentença recorrida; b) Ampliar a matéria da especificação nos moldes que constam do ponto 3.1. do acórdão; c) Ampliar a matéria do questionário (actual base instrutória) nos moldes enunciados no ponto 3.2. do acórdão. Assinale-se que o ponto 3. do acórdão da Relação de Évora contém a seguinte referência: 'São alteradas as peças da especificação e questionário de fls.
115-116 nas respectivas formas que se seguem, respeitando-se a ordem sequencial dos factos já estabelecidos, sendo os actuais a acrescerem, quer na referência
às alíneas da especificação, quer nos números do questionário.'. Quanto à especificação, o ponto 3.1. desse mesmo acórdão contém quatro factos a ela aditados; quanto ao questionário, o ponto 3.2. contém vinte e um factos a ele aditados.
3. A apelada E... reclamou do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de
6 de Abril de 2000 (fls. 217 e seguintes), tendo apresentado, nomeadamente, as seguintes conclusões:
'I – O presente recurso de apelação foi decidido com base no disposto no nº 4 do art. 712º do CPC, como expressamente se diz no ponto 1.3.2. do seu relatório. II – Acontece que, os Mmos. Juizes Desembargadores interpretaram, esta norma, como consagrando um recurso de substituição e não um recurso de cassação. III – Acontece, porém, que o que ali se prevê é um recurso de cassação. IV – Daqui que, ao invés do que fizeram, V. Exas., não podiam, nunca, ter decidido como decidiram. V – Anulando todo o julgamento, e impondo ao tribunal da 1ª instância, como deveras impuseram, a sua especificação, o seu questionário, a sua visão do caso e a forma como este tribunal «a quo» há-de conduzir toda a nova instrução e julgamento.
[...] IX – Ocorreu, por isso, aqui, uma incorrecta aplicação da norma do nº 4 do art.
712º do CPC, por ela, esse venerando tribunal, haver feito uma, também incorrecta, por inconstitucional (art. 80º, nº 3 da Lei 28/82, de 15/11), interpretação, já que, a dita norma deveria ter sido aplicada, com todas as legais consequências daí decorrentes, como consagrando um verdadeiro e próprio recurso de cassação, e, ao invés, foi aplicada como prevendo um recurso de substituição. X – Devem, V. Exas, Mmos. Juizes Desembargadores, face ao acabado de expor, apreciar a inconstitucionalidade invocada, com todas as legais consequências no que tange ao acórdão sub-judice, maxime, anulando-o e substituindo-o por outro que respeite os limites estabelecidos no nº 4 do art. 712º do CPC. XI – Em qualquer caso, devem, V. Exas., atender esta reclamação e, quer por violação do disposto na al. c) do nº 1 do art. 668º do CPC, quer por manifesto excesso de pronúncia (2ª parte da al. d) do nº 1 do mesmo artigo), ou ambos, XII – Devem declarar nulo, com todas as legais consequências, o acórdão apreciando (corpo do n.º 1 do art. 668º do CPC).'
Por acórdão de 4 de Julho de 2000 (fls. 230 e seguintes), o Tribunal da Relação de Évora negou provimento à reclamação. Pode ler-se no texto do acórdão, para o que aqui releva, o seguinte:
'Importa esclarecer as seguintes questões desta reclamação: a) Natureza e alcance do recurso da apelação; b) Os poderes cognitivos deste tribunal de recurso; c) Que inconstitucionalidade ocorrerá na concreta interpretação e aplicação do n.º 4 do art. 712º do CPC?
[...]
1.2 - [...] o recurso da apelação é um recurso amplo sobre a decisão de mérito de um processo e pode incidir só sobre questão de facto e/ou questão de direito. Pode conhecer, quer por via de anulação quer por via de substituição, do objecto da lide, desde que disponha de todos os elementos (de facto) necessários a ajustada composição do conflito de interesses. Ou pode impor a ampliação dessa base fáctica, se necessário, ordenando a ampliação, quer da matéria assente, quer da base instrutória, desde que sejam respeitados os princípios inscritos nos arts. 3º, nº 1 e 664º, de que o juiz: «só pode servir-se dos factos articulados pelas partes». Não se trata de um poder discricionário conferido ao tribunal de recurso, mas de um poder juridicamente vinculado: só pode ser exercitado se se verificar o pressuposto legal da insuficiência da matéria de facto seleccionada para suportar a decisão, por se não terem seleccionado todos os factos relevantes e susceptíveis de suportar uma decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito. Este entendimento da norma do nº 4 do art. 712º que a reclamante não logrou alcançar para entender a decisão impugnada.
2 - Os poderes cognitivos do Tribunal da Relação, de qualquer tribunal de Relação, estão bem delimitados no art. 712º. Nos seus nºs 1 e 2 se mencionam as condições em que podem ser aqui reapreciados, julgados de novo, os factos fixados na primeira instância, podendo ser, se verificados esses concretos pressupostos, alterados, quer no sentido da ampliação, quer no sentido da redução, pela via da alteração das respostas dadas aos quesitos, quer pela reapreciação de factos confessados, admitidos por acordo ou passíveis de retirar-se de documento novo superveniente. Mas isto pressupõe a manutenção do anterior julgamento. Admite-se, ainda, em termos breves, também no pressuposto da manutenção do julgamento da 1ª instância, uma renovação de alguns meios de prova no próprio tribunal da Relação. Finalmente, quando se não houver de observar nenhuma daquelas circunstâncias, o tribunal da Relação, se o julgar indispensável, anula a decisão e manda repetir o julgamento em toda a parte que se não mostre viciada, tal como acima se disse. Assim, este tribunal não é um tribunal de cassação, mas um verdadeiro tribunal de instância, de 2ª instância, como se viu, em face do disposto no art. 16º da L. 3/99.
2.1 - Então, qual a razão da repetição de todo o julgamento? Dissemos acima, que a 2ª parte do nº 4 só pretende abarcar, pela repetição do julgamento, a parte do mesmo que esteja viciada, excluindo da repetição a parte que não esteja viciada. Até aqui concordamos totalmente com a reclamante, tal como alega a fls. 226.
É a lei que o diz e determina.
3 - Para analisarmos a questão suscitada em c) supra, necessitávamos de saber que norma constitucional teria violado a nossa decisão. Certo e seguro é que a reclamante não apontou nenhum normativo da Lei fundamental que tenha sido violado.
É, porém, certo que invocou o nº 3 do art. 80º da Lei do Tribunal Constitucional, L. 28/82, de 15/11, com suas subsequentes alterações, incluindo a da L. 13-A/98, de 26/02. Contudo, este é um preceito regulador do procedimento a adoptar no Tribunal Constitucional e não constitui qualquer consagração de direito específico dos cidadãos ou da sociedade. Não se diz qual o princípio fundamental estruturante da sociedade foi ofendido. Foi o princípio da igualdade, da proporcionalidade, do Estado de direito democrático ou de acesso ao direito e aos tribunais? Não se sabe. Já explicamos o entendimento que fizemos do nº 4 do art. 712º, aliás, em termos expressos no próprio texto do acórdão reclamado. Não há, por isso, qualquer razão para que se possa descortinar qualquer vício na decisão deste tribunal.'
4. E... recorreu então da decisão do Tribunal da Relação de Évora para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 236). Pretende a recorrente 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do art. 712º do actual Código de Processo Civil, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, e que, grosso modo, se consubstanciou em entender que ali se acha consagrado um recurso de substituição e não um recurso de cassação, como entende a recorrente e a melhor doutrina, e ainda que, a sua previsão não circunscreve, só aos erros de direito, a matéria sindicanda', por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da independência dos tribunais, consagrados nos artigos 13º e 203º, respectivamente. O recurso foi admitido por despacho de fls. 238.
5. A recorrente produziu, no Tribunal Constitucional, as alegações de fls. 240 e seguintes, concluindo assim:
'I – O recurso de apelação sub judicio foi decidido com base no disposto no nº 4 do art. 712º do CPC, como expressamente se diz no ponto 1.3.2. do seu relatório. II – Acontece que, os Mmos Juizes Desembargadores do Tribunal da Relação de
Évora interpretaram, esta norma, como consagrando um recurso de substituição e não um recurso de cassação, que é o que deveras ali se prevê. III – Em consequência deste entendimento, os senhores desembargadores anularam todo o julgamento e, no acórdão que então tiraram impuseram, ao tribunal de 1ª instância, que o repetisse, mas usando a especificação e o questionário por si elaborados, bem como que tivesse em conta apenas a sua (da mesma Relação) visão do caso e as suas «instruções» sobre o modo de conduzir toda a nova instrução e julgamento. IV – Ora, «o recurso de cassação e o correspondente juízo rescindente só permitem (à instância superior) um controlo sobre a lei aplicável e a coerência lógica e argumentativa da decisão, isto é, não atribuem ao tribunal de recurso o poder de administrar justiça no caso concreto: trata-se apenas de averiguar se o tribunal recorrido aplicou a lei adequada, se os fundamentos são coerentes com a decisão e se a motivação desta é aceitável em função dos elementos constantes do processo e da lei aplicável» (apud Miguel Teixeira de Sousa, «Estudos sobre o novo Processo Civil», pág. 400 e ss. – Lex 1997). V – «A escolha entre o modelo de cassação e o de substituição traduz-se nas seguintes consequências: – no recurso de cassação, a função do tribunal é a defesa da lei, pelo que esse órgão só pode interpretá-la e verificar se a decisão impugnada é conforme com ela; se conclui que não o é, não pode aplicar a lei ao caso concreto; (...)» (ob. cit., pág. 401). VI – Como dizia Calamandrei, citado por Miguel Teixeira de Sousa na al. b) de fls. 401/402: «O tribunal de cassação (...) anula, mediante recurso dos interessados, as sentenças dos juízes inferiores que contenham um erro de direito na decisão de mérito». VII – Ocorreu, por isso, aqui, uma incorrecta aplicação da norma do nº 4 do art.
712º do CPC, por dela, o Tribunal da Relação de Évora, haver feito uma, também incorrecta, por inconstitucionalidade (art. 80º, nº 3 da Lei 28/82, de 15/11), interpretação, já que, a dita norma deveria ter sido aplicada, com todas as legais consequências daí decorrentes, como consagrando um verdadeiro e próprio recurso de cassação, e, ao invés, foi aplicada como prevendo um recurso de substituição. VIII – Devem, V. Exas., Mmos. Juizes Conselheiros do Tribunal Constitucional, face ao acabado de expor, apreciar a inconstitucionalidade invocada, com todas as legais consequências no que tange ao acórdão sub-judice, maxime, reconhecendo que o mesmo viola os princípios constitucionais da igualdade e da independência dos juízes e dos tribunais (arts. 13º e 203º da CRP).'
A recorrida não apresentou alegações (fls. 252).
II
6. Vem o presente recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. A questão a apreciar resume-se a saber se é inconstitucional a norma constante do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual o tribunal que julga o recurso de apelação pode elaborar a especificação e o questionário (ou base instrutória) e, consequentemente, impô-los ao tribunal recorrido, quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto assente e da que deva considerar-se controvertida. Segundo a recorrente, a norma do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil apenas permite a anulação do julgamento realizado na 1ª instância e a consequente devolução do processo ao tribunal recorrido, para que este profira nova decisão (isto é, apenas permite ao tribunal que julga a apelação cassar a decisão recorrida); não permite a aplicação da lei ao caso concreto, nomeadamente a elaboração da especificação e do questionário e sua imposição ao tribunal recorrido (isto é, não permite ao tribunal que julga a apelação substituir a decisão recorrida por outra) – o que, aliás, na sua perspectiva, seria inconstitucional, por violação dos princípios da igualdade e da independência dos juízes e dos tribunais. Como a recorrente só suscitou a questão da inconstitucionalidade depois de ter sido proferida a decisão recorrida – mais concretamente, na reclamação deduzida a fls. 217 e seguintes –, coloca-se, em primeiro lugar, o problema de saber se se encontra preenchido o pressuposto processual a que aludem os artigos 70º, n.º
1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional: o de aquela questão ter sido suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. A resposta a tal questão é afirmativa. No seu teor literal, o n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil não refere directamente a possibilidade de elaboração, pelo tribunal que julga o recurso de apelação, da especificação e do questionário, pelo que à recorrente
(então apelada) não era exigível prever que a Relação de Évora o fizesse e, consequentemente, não lhe era exigível suscitar a questão antes do julgamento da apelação. Por outro lado, a então apelante havia pugnado, nas alegações produzidas junto daquele tribunal, pela aplicação das normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil (cfr. fls. 192), pelo que era meramente hipotética, no recurso pendente, a possibilidade de no julgamento vir a ser aplicada a norma do n.º 4 do artigo 712º daquele Código. Não existem, pois, obstáculos ao conhecimento do objecto do presente recurso.
7. É a seguinte a redacção do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, depois da revisão de 1995-1996 do Código de Processo Civil:
'Artigo 712º Modificabilidade da decisão de facto
[...]
4 – Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na decisão.
[...].'
Sobre tal preceito, diz Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Coimbra, 1999, págs. 485-486):
'A clara ampliação do leque dos elementos probatórios constantes do processo e à disposição da Relação – e o consequente incremento dos seus poderes cognitivos quanto à matéria de facto objecto de impugnação – leva a que a possibilidade de anulação da decisão de facto proferida em 1ª instância passe a ser, de algum modo, excepcional ou residual relativamente ao exercício dos poderes de cognição conferidos à 2ª instância. Assim, constatada uma possível deficiência ou obscuridade quanto a certa parcela ou segmento da decisão sobre a matéria de facto, se constarem do processo todos os elementos probatórios que lhe serviram de base, deverá a Relação, antes e em vez de anular a decisão, proceder à reapreciação do decidido, substituindo-se ao tribunal 'a quo' e corrigindo o erro de julgamento que considere ter ocorrido. O exercício do poder de rescisão ou cassatório conferido por este preceito deverá, pois, entender-se como subsidiário relativamente aos poderes de reapreciação ou reexame dos pontos da matéria de facto questionados no recurso – só tendo lugar quando se revele absolutamente inviável o eficaz e satisfatório exercício destes pela Relação.'
O n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil não contempla, ao menos expressamente, como já se disse, a possibilidade de o tribunal de recurso anular a decisão recorrida e, simultaneamente, elaborar a especificação e o questionário (ou base instrutória). Mas implicará tal possibilidade (admitida pelo tribunal recorrido) uma violação dos princípios da igualdade e da independência dos tribunais e dos juízes, como quer a recorrente? Por outras palavras, será desconforme com a Constituição a vinculação do tribunal a quo à especificação e ao questionário elaborados pelo tribunal de recurso?
8. A resposta a esta questão é negativa, desde logo porque o entendimento contrário pressuporia a competência reservada do tribunal recorrido para a elaboração da especificação e do questionário – o que não encontra qualquer assento constitucional. Dito de outro modo, não existe qualquer disposição constitucional que vede a atribuição, aos tribunais de segunda instância, de competência para a elaboração da especificação e do questionário: competência que, no entendimento da recorrente, atribui ao recurso interposto a fisionomia de um recurso de substituição. Do princípio da independência dos tribunais e dos juízes não se retira, certamente, tal proibição.
É que esse princípio, consagrado no artigo 203º da Constituição, tem de harmonizar-se com o dever de acatamento, pelos tribunais inferiores, das decisões proferidas pelos tribunais superiores em via de recurso. Tal dever decorre da previsão, dentro da ordem dos tribunais judiciais, dos tribunais de primeira e de segunda instância e do Supremo Tribunal de Justiça
(artigos 209º, n.º 1, alínea a), 210º e 211º da Constituição), não se encontrando condicionado a uma específica fisionomia dos recursos de apelação.
Por outras palavras: nenhuma norma constitucional impõe que esse dever de acatamento só exista quando a decisão do tribunal de recurso seja de cassação
(ou de anulação) da decisão recorrida, sendo excluído quando a decisão do tribunal de recurso amplie a matéria da especificação e do questionário em certos moldes. E a inexistência de tal imposição constitucional decorre da circunstância de a Constituição não regular, como aliás é natural, a fisionomia dos recursos de apelação. Não pode, assim, retirar-se do princípio da independência dos tribunais e dos juízes qualquer argumento no sentido da inconstitucionalidade da interpretação, veiculada na decisão recorrida, do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil. Efectivamente, tal princípio deve ser articulado com o dever de acatamento, pelos tribunais inferiores, das decisões proferidas pelos tribunais superiores em via de recurso, dever esse que não postula necessariamente a adopção, nos recursos de apelação, do modelo da cassação, tal como a recorrente o entende. Do princípio da igualdade também nada se retira para a resolução do problema colocado pela recorrente. Não se alcança – nem a recorrente explica – em que medida a competência do tribunal de 2ª instância para a elaboração da especificação e do questionário pode significar um qualquer tratamento diferenciado ou discriminatório dos recorrentes.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual o tribunal que julga o recurso de apelação pode elaborar a especificação e o questionário (ou base instrutória) e, consequentemente, impô-los ao tribunal recorrido, quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto assente e da que deva considerar-se controvertida; b) Em consequência, negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, a cobrar nos termos do artigo 54º do Decreto-Lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro.
Lisboa, 18 de Abril de 2001 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Vítor Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa