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Processo n.º 708/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, foi rejeitado o recurso
para si interposto, por A. S.A. (…), com os seguintes fundamentos:
“Ao presente processo, por ter sido instalado em 25.02.2008, é aplicável o
Código de Processo Civil (cfr. art. 140° do CPTA), com a alteração que lhe
introduziu o DL. n° 303/2007, de 24/8 (cfr. respectivo art. 12°).
O recurso interposto, e alegado de fls. 280 a 288, sem que fossem formuladas
conclusões, foi admitido por despacho do Tribunal a quo de 13.01.2009, a fls.
361 e 362.
Prevê o art. 685-C, n° 5 do CPC, aditado pelo art. 2° do DL n° 303/2007, que a
decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior.
Ora, nos termos do disposto no art. 685°-A, n° 1 o recorrente deve apresentar a
sua alegação, na qual conclui, pela indicação dos fundamentos por que pede a
alteração ou anulação da decisão.
Por sua vez, estabelece o n° 2 do art. 685°-O, que ‘O requerimento é indeferido
quando:
(...) b) Não contenha ou junte a alegação do recorrente e ou quando esta não
tenha conclusões.’
Significa isto que, na actual redacção do CPC, a falta total de conclusões
deixou de constituir um vício sanável (cfr. n° 3 do art. 685-A) e conduz ao
indeferimento do requerimento de recurso, nos termos do citado art. 685°-C, n°
2, al. b).
Assim sendo, e verificando-se que nas alegações do recorrente não foram
formuladas conclusões, o requerimento de interposição do recurso deveria ter
sido indeferido.
Não o tendo sido, e não estando este Tribunal superior vinculado a tal decisão é
de indeferir o recurso, atento o disposto nos arts. 685°-A, n° 1 e 685-C, n° 2,
al. b) e n° 5, ambos do CPC, aplicável ex vi do art. 140.º do CPTA.”
2. Após diversas vicissitudes processuais, a recorrente veio interpor recurso
para o Tribunal Constitucional, invocando o seguinte:
“O presente recurso visa a apreciação da interpretação normativa pelo TCAS
atribuída aos arts. 685°-A e 685°-C do CPC, na redacção dada pelo DL n°
303/2007, de 24AG0 (que aditou os mesmos e que correspondem, no que aqui
importa, ao art. 690.º, revogado por aquele diploma), que se afigura
inconstitucional por violação dos arts. 2° (princípio do Estado de direito
democrático), 18° (princípio da proporcionalidade), 20° (princípios do acesso à
justiça, da tutela jurisdicional efectiva, da pro actione, da prevalência da
substância sobre a forma), na medida em que reduzem desadequada e
desproporcionadamente os meios de acesso à justiça e ao duplo grau de
jurisdição, afastam a tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses
das partes pela imposição de um formalismo excessivo e sem aderência à própria
letra da lei, e sublima a forma em detrimento da substância.
Tais inconstitucionalidades foram arguidas na alegação de recurso de revista
para o Supremo Tribunal Administrativo, de 14MA109 (fls.), por ter sido esta a
primeira oportunidade para suscitar a questão, esgotado que estava o poder
jurisdicional do TCAS, e não obstante a não admissão do recurso de revista.”
3. Por despacho de 23 de Setembro de 2009, o Juiz relator exarou o despacho
constante de fls. 481, com o seguinte teor:
“Visa o presente recurso a ‘apreciação da interpretação normativa pelo TCAS
atribuída aos arts. 685º-A e 685º-C do CPC, na redacção dada pelo DL nº
303/2007, de 24AGO. ‘
Incumbindo ao Recorrente a definição do objecto do recurso, deve o mesmo
esclarecer, designadamente, em termos claros e perceptíveis, qual a exacta
dimensão interpretativa acolhida na decisão recorrida cuja inconstitucionalidade
pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.”
Respondeu a Recorrente pela seguinte forma:
“1. O acórdão de 5MARO9 do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS),
complementado pelo acórdão de 23ABR09, acolheu uma dimensão normativa dos arts.
685°-A e 685°-C do CPC, na redacção dada pelo DL n 303/2007, de 24AG0, que se
reputa inconstitucional, e que se pretende seja objecto de apreciação por esse
Tribunal Constitucional.
Com efeito,
2. A dimensão normativa que se afigura inconstitucional – por violação dos arts.
2° (princípio do Estado de direito democrático), 18° (princípio da
proporcionalidade), 20° (princípios do acesso à justiça, da tutela jurisdicional
efectiva, da pro actione, da prevalência da substância sobre a forma), na medida
em que reduzem desadequada e desproporcionadamente os meios de acesso à justiça
e ao duplo grau de jurisdição, afastam a tutela jurisdicional efectiva dos
direitos e interesses das partes pela imposição de um formalismo excessivo e sem
aderência à própria letra da lei, e sublima a forma em detrimento da substância
–,
(…) 3. Como aliás, resulta da alegação de recurso de revista para o Supremo
Tribunal Administrativo, é a seguinte:
‘a estruturação da alegação de recurso por capítulos ou secções conforme as
questões suscitadas, cada um terminando pela indicação das normas aplicadas e
consideradas violadas e o sentido com que deveriam ter sitio aplicadas, não
satisfaz o ónus de formulação de conclusões e respectivas especificações exigido
pelo artigo 685.º-A, n.ºs 1 e 2 e/ou nem dá lugar ao convite para
aperfeiçoamento previsto no n.º 3 daquele artigo, conduzindo directamente ao
indeferimento do requerimento de recurso previsto na al. b) do n.º 2 do artigo
685.º-C.’”
4. Foi proferida decisão sumária, no que ora importa, com o seguinte teor:
“5. É de proferir decisão sumária nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC por
não se verificar requisito essencial ao conhecimento do recurso. Com efeito,
para que se possa conhecer do objecto de recursos interpostos ao abrigo do
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário
que, durante o processo, o recorrente tenha suscitado inconstitucionalidade de
uma norma ou dimensão normativa. Tal requisito resulta directamente dos artigos
280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da
Lei do Tribunal Constitucional. A expressão ‘durante o processo’ tem sido
entendida, de acordo com jurisprudência reiterada deste Tribunal, como
compreendendo todos os momentos processuais até que seja proferida a decisão
final pelo tribunal recorrido (isto é, até que se esgote o respectivo poder
jurisdicional, nos termos do artigo 666.º, n.º 1, do CPC).
Admite-se, no entanto, que, em situações excepcionais, o recorrente seja
dispensado do cumprimento deste ónus. Tal ocorre quando não lhe assistiu
qualquer oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade
em momento anterior, designadamente pelo facto de a aplicação de certos
preceitos legais ou a interpretação que lhes é atribuída ser verdadeiramente
insólita ou imprevisível na economia do processo. Quando tal sucede, exige-se
que o Recorrente o faça – isto é, que suscite, em moldes adequados, a questão de
constitucionalidade normativa – na primeira oportunidade processual de que venha
a dispor para o efeito.
Na situação em apreço, se é defensável que seria inexigível ao Recorrente que
antecipasse a suscitação da questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão do TCA Sul, o certo é que o mesmo já não sucede quando verificamos que
no pedido de aclaração deduzido a omissão persiste. Deste modo, a suscitação da
questão no momento da dedução do recurso ao abrigo do artigo 150.º do CPTA é
inelutavelmente extemporânea.”
5. A mencionada decisão sumária sofreu a reclamação formulada pela seguinte
forma:
“A) A Decisão Reclamada
1. Na decisão ora reclamada considerou-se que não se verifica um requisito
essencial ao conhecimento do objecto do recurso, a saber: que a questão da
inconstitucionalidade não foi suscitada ‘durante o processo’.
2. Para tal, sustenta-se que, entendendo-se a expressão ‘durante o processo’
como compreendendo todos os momentos processuais até que seja proferida a
decisão final pelo tribunal recorrido (isto é, até que se esgote o respectivo
poder jurisdicional, nos termos do artigo 666°, n° 1, do CPC.,
3. A Recorrente, apesar de não lhe ser exigível que suscitasse a questão antes
de proferida a decisão do TCA Sul, não a suscitou no pedido de aclaração de tal
decisão.
4. Como tal, ‘a suscitação da questão no momento da dedução do recurso ao
abrigo do artigo 150° do CPTA é inelutavelmente extemporânea. ‘.
B) Ilegalidade da decisão reclamada
5. Com o devido respeito, a decisão reclamada é ilegal, por erro na aplicação do
Direito.
6. Com efeito, a decisão reclamada enferma de violação quer do art. 70, n.º 1,
al. b) da LTC, e do art. 666°, n.º 1, do CPC.
7. A exigência de a questão de inconstitucionalidade ser suscitada ‘durante o
processo’ como compreendendo todos os momentos processuais até que seja
proferida a decisão final pelo tribunal recorrido (isto é, até que se esgote o
respectivo poder jurisdicional, nos termos do artigo 666°, n.º 1, do CPC,
8. Não inviabiliza a admissibilidade do recurso quando não haja sido suscitada
no eventual pedido de aclaração que seja feito da decisão que motiva a questão
da inconstitucionalidade.
9. A exigência de suscitar a questão antes de ser proferida a decisão final pelo
tribunal recorrido pressupõe que o tribunal recorrido possa, ainda,
pronunciar-se e decidir a questão suscitada.
10. Ora, como bem se refere na decisão reclamada, tal só pode ocorrer até se
esgotar o poder jurisdicional.
11. E o que é certo é que ao proferir a decisão, colectiva, de não admissão do
recurso, o TCA esgotou o seu poder jurisdicional, apenas podendo rectificar
erros materiais, suprir nulidades, esclarecer dúvidas existentes na sentença e
reformá-la — art. 666.º, n°s 1 e 2, do CPC,
12. Sendo que, no caso de nulidades, as mesmas só podem ser arguidas perante o
tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo
o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades —
art. 668°, n.º 4.
13. Ou seja, mesmo que se tratasse de uma das nulidades previstas nas als. b) a
e) do n° 1 do art. 668° do CPC — e a questão da inconstitucionalidade não é
nenhuma destas –, nem assim poderia o TCA supri-la por haver lugar (e ter sido
interposto) recurso ordinário.
14. Por maioria de razão, tratando-se de algo que implicaria uma decisão de
fundo, um reformular integral da decisão, já não seria possível ao TCA apreciar
e decidir a questão da inconstitucionalidade por se encontrar esgotado o seu
poder jurisdicional.
15. Dir-se-á mesmo que, ainda que os juízes que proferiram o acórdão (a decisão
final), suscitada em sede de aclaração a questão da inconstitucionalidade,
concordassem com a Recorrente, já nada poderiam fazer, por se encontrar esgotado
o seu poder jurisdicional, tendo que ser esta a diligenciar no sentido de não
deixar transitar tal decisão que aplicou norma inconstitucional.
16. Ou seja, a decisão reclamada é ilegal, por violação do disposto nos arts.
70°, n° 1, al. b), da LTC, e do art. 666° do CPC.”
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
6. Refira-se, prima facie, que apreciar, para os efeitos do disposto nos artigos
685.º-A e 685.º-C do Código de Processo Civil, da existência, na alegação de
recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, de conclusões, não é,
seguramente, da competência deste Tribunal por não se tratar de questão de
inconstitucionalidade normativa, já que tal tarefa se circunscreve a um mero
exercício de hermenêutica jurídica, a ser efectivada em sede de direito
infraconstitucional.
Refira-se também que a clareza das disposições legais citadas é manifesta.
Veja-se, nomeadamente a previsão contida no artigo 685.º-C, n.º 2, alínea b),
que preconiza o indeferimento do requerimento de interposição de recurso, quando
inexistam conclusões na alegação do recorrente.
Ora, face à clareza da norma adjectiva referida, se a reclamante pretendia
afrontar o seu teor literal com os parâmetros constitucionais, enunciados, da
proporcionalidade ou do acesso à justiça, teria de o invocar quando interpôs
recurso para o TCA Sul.
Efectivamente, e, conforme foi dito na decisão sumária, posta em crise, e que,
agora se reitera: “Admite-se, no entanto, que, em situações excepcionais, o
recorrente seja dispensado do cumprimento deste ónus (da suscitação prévia). Tal
ocorre, quando não lhe assistiu qualquer oportunidade processual para suscitar a
questão de constitucionalidade em momento anterior, designadamente pelo facto de
a aplicação de certos preceitos legais ou a interpretação que lhes é atribuída
ser verdadeiramente insólita ou imprevisível na economia do processo (…)”.
Na situação em apreço, porém, face à linearidade da interpretação dos preceitos
em causa feita pelo tribunal recorrido, estamos muito longe de a poder
considerar como uma insólita ou imprevisível interpretação, pelo que se reveste
como inidónea para a qualificar como decisão surpresa.
7. Por outro lado, a interpretação “normativa” que a reclamante pretende ver
questionada não encontra na decisão recorrida qualquer suporte literal.
Verifica-se, assim, que não foi aplicada a “norma” questionada pela reclamante,
na dimensão normativa por si explicitada.
Os vectores acabados de ser enunciados obstam ao conhecimento do recurso.
III – Decisão
8. Nestes termos, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em
consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento
do recurso.
Custas pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2009
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos