Imprimir acórdão
Processo n.º 886/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o relator proferiu a seguinte
decisão ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(LTC):
“1. O recorrente foi condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca da Mealhada na
pena de 7 meses de prisão, como autor de um crime de violação de proibições ou
interdições, previsto e punido pelo artigo 353.º do Código Penal. Interpôs
recurso da sentença condenatória, ao qual o Tribunal da Relação de Coimbra negou
provimento, por acórdão de 9 de Setembro de 2009.
Ponderou este acórdão, além do mais, o seguinte:
“Importa agora decidir se o arguido, na hipótese de ser punido, deve ser punido
em pena não privativa da liberdade, nos termos do art.70.° do Código Penal.
O arguido A. defende que, na hipótese de ser punido, deve ser condenado em pena
não privativa de liberdade, por esta satisfazer plenamente as eventuais
necessidades de punição, só assim se dando uma aplicação aceitável do art.70.º
do Código Penal. Terminada que estava a sanção acessória de inibição de conduzir
não se verificavam necessidades de prevenção. Aqui à necessidade de manter a
reintegração do arguido na sociedade é uma finalidade que se sobrepõe à de
prevenção. Seria mais importante a de prevenção se à data do julgamento o
arguido ainda estivesse a cumprir a sanção acessória, o que não é o caso.
Vejamos.
Como regra, na abordagem da pena a aplicar deve o Tribunal atender, num primeiro
momento, à escolha da pena dentre as penas principais enunciadas no tipo penal
(art.70.º do C.P.); de seguida, importará determinar a concreta medida da pena
por que se optou (art.71.º do C.P.); e, por fim, determinando-se uma concreta
pena de prisão, haverá que verificar se ela pode ser objecto de substituição, em
sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida. O crime de violação de
imposições, proibições ou interdições é punido com pena de prisão até 2 anos ou
com pena de multa até 240 dias.
O art.70.º do Código Penal que estatui, como critério de orientação geral para a
escolha da pena, que” Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena
privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda
sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da
punição.”.
As finalidades da punição vêm definidas no art.40.º, n.º 1 do Código Penal,
resultando dos seus termos que “a aplicação de penas visa a protecção de bens
jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de
prevenção geral, servindo quer para dissuadir a prática de crimes, através da
intimidação das outras pessoas face ao sofrimento que com a pena se inflige ao
delinquente (prevenção geral negativa ou de intimidação), quer para manter e
reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas
do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal
(prevenção geral positiva ou de integração).
A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou
individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação
preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele
cometa novos crimes, que reincida.
A escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende
unicamente de considerações de prevenção geral e especial.
A culpa não tem relevância no problema da escolha da pena - Cfr. Cons. Maia
Gonçalves, in “Código Penal Português anotado”, 8ª edição, pág.354 e Prof.
Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do
crime”, Notícias Editorial, pág.332.
No caso em apreciação, o Tribunal da Relação entende que as exigências de
prevenção geral são intensas atenta a frequência com que as decisões judiciais,
proferidas num Estado de Direito Democrático, tendem a ser desrespeitadas,
colocando em causa a vida em sociedade e a confiança da comunidade nas suas
instituições judiciárias e na validade das normas do Estado.
O Tribunal da Relação entende ainda que as razões de prevenção especial são
elevadas pois o arguido vem ao longo de anos praticando sucessivos crimes
ligados à circulação rodoviária, e de desobediência, sendo que o crime agora em
apreciação foi praticado durante o período de suspensão de uma pena de prisão
(pontos 2 e 3 e sentença de 25-10-2006, de folhas 42 a 50). Ao voltar a
delinquir durante a suspensão de execução da pena de prisão o arguido demonstra
que a pena de multa não é sanção adequada e suficiente para o afastar da
criminalidade.
É evidente, assim, que a aplicação ao arguido de uma pena de multa, como pena
principal, não cumpriria o objectivo de intimidação e aprofundamento da validade
e eficácia das normas penais pelos cidadãos em geral e pelo arguido em
particular.
Do facto do arguido não ter sido julgado de imediato, mas só após o dia 16 de
Outubro de 2008, data em que terá terminado o cumprimento da sanção acessória
que o arguido violou, não resulta, racionalmente, que deixaram de se verificar
nem as razões de prevenção geral, nem especial. A reintegração do arguido na
sociedade, onde repetidamente viola as normas que tutelam bens jurídicos
constitucionais, não se compadece, como bem menciona a sentença recorrida com a
aplicação da pena de multa prevista no tipo legal a título principal, mas sim
com a pena de prisão.
Assim, bem andou o Tribunal a quo ao optar pela aplicação da pena de prisão em
detrimento da pena de multa, sendo que, como foi mencionado pelo Tribunal a quo,
nas circunstâncias concretas dos factos só uma pena de prisão efectiva pode já
cumprir o objectivo da reintegração do arguido na sociedade e protecção dos bem
jurídico violado.
A questão seguinte é se o artigo 40.º n.º 2, analisado à luz do art.32.º da
C.R.P. é inconstitucional porque ambíguo, compromete direitos de defesa e mesmo
o direito de aferir da justiça de uma decisão, seja por parte do arguido, seja
por parte do ofendido;
No dizer do arguido, no caso concreto, não se vislumbra medida de culpa que
justifique uma pena de prisão.
Sobre esta questão começamos por discordar que o art. 40.º, n.º 2 do Código
Penal é um preceito ambíguo, pois este, no entendimento do Tribunal da Relação e
que nos parece ser o da 1 a instância, tem um só sentido, que é o de que a culpa
- entendida como juízo de censura que é possível dirigir ao agente por não se
ter comportado, como podia, de acordo com a norma -, condiciona a medida da
pena, não podendo a pena ultrapassar a culpa, designadamente por razões de
prevenção geral ou especial.
No caso em apreciação a culpa é elevada porquanto o arguido agiu com dolo
directo – pois representou os factos da ilicitude típica objectivos e actuou com
intenção de os realizar – e intenso –, pois a condução permitiu a necessária
ponderação, como actividade que se prolonga por momentos relativamente longos –
e os seus antecedentes criminais, levam já à aproximação de uma certa tendência
para a prática de crimes rodoviários e de desobediência.
Conjugando a elevada censurabilidade da conduta do arguido, com a ilicitude dos
factos e restantes factores incluídos na sentença recorrida aquando da
determinação da medida concreta da pena, incluindo as exigências de prevenção
geral e especial, entendemos que o Tribunal a quo andou bem na fixação da pena
concreta de prisão.
Não vislumbramos ainda qualquer motivos para concluir que o art. 40.º, n.º 2 do
Código Penal, tido em conta na determinação da medida da pena, compromete
direitos de defesa e o direito de aferir da justiça de uma decisão, seja por
parte do arguido, seja por parte do ofendido, em violação do art.32.º da
C.R.P...
Improcede assim também esta questão.
O arguido defende que o artigo 70.º, interpretado no sentido de a escolha entre
uma pena privativa e não privativa de liberdade dever ser feita somente
atendendo à realização dos objectivos da punição sem atender aos demais
critérios que estão na norma referente à determinação da medida da pena, deve
ser declarado inconstitucional porque potencia e até justifica decisões injustas
e desequilibradas, como aquela em causa no presente recurso, e por estar em
contravenção com os direitos plasmados no n.º 1 do artigo 32.º da C.R.P..
Nesta parte diremos que o Tribunal da Relação não vislumbra qualquer razão para
concluir que o art.70.º do Código Penal, interpretado no sentido de a escolha
entre uma pena privativa e não privativa de liberdade depender unicamente de
considerações de prevenção geral e especial, justifica decisões injustas e
desequilibradas, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 32.º da C.R.P..
A prova de que o disposto no art.70.° do Código Penal não proporciona decisões
injustas e desequilibradas é a aplicação ao arguido A. de uma pena de prisão,
que em concreto não ultrapassou a medida da culpa, que é elevada.
Por fim, importa decidir se a sentença recorrida ao fazer aplicação ao arguido
da norma do 70.º, em que baseou a escolha de pena privativa de liberdade, apenas
de acordo com alegados critérios de necessidade de realizar as finalidades da
punição, sem atender a demais factores que propendiam para aplicação de pena não
privativa de liberdade, também se apresenta desconforme com o artº 32º da CRP,
na mesma medida em que aquela norma o é.
Salvo o devido respeito, não há qualquer factor que propenda para a aplicação da
pena não privativa da liberdade e que só as razões de prevenção.
O arguido não é o cidadão que um dia, ocasionalmente, praticou um crime. O
arguido é já um delinquente que só com alguma dificuldade ainda se pode
considerar pluriocasional, pois começa a aproximar-se de uma situação de
tendência, tal é o número de vezes que desrespeita as normas que tutelam bens
jurídico-constitucionais.
O Tribunal da Relação não encontra qualquer motivo para concluir que a sentença
recorrida ao aplicar ao arguido A. a pena privativa da liberdade, em obediência
ao disposto no art.70.º do Código Penal, violou o disposto no art. 32.º da
C.R.P. – seja qual for o número, dos vários, que constituem esta norma
constitucional.
Perante todo o exposto impõe-se manter a decisão condenatória e negar provimento
ao recurso interposto pelo arguido.
2. O arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, mediante
requerimento do seguinte teor:
“As peças processuais em que o recorrente suscitou a questão da
inconstitucionalidade foram:
1 – Alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (pags. 10, 11 e
14) no corpo das alegações e nas conclusões “T”, “U” e “V”, peça em que arguiu a
inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 40º, nº 2 e 70º, ambos do
Código Penal, por se mostrarem desconformes com o artº 32º da CRP (porque sendo
a primeira (artº 40º) ambígua compromete os direitos de defesa consagrados no
artº 32º da CRP, e segunda (artº 70º) potencia decisões injustas e
desequilibradas assim estando em contravenção do disposto no artº 32.º, nº 1, da
CRP. Normas que potenciam ambiguidade comprometem automaticamente todas as
garantias de defesa em processo penal.
2 – Resposta ao Parecer do Ministério Público, tendo nesta peça arguido a
inconstitucionalidade do artigo 412º, nº 4 do Código de Processo Penal, também
por se revelar desconforme com o artº 32º da CRP, por violar a parte desta norma
referente ao “recurso”, garantias de recurso (constitui uma limitação ao
conhecimento da matéria de facto por parte dos tribunais de recurso (constitui
uma limitação ao conhecimento da matéria de facto por parte dos tribunais de
recurso). A norma constitucional que se considera violada é o artigo 32º, nº 1
da Constituição da República Portuguesa.”
3. Apesar do deficiente cumprimento do disposto no artigo 75.º-A da LTC, o
requerimento de interposição do recurso, através da indicação relativa ao lugar
do processo onde foi suscitada a questão de inconstitucionalidade, permite
identificar com segurança as normas cuja inconstitucionalidade o recorrente quer
ver apreciada, pelo que não é indispensável convidá-lo a completar tal
requerimento.
Porém, o recurso não deve prosseguir, pelas razões que sumariamente se enunciam.
3.1. Quanto ao n.º 4 do artigo 412.º do CPP, não houve efectiva aplicação de tal
norma em desfavor do recorrente. O Tribunal da Relação não atendeu à oposição do
Ministério Público e, embora afirmando que era deficiente o modo como o
recorrente dera cumprimento às exigências do n.º 4 do artigo 412.º do CPP, optou
por se considerar “apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a
quo que o recorrente A. impugna”.
Assim, não há que conhecer do recurso nesta parte.
3.2. Quanto às normas do n.º 2 do artigo 40.º e do artigo 70.º, ambos do Código
Penal, a questão é manifestamente infundada.
O n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal, inserido num artigo dedicado à
explicitação dos fins das penas e das medidas de segurança e resultante da
revisão do Código levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março,
dispõe que “ Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Não há neste preceito ambiguidade que contrarie o princípio da determinabilidade
das leis ou que possa comprometer o exercício do direito de defesa. A norma tem
um só sentido, que é o de que a culpa funciona como limite máximo da pena.
Constitui mais um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito
criminal é estruturado com base na culpa do agente. Como no acórdão n.º 124/2004
(Diário da República, I-Série A, de 31 de Março de 2004), filiando-se no Acórdão
n.º 95/2001, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Abril de 2002,
se pondera:
«(...) O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de
um Estado de Direito, proíbe – já se disse – que se aplique pena sem culpa e,
bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa.
Trata-se de um princípio que emana da Constituição e que, na formulação de JOSÉ
DE SOUSA E BRITO (loc. cit., página 199), se deduz da dignidade da pessoa
humana, em que se baseia a República (artigo 1º da Constituição), e do direito
de liberdade (artigo 27º, n.º 1); e, nos dizeres de JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,
vai buscar o seu fundamento axiológico “ao princípio da inviolabilidade da
dignidade pessoal: o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de
Direito democrático” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do
Crime, Lisboa, 1993, página 73).
A complexidade teórica do conceito de culpa, a dificuldade prática do juízo e a
ineliminável margem de apreciação deixada ao juiz na determinação do grau de
culpa não afectam a controlabilidade da aplicação que da norma em causa seja
efectuada pelas sucessivas instâncias. A determinação do grau de culpa e,
consequentemente, do limite máximo da pena tem de ser acompanhada por uma
justificação racionalmente fundada por parte do juiz da condenação, permitindo o
ataque por parte do arguido e o controlo por parte do tribunal superior.
Idêntico raciocínio vale para a norma do artigo 70.º do Código Penal.
É certo que a segurança jurídica postula o princípio da precisão ou
determinabilidade dos actos normativos. Princípio que, como refere Gomes
Canotilho (Direito Constitucional, ed., pág. 258), se analisa em duas ideias
fundamentais. A primeira ao nível dos enunciados linguísticos, exigindo clareza
das normas legais, ao menos no sentido de que não enfermem de contraditoriedade
interpretativamente irremovível. A segunda aponta para a exigência de densidade
suficiente na regulamentação legal, que permita alicerçar posições jurídicas dos
cidadãos, constituir uma norma de actuação para o aplicador da lei e um padrão
de controlo para o órgão de fiscalização.
Ora, o enunciado linguístico do preceito não oferece qualquer ambiguidade ou
obscuridade e dirige ao juiz um comando claro: o de dar preferência à pena não
privativa da liberdade sempre que esta assegure a realização das finalidades da
punição.
E a margem de apreciação ou a “cláusula” de discricionariedade expressa na
condição “sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades
da punição” é inerente à relação legiferação – aplicação da lei no domínio do
direito sancionatório.
Por outro lado, a defesa do arguido e a controlabilidade da decisão por parte do
tribunal superior não está comprometida. O juiz tem de fundamentar a sua opção
pela pena privativa de liberdade. Razões que o arguido pode contrariar e o
tribunal superior reexaminar, face aos factos e à personalidade do arguido
processualmente provados e às necessidades de prevenção. Aliás, o acórdão
recorrido é uma exemplar demonstração da controlabilidade das razões da escolha
da pena.
Em resumo: as questões levantadas em torno do artigo 40.º e do artigo 70.º do
Código Penal podem ser de elevada complexidade teórica e de dificuldade prática.
Mas essas normas não suscitam qualquer dúvida de constitucionalidade face aos
parâmetros constitucionais invocados pelo recorrente. A questão de
constitucionalidade é, pois, manifestamente infundada.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não conhecer do objecto do recurso quanto à norma do n.º 4 do artigo 412.º do
Código de Processo Penal;
b) negar, no mais, provimento ao recurso;
c) condenar o recorrente nas custas, com 7 (sete) UCs de taxa de justiça.”
2. O recorrente reclama desta decisão, ao abrigo do n.º 3 do artigo
78.º-A da LTC, nos termos seguintes:
“[ … ]
Foi proferida decisão sumária por esse venerando tribunal sem que o recorrente
tenha sido notificado para apresentar as suas alegações, o que significa que não
lhe foi dada oportunidade de se defender capazmente e de argumentar no sentido
das razões das quais apenas tinha apresentado basicamente o enquadramento legal,
e algumas razões justificativas do seu entendimento, mas nunca extraindo as
consequências de modo completo como seria se lhe tivesse sido facultado
apresentar as alegações perante o Tribunal Constitucional.
Ou seja, o Tribunal Constitucional proferiu uma decisão sumária apenas com base
numa síntese alusiva às razões de inconstitucionalidade das normas em causa,
412º, nº 4, do Código de Processo Penal e 40º e 70º do Código Penal, sumariadas
pelo recorrente na sua alegação para o Tribunal da Relação de Coimbra e na
resposta ao parecer do Ministério Público.
Ora, como pode o Tribunal Constitucional ter analisado a questão de forma global
ou satisfatória, se o recorrente nem sequer apresentou alegações perante o
Tribunal Constitucional, nem sequer lhe foi dada oportunidade de se defender
capazmente, desenvolvendo a questão da inconstitucionalidade das normas
apontadas em concreto!?
No acórdão objecto da presente reclamação diz-se o seguinte:
“O Tribunal da Relação entende que as exigências de prevenção geral são intensas
atenta a frequência com que as decisões judiciais, proferidas num Estado de
Direito Democrático, tendem a ser desrespeitadas, colocando em causa a vida em
sociedade e a confiança da comunidade nas suas instituições judiciárias e na
validade das normas do Estado”.
O recorrente até concorda que de facto existem cada vez mais e mais intensas
exigências de prevenção geral, e mais entende que a prevenção geral de novos
crimes deve começar muito antes do julgamento, em ou em decisões proferidas
antes da audiência final. Simplesmente, no caso concreto está em causa a
fiscalização concreta da constitucionalidade, e não a abstracta. O facto de as
exigências de prevenção geral se intensificarem não significa que no caso
concreto do arguido recorrente exista uma exigência intensa de prevenção de
futuros crimes. Ou seja, o arguido, apesar do seu passado criminal em que
praticou vários delitos relacionados com a circulação rodoviária, dos quais nem
sequer constam ofensas corporais ou danos provocados por acidentes, ou sequer um
único acidente! Conforme referiu, e ficou provado nos processos que compõem o
seu registo criminal anteriores a este, o arguido praticou esses crimes de
condução em estado de embriaguês por causa de um período conturbado da sua vida,
o qual foi ultrapassado.
O crime de violação de proibições em causa no presente processo foi uma situação
excepcional, facto que o arguido gostaria de ver reconhecido pelo tribunal.
Ainda que se considere que a pena de multa não é sanção adequada e suficiente
para o afastar da criminalidade, nem por isso se deve entender que só a pena de
prisão efectiva realiza essa finalidade. Isto porque é fácil de aceitar que se
durante o período da suspensão da pena de prisão o arguido só praticou o crime
em causa nos presentes autos, pelo qual veio a ser julgado depois de ter
terminado o cumprimento da sanção.
Ao contrário do entendimento do Tribunal da Relação, o recorrente entende que o
facto de ter sido julgado depois de ter terminado o cumprimento da sanção
diminui consideravelmente as exigências de prevenção especial, e mostra que
durante essa suspensão ele cometeu um único crime – este, pelo qual foi julgado
e condenado de que discorda da pena aplicada, e, por isso recorreu.
O facto de a pena de multa não ser dada como suficiente, não significa que só a
pena de prisão efectiva satisfaça as tais exigências de prevenção especial.
Existem outras penas não privativas da liberdade mais adequadas ao arguido.
Também ao invés do entendido pelo Tribunal da Relação uma pena não privativa da
liberdade, e concretamente o trabalho em favor da comunidade cumpriria melhor as
exigências de reintegração do arguido e exigências de prevenção.
No acórdão objecto da presente reclamação, diz-se que apesar do deficiente
cumprimento do disposto no artigo 75º-A da LCT, o requerimento de interposição
do recurso permite identificar com segurança as normas cuja
inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada, mas que o recurso não
deve prosseguir pelas razões enumeradas no acórdão, que são não conhecer o
recurso quanto ao nº 4 do artº 412º do CPP e dar como constitucionais as normas
dos artigos 40º e 70º do Código Penal face aos parâmetros constitucionais
invocados pelo recorrente. Ora, o arguido e recorrente não se pode conformar com
uma decisão sumária destas, em que até e acusado de não ter indicado parâmetros
constitucionais que permitam inferir alguma inconstitucionalidade nas normas que
indiciou. Pois com certeza que não invocou de forma completa os parâmetros, pois
se nem sequer fez alegações! Porque não lhe foi dada sequer oportunidade de as
fazer!
Estando em causa, inclusivamente a escolha entre uma pena privativa da
liberdade, e uma pena não privativa da liberdade, o vedar ao arguido recorrente
apresentar as suas alegações perante o Tribunal Constitucional é uma forma de
lhe cercear o seu direito de defesa. Assim não admira que na decisão sumária
agora reclamada tenha sido entendido que o arguido não apresentou motivação
suficiente para alegar a inconstitucionalidade das normas apontadas, se a
análise da sua impugnação foi feita só com base na alusão sumária feita nas
alegações para o Tribunal da Relação em que a questão da inconstitucionalidade
não tem de ser abordada de forma exaustiva, nem aquele Tribunal é vocacionado
para conhecer as questões da constitucionalidade.
Ao fim e ao cabo, a decisão sumária emitida pelo Tribunal Constitucional
limita-se a repetir a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra acerca da mesma
matéria, conforme se conclui facilmente se comparamos o Acórdão da Relação com a
Decisão Sumária agora reclamada.
Acerca do artigo 40º nº 2 do Código Penal, ambos os tribunais dizem que o
referido preceito não contém ambiguidade devendo ser interpretado no sentido de
que a culpa condiciona a medida da pena. Só por este tipo de resposta vê-se que
o problema não foi abordado de forma substancial. Em relação ao tribunal da
Relação ainda se compreende porque a questão foi colocada sumariamente e este
tribunal não tem por obrigação conhecer com profundidade este tipo de questão.
Em relação ao tribunal Constitucional não se pode aceitar porque este conheceu
de forma superficial e formal porque nem sequer deu ao arguido a oportunidade de
alegar a questão em termos adequados.
Razão pela qual, e porque é o prejuízo do arguido que está em causa, deve ser
dada a este a oportunidade de se defender capazmente apresentando as alegações.
Se não, o próprio Tribunal constitucional ao querer forçar o arguido a aceitar
uma decisão sumária está a negar-lhe todas as garantias de defesa previstas no
artigo 32º da Constituição da República Portuguesa. No entender do arguido esta
maneira de decidir, estando em causa a liberdade do arguido pelo facto de ser
apanhado a conduzir durante proibição de conduzir, viola o artigo 32º da
Constituição da Republica Portuguesa.
E evidente que não está em causa a interpretação semântica do artigo 40º, nº 2!
E muito menos ainda em relação ao artigo 70º. A escolha entre tirar a liberdade
de forma efectiva ou aplicar uma simples pena de multa, subsume-se ao critério
de escolha da pena. Ora, o critério de escolha deve ser tanto ou mais exigente
do que o critério da medida. O artigo 70º contém a responsabilidade inerente a
essa escolha. Escolher é uma coisa e medir é outra. O artigo 70º é o equivalente
a um título de um artigo, mas não regulamenta em termos de permitir a defesa
constitucional, o critério de escolha da pena, por razões que o recorrente
melhor explicitará se lhe for permitido apresentar alegações.
Veja-se só isto: entre meter alguém na cadeia, ou não, o critério deverá ser
simplesmente consoante a necessidade de punição?
Termos em que deve a presente reclamação ser deferida e o reclamante ser
notificado para apresentar as suas alegações de recurso para o Tribunal
Constitucional.
3. O Ministério Público responde que a reclamação deve ser
indeferida, pelas seguintes razões:
“[ … ]
2º
Concretamente no que respeita às razões do não conhecimento, quanto à norma do
artigo 412º, nº 4, do CPP, o recorrente, na reclamação apresentada, nada diz,
pelo que a decisão reclamada, nesta parte, deve manter-se.
3º
Quanto às normas dos artigos 40º e 70º do Código Penal, foi proferida Decisão
Sumária, porque sendo a questão de inconstitucionalidade - tal como vinha
formulada no requerimento de interposição do recurso e havia sido suscitado
durante o processo – manifestamente infundada, ela traduzia-se numa questão
simples (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).
4º
Ora, na reclamação dessa Decisão Sumária, o que o recorrente teria de sustentar
era que a questão não sendo manifestamente infundada, não seria simples, devendo
o processo prosseguir com apresentação das alegações, nelas desenvolvendo, o
recorrente, toda a argumentação que entendesse necessária.
5º
Que as questões ligadas à culpa e à medida da pena são questões complexas,
ninguém dúvida, sendo que tal foi expressamente reconhecido na própria Decisão
Sumária.
6º
A questão de inconstitucionalidade normativa colocada pelo recorrente, tal como
ele a colocou, é que levou ao entendimento de que se tratava de uma questão
manifestamente infundada.
7º
Ora, na reclamação apresentada, o recorrente não adianta quaisquer argumentos
que possam abalar a decisão enquanto considera a questão simples, limitando-se a
reafirmar a complexidade, em geral, daquelas questões e a criticar o
entendimento que o Acórdão da Relação (a decisão recorrida) perfilhara”
4. No que respeita ao conhecimento, quanto à norma do artigo 412.º, n.º 4, do
CPP, o recorrente, na reclamação apresentada, nada diz, pelo que se entende que,
nesta parte, o recorrente se conformou com a decisão. Portanto, só está em causa
o decidido quanto às normas do n.º 2 do artigo 40.º e do artigo 70.º do Código
Penal.
Ora, como na decisão reclamada se deixa entender, uma questão
jurídica pode revestir-se de elevada complexidade no plano do direito
infraconstitucional, seja ou na prática aplicativa concreta, seja no aspecto
teórico, e serem de resolução simples ou infundadas as dúvidas de
constitucionalidade que se levantem a propósito de determinadas normas que lhe
respeitam. É o que sucede quanto às normas do n.º 2 do artigo 40.º e do artigo
70.º do Código Penal, que podem suscitar (ou a propósito das quais podem
desenvolver-se), na doutrina penal e na prática judiciária, delicados problemas
de concepção teórica, seja quanto ao conceito de culpa, seja quanto aos fins das
penas e fundamentos do direito de punir.
Mas a essa complexidade não corresponde uma questão seriamente fundada, face aos
parâmetros constitucionais invocados ou que são imediatamente representáveis
face aos termos em que o recorrente suscitou a questão perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida. Pelas razões expostas na decisão reclamada, não se
vislumbra que tais normas possam colocar dúvidas razoáveis de conformidade ao
princípio de que o processo penal assegurará todas as garantias de defesa, às
exigências do princípio da legalidade em matéria penal e ao princípio da
determinabilidade das leis ou à concepção constitucional de repartição de
funções entre o legislador e os tribunais.
O recorrente assenta as suas críticas à decisão sumária na simplicidade da
fundamentação desta e no facto de ter sido privado de produzir alegações que
mostrem o bem fundado da sua pretensão.
Em primeiro lugar é inerente à possibilidade de decisão do recurso de
constitucionalidade ao abrigo do artigo 78.º-A da LTC a supressão da faculdade
de produzir alegações. A decisão sumária do relator destina-se a por termo a
recursos que, por falta dos respectivos pressupostos, ou por ser evidente o
sentido decisório não justificam o processamento normal. O interessado não está
impedido de apresentar as razões pelas quais sustenta a inconstitucionalidade.
Efectivamente, uma das funções do ónus de suscitar a questão de
constitucionalidade perante o tribunal da causa é também a de mostrar que não é
manifestamente infundado questionar a validade da norma.
Por outro lado, o artigo 78.º-A da LTC permite que o relator profira “decisão
sumária”, isto é, com a fundamentação reduzida ao essencial. É um mecanismo de
descongestionamento e racionalização do funcionamento da justiça constitucional,
perante recursos de constitucionalidade repetitivos, que não satisfazem os
pressupostos ou requisitos formais ou que se mostram destituídos de viabilidade,
face aos termos em que a questão foi discutida, aos parâmetros que o requerente
indica e àqueles outros que o Tribunal antecipe como razoavelmente susceptíveis
de serem convocados. As questões da escolha da pena e do conceito de culpa e do
recurso a conceitos indeterminados ou discricionários em normas penais poderiam
prestar-se a desenvolvimentos teoréticos de enquadramento, mas sem efectiva
relevância decisória porque, no que é pertinente à validade das normas em causa
face aos parâmetros constitucionais indicados (cfr. artigo 75.º, n.º 2 da CRP),
a conclusão pela não inconstitucionalidade não suscita dúvidas sérias. Aliás, o
recorrente nada de concreto acrescenta que instile a dúvida acerca do acerto da
decisão sumária quando concluiu que a questão de constitucionalidade é simples,
limitando-se a argumentos que, na prática, se traduzem em negar a possibilidade
de proferir decisões sumárias de não provimento (ao menos quando não consistam
em remissão ou repetição de jurisprudência anterior). Aliás, é sintomático que o
reclamante não aponte referências na jurisprudência ou na doutrina a qualquer
questão de constitucionalidade respeitante às normas que constituem objecto do
recurso neste seu já longo tempo de vigência e de intensa aplicação. Também o
Tribunal as não conhece.
Refira-se, por último, que é questão estranha ao objecto do recurso, restrito à
constitucionalidade de normas, saber se a aplicação que de tais normas foi feita
pelos tribunais da causa, designadamente ao optarem pela aplicação de pena
privativa de liberdade, foi a mais adequada.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o
recorrente nas custas, com 20 (vinte) UCs de taxa de justiça.
Lx., 16/XII/2009
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão