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Processo nº 757/00
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. B, com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'ao abrigo do artigo 70º, nº 1, al. b) da Lei nº 28/82, de 15/9', do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (5ª Secção Criminal), de
21 de Novembro de 2000, 'que entendeu rejeitar o recurso por si interposto, invocando a existência de caso julgado de acórdão condenatório proferido em processo em que o arguido foi julgado na ausência, em caso em que o não podia ser, por falta de notificação com tal cominação e por não se terem verificado ausências anteriores que permitissem', pretendendo ver 'ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 119º, al. c) do CPP, na interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, isto é, interpretada no sentido de que a nulidade insanável concretizada no julgamento do arguido na sua ausência, por falta de notificação com tal cominação e por não se terem verificado ausências anteriores que o permitissem, não pode ser arguida, em caso de condenação, enquanto o procedimento – no caso, a fase executória da decisão – se mantiver', pois tal norma 'com a interpretação com que foi aplicada viola o artigo 32º, nº 1 da CRP'.
2. Nas suas alegações, concluiu assim o Recorrente:
'1- A lei diz que as nulidades insanáveis devem oficiosamente ser declaradas em qualquer fase do procedimento (artigo 119° do CPP).
2- No caso dos autos, verificou-se uma nulidade insanável - a realização do julgamento na ausência do arguido.
3- O processo crime vigente tem na fase actual três fases normais e duas eventuais. Na verdade,
4- Primeiro, é preciso obter processualmente a noticia do crime e esclarecê-1a, recolhendo a indicação dos meios de prova pertinentes em ordem à formulação fundamentada da acusação, sendo caso disso (fase do inquérito); depois, é necessário proceder à discussão da causa, demonstrando ao tribunal a verdade dos factos alegados na acusação, produzindo e discutindo as provas e o direito aplicável e decidindo em conformidade com os factos provados e o direito aplicável (fase do julgamento); por fim, caberá proceder à execução da decisão condenatória (fase da execução). Acrescem outras fases de carácter eventual, a fase da instrução e a fase dos recursos aquela que tendo por fim a decisão sobre a acusação, findo o inquérito, e a dos recursos, visando a reapreciação de uma decisão judicial, em regra, por um tribunal de hierarquia superior. Está a ver-se como cada sequência processual se decomporá naturalmente em distintas fases. Entende-se por fase processual o complexo de actividades subordinadas a uma mesma ideia dominante (In, Curso de Direito Processual Penal, III, 14)
5- No caso concreto, os autos encontram-se na fase da execução - o recorrente cumpre a pena.
6 - Está, pois, em vigência uma fase do procedimento.
7- Assim, necessário se torna considerar ainda a existência da nulidade insanável com as consequências inerentes.
8- Ao ter entendido de outra forma, violou a decisão recorrida o artigo 32º, n°
1 da CRP.
9 - Pelo que deve ser declarada inconstitucional tal interpretação, já que, a interpretação da norma, segundo a Constituição, exige que assegurando o processo criminal todas as garantias de defesa, ninguém possa ser julgado na ausência, sem cumprimento do formalismo em que tal é permitido, e que, ocorrendo tal, mantendo-se o procedimento na sua fase da execução, a nulidade possa ser conhecida, já que o procedimento se mantém e, segundo a lei ordinária, as nulidades insanáveis devem oficiosamente ser declaradas em qualquer fase do procedimento'.
3. Nas suas alegações concluiu deste modo o Ministério Público:
'1º - Não viola o princípio constitucional das garantias de defesa a interpretação normativa do artigo 119º, alínea c) do Código de Processo Penal, segundo a qual deve considerar-se precludida com o trânsito em julgado da decisão final a 'nulidade insanável', aí prevista, e que o arguido teve plena oportunidade processual de invocar e fazer valer, na sequência da notificação pessoal de tal decisão, que não curou então de impugnar.
2º - Termos em que deverá improceder o presente recurso'.
4. Tudo visto cumpre decidir. Como se relatou no acórdão recorrido, o recorrente foi 'condenado na pena única de 4 anos de prisão e 60 dias de multa à taxa diária de 400$00, multa esta a que se fez corresponder, subsidiariamente, 40 dias de prisão', no 'Processo Comum-Colectivo nº 179/94, 9PATVD do 1º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Torres Vedras' e o acórdão transitou em julgado no dia 9 de Abril de 1999 (os autos revelam que ele foi detido e notificado do acórdão em 25 de Março de 1999, veio requerer novo julgamento em 19 de Abril de 1999, não alegando nesse requerimento a omissão de qualquer formalidade, o que foi indeferido por manifesta extemporaneidade por despacho transitado em julgado; depois com este mesmo fundamento foi indeferido ainda um outro requerimento datado de 3 de Agosto de 1999, em que o recorrente veio arguir a falsidade da acta do julgamento). Em 30 de Agosto de 2000, face ao insucesso daquelas iniciativas, veio o recorrente 'arguir a nulidade da realização da audiência de julgamento, nulidade essa que qualificou de insanável, e, em consequência, requerer a anulação de todo o processado posterior à verificação da mesma, tendo, para tanto, alegado, em síntese, que tal audiência decorreu na sua ausência sem que para tal se verificassem os necessários pressupostos', o que foi indeferido por despacho judicial, originando o recurso para o tribunal de relação e depois o presente recurso de constitucionalidade. E remata assim o acórdão recorrido:
'O Acórdão a que vem sendo feita referência transitou em julgado no dia 9 de Abril de 1999 (cfr., certidão de fls. 41) e a dita pretensa nulidade foi arguida, como se verifica pelo carimbo da secretaria do Tribunal ‘a quo’ aposto a fls. 23, em 30 de Agosto de 2000, portanto, depois da data do dito trânsito. Ora, o conhecimento das nulidades insanáveis não pode ter lugar a todo o tempo, mas apenas, como resulta do disposto no corpo do artigo 119º do Código de Processo Penal, enquanto durar o procedimento, ou seja, como é óbvio, enquanto permanecer a relação processual, não podendo, pois, e ao contrário do que entende o recorrente, serem declaradas uma vez transitada em julgado a decisão final. (Cfr., neste sentido Simas Santos, Leal-Henriques e Borges de Pinho a fls. 498 do 1º volume do Código de Processo Penal, 1996, Editora Rei dos Livros, bem como Maia Gonçalves in ‘Código de Processo Penal Anotado, 9ª edição, pág.
305). No mesmo sentido, também o Ac. do S.T.J., de 07-06-89, proferido no procº
40045/3ª, citado por Maia Gonçalves a pág. 306 da sua indicada obra, onde: ‘As nulidades, qualquer que seja a sua natureza, ficam sanadas logo que se forme caso julgado, não podendo mais ser arguidas ou conhecidas oficiosamente’. Ainda no mesmo sentido, Ac. da Relação do Porto, de 19-03-97, in Col. Jur., Ano XXII, T2, pág. 226 e segs., onde, a pág. 228: ‘A decisão judicial com trânsito em julgado não se anula, como não se declara a invalidade de actos de um processo que findou com decisão irrevogável’. Tendo-se, pois, com o trânsito em julgado do aludido acórdão, extinto definitivamente a lide processual penal, manifesto é que o presente recurso não pode proceder, o que implica, nos termos do nº 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, a rejeição do mesmo'. Para o recorrente, a 'interpretação do artigo 119º do CPP, in corpore, com referência específica. no caso concreto, à sua alínea c), feita pela decisão recorrida, viola o artigo 32º, nº 1 da CRP, porquanto a interpretação da norma, segundo a Constituição, exige que assegurando o processo criminal todas as garantias de defesa, ninguém possa ser julgado na ausência, sem cumprimento do formalismo em que tal é permitido, e que, ocorrendo tal, mantendo-se o procedimento na sua fase da execução, a nulidade possa ser conhecida, já que o procedimento se mantém e, segundo a lei ordinária, as nulidades insanáveis devem oficiosamente ser declaradas em qualquer fase do procedimento'.
5. O ponto em crise está claramente definido nos autos e consiste em saber se a nulidade insanável elencada no artigo 119º do Código de Processo Penal – e consistindo na 'ausência do arguido (...), nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência' (alínea c)) -, pode e deve mesmo ser declarada oficiosamente 'em qualquer fase do procedimento', mesmo depois de transitada em julgado a decisão final condenatória (trânsito que aqui aconteceu com a notificação dessa decisão e a sua não impugnação).
Ou seja: o entendimento extraído daquela norma de que o caso julgado se sobrepõe ao conhecimento daquela nulidade insanável está conforme com as garantias de defesa do arguido consagradas no artigo 32º, nº 1 da Constituição? A resposta só pode ser afirmativa. Desde logo é indesmentível que o caso julgado, ainda que não definido na Lei Fundamental, é um valor constitucional, iluminado pelo nº 2 do artigo 32º, pelos nºs 2 e 3 do artigo 205º e pelo nº 3 do artigo 282º, da Constituição (isto mesmo se conclui nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 664/98 e 677/98, nos Acórdãos, vol. 41º, sem deixar de aí se considerar situações em que o caso julgado se perfila como algo de ultrapassável na óptica do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável, como seja o caso da aplicação de leis de amnistia própria ou de despenalização, o que, todavia, nada tem a ver com a presente hipótese, de pura natureza adjectiva). Depois, e como ficou já relatado, o recorrente foi detido e notificado do acórdão condenatório em 25 de Março de 1999, passando a partir dessa data a dispor de oportunidade processual de invocar e fazer valer a dita nulidade insanável, na sequência da notificação pessoal, daquele acórdão, que não curou sequer de impugnar. Veio só requerer novo julgamento em 19 de Abril de 1999, não alegando, aliás, nesse requerimento a omissão de qualquer formalidade, o que foi indeferido por manifesta extemporaneidade por despacho também transitado em julgado. Em suma: o recorrente, após o conhecimento da decisão que o condenou em pena de prisão e até se consumar o trânsito em julgado, dispôs da possibilidade de exercer os direitos em que se concretiza o princípio constitucional das garantias de defesa do arguido, incluindo a arguição da 'nulidade da realização da audiência de julgamento', - que 'ninguém possa ser julgado na ausência, sem cumprimento do formalismo em que tal é permitido', talqualmente ele se expressa
-, mas deixou correr o tempo e entretanto tornou-se definitiva aquela decisão
(posteriormente, muito posteriormente, em 30 de Agosto de 2000, é que veio apresentar essa arguição). A terminar, e como diz o Ministério Público, nas suas alegações, 'tal solução adjectiva em nada colide com o princípio constitucional das garantias de defesa, esquecendo o recorrente, na sua argumentação, que dispôs de plena oportunidade para exercitar tais garantias no decurso do processo e que a Lei Fundamental concede relevância constitucional ao valor do caso julgado, que não pode ser perspectivado como mera realidade formal' (o que vem ao encontro dos Autores citados no acórdão recorrido). Com o que tem de improceder o presente recurso.
6. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se o recorrente nas custas, com taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa, 28 de Março de 2001 Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa