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Proc. nº 544/2000
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. E, arguido no processo comum singular que correu termos na 1ª Secção do 2º Juízo Criminal de Lisboa, com o nº 115/96. 8 PYLSB, notificado da sentença de 11 de Fevereiro de 2000, requereu cópia dactilografada da referida decisão, em virtude de a mesma ser ilegível, ao abrigo do artigo 259º do Código de Processo Civil.
Após a notificação da cópia dactilografada, o arguido interpôs recurso da sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que o condenou no pagamento de indemnização civil.
O recurso não foi porém admitido, por despacho de 14 de Março de
2000, em virtude de o prazo de interposição de recurso se dever contar a partir do momento em que a sentença é lida e depositada na secretaria judicial, e não a partir do momento em que o recorrente é notificado da cópia dactilografada.
2. E reclamou do despacho de 14 de Março de 2000, ao abrigo do artigo 405º do Código de Processo Penal, sustentando que a interpretação do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, no sentido de, nos casos em que a decisão é ilegível, dever contar-se o prazo de interposição do recurso a partir da data do depósito da sentença na secretaria, e não a partir da data em que o recorrente é notificado da cópia dactilografada da sentença, é inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por decisão do Presidente de 9 de Maio de 2000, considerou que, tendo a decisão sido lida ao arguido e ao defensor oficioso, o recurso podia desde logo ter sido interposto. Consequentemente, negou provimento à reclamação.
3. E interpôs recurso da decisão de 9 de Maio de 2000 para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido que fundamentou a decisão recorrida.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente alegou, concluindo o seguinte: Termos em que, por tudo quanto antecede, e com o douto suprimento de V.Exas. deve julgar-se inconstitucional a norma constante do artigo 411º, nº 1, do C.P.P. quando interpretada como permitindo, no caso de ilegibilidade objectiva da sentença, que o prazo de recurso se conte do depósito na secretaria e não da notificação da cópia legível, em devido tempo requerida, por ofensa do princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, vertido no artigo 20º, nº
1 e, decorrentemente, da sua concretização no processo penal, consagrada no artigo 32º, nº 1, da Lei Fundamental, a qual assegura ao arguido todas as garantias de defesa.
Por seu turno, o Ministério Público contra-alegou, tirando a seguinte conclusão: A interpretação acolhida no despacho recorrida da norma contida no artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo de interposição do recurso se conta a partir do depósito na secretaria, e não da notificação de cópia legível, que foi requerida pelo arguido dentro do prazo legal para recorrer, é inconstitucional por implicar um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa, violando, assim, o princípio das garantias de defesa e o direito ao recurso.
Cumpre decidir. II Fundamentação
4. O preceito interpretado tem a seguinte redacção: Artigo 411º Interposição e notificação do recurso
1. O prazo para a interposição do recurso é de 15 dias e conta-se a partir da notificação da decisão ou, tratando-se de sentença, do respectivo depósito na secretaria. No caso de decisão oral reproduzida em acta, o prazo conta-se a partir da data em que tiver sido proferida, se o interessado estiver ou dever considerar-se presente.
(...)
A decisão recorrida considerou que o prazo para a interposição do recurso deve contar-se da data do depósito da sentença na secretaria, ainda que a decisão seja ilegível (e tendo sido requerida cópia dactilografada), uma vez que a decisão condenatória foi lida ao arguido e à defensora oficiosa.
O recorrente e o recorrido consideram, porém, que tal dimensão normativa viola o artigo 20º da Constituição, na medida em que inviabiliza a interposição do recurso pois a análise do teor da decisão não pode ser realizada por esta ser ilegível. Sustentam, nessa medida, que o prazo de interposição do recurso se deve contar da notificação de cópia da decisão dactilografada, tempestivamente requerida.
5. O direito ao recurso implica, naturalmente, que o recorrente tenha a possibilidade de analisar e avaliar os fundamentos da decisão recorrida, com vista ao exercício consciente, fundado e eficaz do seu direito. Como o Tribunal Constitucional sublinhou no Acórdão nº 384/98 (D.R., II Série, de 30 de Novembro de 1998), a interposição de qualquer recurso pressupõe a plena estabilidade e inteligibilidade da decisão recorrida.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 444/91 (D.R., II, de 2 de Abril de 1992), procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 259º do Código de Processo Civil, quando interpretada no sentido de atribuir ao juiz, e não ao notificado, o poder de avaliar e decidir sobre a legibilidade ou ilegibilidade dos textos por si manuscritos. Nesse aresto, o Tribunal considerou que o direito de acesso aos tribunais tem por corolário o direito que assiste às partes de um processo judicial de conhecerem efectivamente as decisões que lhes digam respeito. O Tribunal Constitucional sublinhou também que o preceito então em apreciação só não será uma concretização constitucionalmente claudicante do direito à informação efectiva das partes sobre o conteúdo dos despachos, sentenças e acórdãos (...) se ele for interpretado como impondo aos tribunais um dever de enviar ou de entregar às partes cópias ou fotocópias facilmente legíveis das decisões jurisdicionais – legibilidade essa que há-de ser avaliada na óptica ou na perspectiva daquelas. Neste aspecto, o Tribunal Constitucional estabeleceu o paralelo com o poder que o juiz tem de exigir às partes que entreguem cópia legível dos documentos por estas apresentados durante o processo, nos termos do artigo 541º do Código de Processo Civil. Da jurisprudência a que acaba de se fazer referência resulta que o Tribunal Constitucional entende que a ilegibilidade da sentença é invocável basicamente a partir da perspectiva do destinatário da mesma, exceptuando, obviamente, os casos em que o pedido seja notoriamente infundado. Assim, não é absolutamente essencial para a presente questão de constitucionalidade qualquer discussão acerca da legibilidade do texto da decisão em questão. A pertinência da presente questão de constitucionalidade resulta, basicamente, de que a ilegibilidade da sentença foi invocada nos autos, o Tribunal da Relação de Lisboa não a contestou, o ora recorrido (Ministério Público) reconheceu-a nas contra-alegações apresentadas e a cópia da sentença em questão, junta a fls. 9 e ss., não infirma a posição sustentada pelo recorrente. Há, pois, como que uma aquisição no processo da efectiva ilegibilidade da sentença, que dispensa o Tribunal de analisar tal questão. A partir deste pressuposto, deverá apreciar-se a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 411º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de determinar a contagem do prazo de interposição de recurso da data do depósito da sentença na secretaria (e não da data em que ao arguido é enviada cópia dactilografada – legível – da mesma), nos casos em que a decisão é ilegível.
6. O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 75/99 (D.R., II Série, de 6 de Abril de 1999), apreciou a conformidade à Constituição da norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para a interposição do recurso se conta a partir da data do depósito da sentença na secretaria, coincidente, no caso então decidido, com a data em que foi proferida a decisão na presença do arguido e do seu defensor. Nesse aresto, o Tribunal Constitucional considerou que o arguido tem, a partir do momento do depósito da sentença na secretaria, a possibilidade de aceder ao seu texto integral, só a partir desse momento se contando um prazo de 10 dias para interpor o recurso. O Tribunal Constitucional, sublinhando subsequentemente que o prazo ainda pode ser dilatado face a um qualquer justo impedimento, concluiu que o regime então em apreciação assegura perfeitamente as garantias de defesa do arguido e que é compatível com as exigências constitucionais. Em consequência, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucional a norma apreciada.
7. O caso dos autos apresenta, porém, e como se salientou, uma configuração específica que o torna substancialmente diferente do caso decidido no processo em que foi proferido o Acórdão nº 75/99.
Com efeito, no presente processo, a decisão proferida e depositada na secretaria, da qual o ora recorrente pretendeu interpor recurso, requerendo para o efeito cópia dactilografada, foi considerada ilegível pelo recorrente e pelo Ministério Público, sendo a sua ilegibilidade um dado adquirido no processo, como foi referido.
Desta modo, o respectivo depósito na secretaria não assegura, por si só, o acesso ao seu conteúdo. Na verdade, se o texto manuscrito da decisão é ilegível, qualquer consulta que se realize será manifestamente ineficaz e inconsequente.
Assim, a jurisprudência constante do Acórdão nº 75/99 não tem aplicação nos presentes autos, ou antes, a aplicação no caso em apreciação dos fundamentos do Acórdão nº 75/99 leva a uma conclusão diferente da que se tirou nesse aresto.
8. O Tribunal Constitucional, no já mencionado Acórdão n.º 444/91, entendeu que a norma então em apreciação, interpretada à luz do artigo 20º, n.º 1, da Constituição, deve ser, pois, entendida como conferindo aos sujeitos a quem são notificadas decisões judiciais o direito de exigir o envio ou a entrega de cópias dactilografadas, quando, justificadamente, entenderem que os despachos, sentenças ou acórdãos manuscritos são ilegíveis ou de difícil leitura.
Ora, o reconhecimento do direito a exigir a entrega de cópia legível da decisão repercute-se, inevitavelmente, na determinação do termo a quo do prazo de interposição de recurso. Na verdade, a finalidade de tal direito, ou seja, a possibilidade de o arguido ter acesso ao conteúdo integral das decisões que o afectam consubstancia um dos requisitos necessários para que a contagem do prazo de recurso se possa legitimamente iniciar a partir de uma determinada data. Pode então afirmar-se que o direito ao recurso, pressupondo um total conhecimento do teor da decisão recorrida (ou a possibilidade de o obter), impõe que o prazo para a interposição do recurso só se conte a partir do momento em que o recorrente tenha a possibilidade efectiva de apreender o texto integral da decisão que pretende impugnar.
No caso em apreciação tal momento apenas se verificou quando o recorrente foi notificado do texto da sentença, sob a forma dactilografada da decisão (uma vez que a versão manuscrita foi considerada no processo como ilegível). Foi só a partir desse momento que o direito ao recurso pôde ser eficazmente exercido pelo arguido.
A contagem do prazo de recurso em momento anterior consubstancia, pois, uma limitação injustificada do direito ao recurso, uma vez que implica o decurso do prazo numa fase em que o sujeito processual ainda não sabe se quer recorrer (se tem fundamento para tal), precisamente porque não pode (por causa que não lhe é imputável) analisar o texto da decisão que o afecta. A dimensão normativa que determina a contagem do prazo de recurso a partir do depósito da sentença ilegível na secretaria é, portanto, inconstitucional, por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais e das garantias de defesa, nomeadamente o direito ao recurso, consagrados nos artigos 20º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da Constituição (no sentido desta orientação, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 444/91, julgou inconstitucional a norma então apreciada, por violação do artigo 20º, n.º 1, da Constituição; também no Acórdão n.º 384/98, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma que exigia a interposição do recurso numa fase em que a parte, por falta de conhecimento do teor integral da sentença, desconhecia se pretendia ou não impugnar a decisão; e, no Acórdão n.º 579/99 – D.R., II, de 21 de Fevereiro de 2000 -, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do Estatuto dos Magistrados Judiciais que determinava a contagem do prazo de impugnação de um acto administrativo a partir da sua publicação, e não da sua notificação, considerando que o conhecimento do acto através da sua notificação é essencial para o decurso do respectivo prazo de impugnação)
9. Refira-se, por outro lado, e ao contrário do que se sustenta na decisão agora sob recurso, que a mera leitura da sentença na presença do arguido e do seu defensor oficioso no mínimo pode não permitir uma completa apreensão do teor da sentença para efeito de motivação do recurso. Com efeito, a interposição de um recurso pressupõe uma análise minuciosa da decisão que se pretende impugnar, análise essa que não é de todo possível realizar por mero apelo à memória da leitura do texto da sentença.
10. Por último, e mais uma vez ao contrário do que sugere o acórdão recorrido, também não se considera razoável a exigência de interposição de recurso por declaração na acta, nos termos do artigo 411º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, apresentando o defensor do arguido, posteriormente, a respectiva motivação se efectivamente vier a decidir impugnar a sentença. Na verdade, antes da análise do teor da decisão, o sujeito processual não pode formar convenientemente a sua decisão de recorrer, não lhe sendo exigível a prática de actos cuja utilidade não é possível avaliar no momento da sua prática.
Como se mencionou no já referido Acórdão nº 384/98: A tutela constitucional do direito ao recurso contencioso, decorrente da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, na medida em que postula o exercício livre e esclarecido de tal direito (como forma de salvaguardar materialmente os interesses inerentes), não admite a consagração, no plano infraconstitucional, de exigências que, não se confundindo com o exercício do direito dentro de um prazo pré-definido, consubstanciem antes, e tão somente, condicionantes de tal exercício desprovidas de fundamento racional e sem qualquer conteúdo útil. Com efeito, devendo a interposição de qualquer recurso contencioso pressupor a plena estabilidade e intelegibilidade da decisão de que se pretende recorrer, não é constitucionalmente admissível o estabelecimento de ónus desinseridos da teleologia própria da tramitação processual e cuja consagração, nessa medida, não prossegue quaisquer interesses dignos de tutela. Ora, a impugnação de uma decisão pressupõe o conhecimento integral dos respectivos fundamentos. Enquanto o recorrente não tiver acesso ao raciocínio argumentativo que subjaz à decisão tomada, não pode formar a sua vontade de recorrer, porque não dispõe dos elementos que lhe permitem avaliar a justeza da decisão. Nessa medida, e tendo presente a eficácia persuasiva intraprocessual da fundamentação das decisões, pode afirmar-se que, antes de se dar a conhecer os fundamentos decisórios, não pode haver, porque do ponto de vista da racionalidade comunicativa não é concebível, uma legítima intenção de recorrer. Assim sendo, a exigência da interposição de um recurso num momento em que se desconhecem os fundamentos da decisão a impugnar (num momento em que, dir-se-ia, ainda não se pode saber se o recorrente efectivamente quer recorrer) não é equiparável à necessidade de interposição do recurso dentro de um prazo razoável
(decorrente da celeridade processual e da segurança e certeza jurídicas). Diferentemente, tal exigência traduz-se antes na imposição de uma formalidade limitadora do efectivo exercício do direito ao recurso e absolutamente alheia ao que possa ser a prossecução de um interesse racional e teleologicamente justificado. Nessa medida, aquela exigência afecta o núcleo fundamental do direito ao recurso, pelo que a norma que a consagra não é compatível com a tutela constitucional do acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20º, nº 1, da Constituição).
11. Conclui-se, em face do que se disse, que o direito ao recurso constitucionalmente consagrado impõe a total inteligibilidade da decisão que o arguido pretende impugnar, pelo que será inconstitucional, por violação dessa garantia de defesa, a dimensão normativa que determina a contagem do prazo de interposição de recurso da data do depósito da sentença ilegível na secretaria, e não da data em que é entregue ao defensor do arguido cópia legível da mesma, tempestivamente requerida.
III Decisão
12. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, quando interpretado no sentido de determinar a contagem do prazo de interposição do recurso da data do depósito da sentença manuscrita de modo ilegível na secretaria, e não da data em que o defensor do arguido é notificado da cópia da sentença dactilografada, tempestivamente requerida. Consequentemente, concede-se provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido que deverá ser reformulado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 28 de Março de 2001 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa