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Procº nº 16/97 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1. C.. e outro foram julgados e condenados, na 7ª Vara do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº
15/93, de 22 de Janeiro. Nas alegações do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa, C... suscitou a inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, por o tribunal ad quem não poder controlar as respostas dadas aos quesitos formulados para apreciação da culpa e, portanto, violar o princípio constitucional do duplo grau de jurisdição.
Por Acórdão de 16 de Novembro de 1994, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, considerando, no que concerne à questão de inconstitucionalidade, o seguinte:
'Relativamente à questão da inconstituciona- lidade do art. 665º do CPP de 1929, proferiu o Tribunal Constitucional o Acórdão nº 401/91, publicado no Diário da República, I-A Série, de 8/1/1992, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade daquela norma na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/6/1934.
Esta declaração de inconstitucionalidade produz efeitos nos termos do disposto no artigo 282º da Constituição, o qual, no seu nº 1, determina a repristinação das normas que a norma declarada inconstitucional haja revogado.
Concretamente, declarada que foi, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 665º do CPP/29 na interpretação dada pelo Assento do STJ de 29/6/1934, deverá observar-se o disposto no Decreto nº 20.147, de 1/8/1931, que deu nova redacção àquele preceito legal. Segundo essa alteração, as Relações conhecerão de facto e de direito, baseando-se, para isso, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos. Assim se salvaguardam as garantias da defesa constitu- cionalmente asseguradas.
No artigo 665º citado se definem os poderes das Relações. Este preceito não se aplica às decisões da primeira instância. A alegada incons- titucionalidade não é extensiva à decisão recorrida; poderá vir a infirmar a decisão da Relação, mas não a da primeira instância, que neste recurso vem impugnada.
Consequentemente, quando esta Relação proceder à fixação definitiva da matéria de facto, após reapreciação da apurada pela primeira instância, vai atender não só às respostas dadas aos quesitos pelo tribunal colectivo da Vara Criminal, mas também aos demais elementos de prova, designadamente documentais, produzida nos autos'.
2. Inconformado ainda, interpôs o arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, em que reitera a invocação da violação do princípio do segundo grau de jurisdição - que 'implica que os factos e o direito sejam submetidos a nova apreciação por um tribunal de categoria superior' -, porquanto o acórdão recorrido 'não diz qual a matéria dada como provada, procedendo assim
à sua fixação definitiva', e o Tribunal da Relação não teve possibilidade de
'confrontar os documentos e outras provas que serviram de suporte à resposta aos quesitos dada pelo tribunal a quo com o depoimento da judiciária'.
Por Acórdão de 9 de Outubro de 1996, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, referindo-se assim à questão de inconstitucionalidade suscitada:
'[...] no acórdão recorrido decidiu-se, e bem, que aquela declaração de inconstitucionalidade [Acórdão do Tribunal Constitucional nº 401/91, publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992] determinava a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado
(artº 282º, nº 1, da CRP), pelo que a Relação de Lisboa deveria, observar, como observou, o disposto no artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto nº 20.147, de 1-8-1931 [...]'.
3. Deste último aresto interpôs C... o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), já que, no seu entender, 'o Tribunal da Relação de Lisboa não fez correcta aplicação do artigo
665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29-6-1934 e em atenção à inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal Constitucional em seu Acórdão nº
401/91, publicado no DR, I Série-A, de 8-1-92'.
Nas alegações produzidas no Tribunal Constitucional, o recorrente conclui da seguinte forma:
'1. O recorrente interpôs recurso porque no seu entender o Tribunal da Relação de Lisboa, não fez correcta aplicação do C.P.P. de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do S.T. de 29.6.1934 e em atenção à inconstitucionalidade declarada pelo T.C. em seu acórdão nº 401/91 publicado no D.R. Série I-A de 8.1.92.
2. Tal verifica-se porque e pese o recorrente até ter alertado antecipadamente para tal situação, o Tribunal da Relação de Lisboa escreve que a matéria de facto foi fixada pelo tribunal recorrido.
3. Ora, com a interpretação dada ao artº 665º do C.P.P. de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do S.T. de 29.6.1934, foi considerado inconstitucional por violação do duplo grau de jurisdição, porquanto nessa interpretação se diminuiram as garantias de defesa do arguido.
4. Ora foi essa indubitavelmente a aplicação que foi feita no Tribunal da Relação, no presente caso.
5. Não se dilucida em momento nenhum ter o Tribunal da Relação da Relação investigado sobre os factos dados como provados em 1ª instância, tivesse tido em conta para além dos quesitos, os demais elementos de prova, designadamente documentais.
6. Pese o facto de o recorrente considerar e defender que o artº 665º do C.P. Penal de 1929, só não será inconstitucional quando o Tribunal da Relação tiver de reexaminar a prova ouvindo de novo as testemunhas não se limitando a um recurso de gabinete, e agindo como um Tribunal de Revista não podendo reapreciar os factos.
7. E não é necessário dizer o acórdão da Relação que fez a aplicação do artº
665º do C.P. Penal de 1929, com o sentido restritivo do assento do S.T. de
29.6.1934. Basta que na prática o tenha feito, como no caso do presente processo.
8. Deverá assim em aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, contida no acórdão nº 401/91 do Tribunal Constitucional (D.R. I Série-A de 8 de Janeiro de 1992), dar-se provimento ao recurso e assim determinar a reformulação da decisão recorrida em harmonia com o julgamento de inconstitucionalidade proferida nesse acórdão'.
Por sua vez, as alegações do Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional encerram assim:
1º
Não tendo a decisão recorrida feito aplicação da norma indicada pelo recorrente como constituindo objecto do presente recurso - a constante do artigo
665º do Código de Processo Penal, com a interpretação restritiva emergente do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934 - nem se revelando contraditória com a declaração de inconstitucionalidade operada, com força obrigatória geral, pelo Acórdão nº 410/91, faltam manifestamente os pressupostos de admissibilidade do concreto recurso interposto, com a configuração que lhe deu o recorrente, fundando-se na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82.
2º
Termos em que não deverá sequer conhecer-se de tal recurso'.
4. Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, veio aquele dizer o seguinte:
'2- Pese tal facto, nomeadamente dizer o Exmº Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa que terá em conta na sua apreciação, a inconstitucionalidade do artº 665º, do C.P.P./29 na interpretação dada pelo Assento do S.T.J. de
29/6/1934, devendo observar-se o disposto no Dec-Lei nº 20.147 de 1-8-1931, que deu nova redacção àquele preceito legal, não o fez.
Escreve inclusive:
'Consequentemente, quando esta Relação proceder à fixação definitiva da matéria de facto, após reapreciação da apurada pela primeira instância, vai atender não só às respostas dadas aos quesitos da Vara Criminal, mas também aos demais elementos de prova, designadamente documentais, produzida nos autos'.
Mais à frente escreve-se nesse douto acórdão:
'Deu o tribunal recorrido como provados os factos seguintes':
Ora ao escrever-se 'deu o Tribunal recorrido como provado' ..... é o mesmo que dizer que não foi o Tribunal da Relação, que ao contrário daquilo que prometia, aplicação do artº 665º do C.P.C. com a observação do disposto no Decreto nº 20.147 de 1-8-1931, a fixar definitivamente a matéria de facto, após reapreciação da apurada pela primeira instância.
Assim sendo e pese referir o contrário, o tribunal da Relação de Lisboa, fez a aplicação da norma inconstitucional, ou seja a do artº 665º do C.P.P..
Nessa conformidade, nenhum pressuposto falta para a admissibilidade do concreto recurso, nos termos apresentados pelo recorrente, pelo que o mesmo deverá seguir os seus termos subsequentes, e ser considerada improcedente a questão prévia levantada'.
5. Corridos os vistos legais, cumpre, então, apreciar e decidir, começando-se pela análise da questão prévia suscitada pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.
II - Fundamentos.
6. Fundamentando a questão prévia, escreveu o Exmº Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações:
'É manifesto que a decisão recorrida não aplicou a norma que, segundo o recorrente, constitui objecto do presente recurso - a constante do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa restritiva constante do Assento de 29 de Junho de 1934 - contra o decidido pelo Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral, no Acórdão nº 401/91.
Bem pelo contrário - e como resulta, aliás, explicitamente, da decisão recorrida - quer a Relação de Lisboa, quer o Supremo Tribunal de Justiça, se conformaram com o decidido no citado acórdão nº 401/91, ao considerarem derrogada, em consequência da declaração de inconstitucionalidade, tal norma, e repristinada a que, no sistema legal, vigoraria anteriormente.
Faltam, pois, os pressupostos de admissibilidade do tipo de recurso concretamente interposto pelo recorrente: na verdade, para tal recurso ser admissível, deveria, por um lado, o recorrente tê-lo reportado à norma infra-constitucional efectivamente aplicada na decisão recorrida - a constante do artigo 665º do Código de Processo Penal, sem a referida sobreposição interpretativa restritiva emergente daquele Assento, tal como resultava do estatuído no Decreto nº 20.147, de 1 de Agosto de 1931; e; por outro lado, deveria o recorrente ter curado de averiguar se tal norma, efectivamente aplicada na ordem dos tribunais judiciais, alguma vez havia sido declarada ou julgada inconstitucional por este Tribunal Constitucional, cumprindo o ónus que lhe é imposto pelo artigo 75º-A, nº 3, da Lei nº 28/82: na verdade, é manifesto e inquestionável que não ocorre qualquer contradição entre o decidido, quer pela Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça, e o teor do Acórdão nº 401/91 deste Tribunal Constitucional, indicado pelo recorrente'.
7. De facto, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16 de Novembro de 1994 referiu expressamente a inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 com a sobreposição interpretativa do Assento de 1934 e declarou que faria aplicação do disposto no artigo 665º do mesmo Código na redacção do Decreto nº 20.147 de 1 de Agosto de
1931, conhecendo 'de facto e de direito, baseando-se para isso, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos'.
Sucede, porém, que, como se afirmou no Acórdão nº 315/92 deste Tribunal (publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Fevereiro de
1993) e se reiterou no Acórdão nº 584/96 (publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Outubro de 1996) e no Acórdão nº 1020/96 (publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Dezembro de 1996), 'não basta que o tribunal recorrido proclame a aplicação ou a recusa de aplicação de uma norma para que ela se tenha por aplicada ou «desaplicada». É indispensável que a decisão recorrida documente a aplicação ou a recusa de aplicação em causa'. E o que claramente resulta do Acórdão da Relação - que, supostamente, se teria desembaraçado da limitação quanto ao conhecimento da matéria de facto que lhe seria imposta pelo artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 com a sobreposição interpretativa do Assento de 1934 - é que não houve qualquer reponderação de tal matéria de facto, uma vez que a fls. 780-782 reproduz a matéria de facto considerada provada a fls. 716v-718 (no Acórdão de 26 de Janeiro de 1994 da 7ª Vara Criminal do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa), não em resultado de uma reapreciação baseada 'nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos', mas sim porque
'deu o tribunal recorrido como provados os factos seguintes: [...]'.
Desatende-se, assim, a questão prévia consistente na falta de um dos pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade previsto no artigo
70º, nº 1, alínea g), da Lei do Tribunal Constitucional, ou seja, a não aplicação pela decisão recorrida da norma anteriormente julgada ou declarada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
8. Alcançada esta conclusão e tendo em conta que o Acórdão deste Tribunal nº 401/91, publicado Diário da República, I Série-A, de 8 de Janeiro de
1992, declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de uma norma - a do artigo 665º do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934 - que, apesar da declaração de não aplicação, impediu a reponderação da prova produzida na 1ª instância pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nada mais resta do que fazer aplicação, nos presentes autos, daquela declaração de inconstitucionalidade.
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se fazer aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº 401/91 e, em consequência, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, que deve ser reformado em conformidade com o aqui decidido sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 1998 Fernando Alves Correia Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida