Imprimir acórdão
Processo n.º 532/98 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. P... e sua mulher, M..., interpõem o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão da Relação de Lisboa, de 26 de Março de 1998, para apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 69º, n.º 1, alínea a), e 107º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro.
O referido acórdão da Relação de Lisboa (de 26 de Março de 1998) negou provimento à apelação que os recorrentes apresentaram contra a sentença do Juiz do 5º Juízo Cível da comarca de Lisboa.
A sentença do juiz da 1ª instância julgou procedente a acção de despejo, que contra os recorrentes fora proposta por MP.... E, consequentemente, condenou-os a entregar, devoluto, o 6º andar, letra A, do prédio urbano sito na Rua Dr. João Couto, n.º 6, em Benfica, Lisboa (fracção AC), que a autora, enquanto proprietária, arrendara, em 1 de Junho de 1971, aos réus, para habitação deles, mas de que agora necessita para, nela, ir habitar uma sua filha (MJ...), que vive consigo e pretende vir trabalhar e constituir família em Lisboa, onde não tem casa própria, nem arrendada, e onde vive o noivo e tem já propostas de emprego, que só pode aceitar se tiver habitação garantida na cidade.
Neste Tribunal, alegaram os recorrentes, que formularam as seguintes conclusões:
1 – Fundamenta-se a presente acção de despejo na necessidade do locado para habitação de um descendente em primeiro grau da A., prevista na al. a) do Art.º
68º do R.A.U. – Dec.Lei 321-B/90, de 15/10;
2 – O arrendamento em apreciação teve início de vigência em 1/6/71;
3 – Nos termos da autorização legislativa nº 42/90 e ao abrigo do qual veio a ser publicado o Dec.Lei 321-B/90, de 15/10, o dispositivo constante da Segunda parte do Art.º 69º, nº 1, al. a), não se enquadra no âmbito da preservação de regras socialmente úteis aí previstas no regime vinculístico do arrendamento vigente e que conferem protecção à posição do arrendatário;
4 – Tal preceito, ao contemplar os descendentes de 1º grau do senhorio, como fundamento de denúncia do arrendamento, constitui matéria da competência da A.R. prevista na al. h) do Art.º 165º da C.R.P., não delegada no Governo pela autorização legislativa nº 42/90, de 10/08;
5 – Tal preceito viola igualmente o disposto no Art.º 65º, nºs 1 e 3 da C.R.P., porque com esse fundamento e à margem da lei, esvazia de sentido, ou pelo menos, viola gravemente o direito à habitação através do arrendamento, que por analogia expressa no Art.º 17º da Lei Fundamental, deve ser dado o mesmo por não escrito nessa parte porque é contra Ela, nos termos dos nºs 2 e 3 do Art.º 18º da C.R.P.;
6 – Aliás, sempre essa mesma norma não poderia ser aplicável a um arrendamento já vigente à data da sua entrada em vigor, por publicação do Dec.Lei 321-B/15/10 e por isso também sempre esse mesmo preceito se traduz na não preservação de uma regra socialmente útil e por ele reduzindo a protecção conferida ao arrendatário;
7 – O Art.º 69º, nº 1, alínea a), do RAU aprovado pelo Dec.Lei 321-B/90, de
15/10, porque a Lei de Autorização Legislativa nº 42/90 no seu exacto sentido, alcance e extensão não prevê a alteração das causas de cessação do arrendamento, não contempla os descendentes em 1º grau do senhorio como fundamento da necessidade do locado e da denúncia do arrendamento face ao regime vinculístico vigente, pelo que deve ser declarada inconstitucional por violação ao disposto no nº 1, al. h) do Art.º 165º da CRP. Nestes termos [...], deve ser dado provimento ao presente recurso com todos os efeitos legais, e em consequência, o acórdão recorrido ser reformulado em consonância com o julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
A recorrida, por sua parte, concluiu as sua alegações como segue:
1º Os recorrentes não deram cumprimento ao estabelecido no artº 70º, nº 1, al. b) da Lei 28/82, bem como no art.º 280º, nº 1, al. b) da C.R.P., porquanto as pretensas inconstitucionalidades não foram suscitadas antes de esgotado o poder jurisdicional do Juiz da 1ª instância.
2º Não verificado esse pressuposto de admissibilidade do presente recurso, não deveria o mesmo ser, sequer, conhecido.
3º Acresce que a questão da pretensa inconstitucionalidade material do art.º
69º, nº 1, al. a) do R.ªU. – só agora invocada pelos recorrentes – não foi apresentada à(s) instância(s) recorrida(s), a tempo de esta(s) a poder(em) apreciar e decidir.
4º Conduzindo rigorosamente à mesma insusceptibilidade do conhecimento do presente recurso, ao menos nessa parte.
5º Mas – independentemente do que antecede – a verdade é que aquela disposição legal não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade material, até porque o direito à habitação não é, de todo, um direito absoluto, antes podendo ser comprimido e/ou restringido para salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, como é o caso presente.
6º No referente à pretextada inconstitucionalidade orgânica do citado art.º 69º, nº a1, al. a) do R.A.U., ela foi declarada até agora por Acórdãos deste T.C. todos da 1ª Secção, sempre com votos de vencido, e com base em argumentos que se não afiguram convincentes.
7º Com efeito, a al. a) do art.º 2º da Lei 42/90 conferiu autorização ao Governo para legislar no sentido da codificação destinada a colmatar lacunas, a remover contradições e a solucionar dúvidas.
8º Ora, constitui facto público e notório que precisamente um dos pontos de dúvida na doutrina e jurisprudência face à anterior Lei era o de saber se o senhorio poderia ou não denunciar o arrendamento quando tivesse necessidade do prédio para habitação de um seu descendente em linha recta.
9º Existindo mesmo – e ao invés do que já foi invocado – diversas decisões, inclusive de Tribunais Superiores e publicadas sobre essa matéria, e nesse mesmo sentido.
10º Por outro lado, a al. a) do mesmo art.º 2º da Lei 42/90 não proibiu ao legislador que eliminasse quaisquer regras, designadamente alguma(s) das que protegem o arrendatário, mas apenas e tão-só aquelas que não fossem socialmente imprestáveis ou injustificáveis.
11º Tal como se pode entender perfeitamente ser o caso do anterior regime legal, cuja alteração está assim em clara consonância com o disposto no nº 3 do já citado art.º 3º da Lei 42/90, ao promover uma modificação do Código Civil para consagrar o entendimento que já então era perfilhado por um largo sector da doutrina e jurisprudência mas que ainda assim suscitava algumas dúvidas.
12º Em suma: o art.º 69º, nº 1 al. a) do R.A.U. não excede de todo os limites da autorização legislativa, concedida pela Lei 42/90, não padecendo, pois, de qualquer inconstitucionalidade orgânica. Termos em que, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se inteiramente o ora recorrido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou o decretamento do despejo da fracção propriedade da A. e ora recorrida.
Como a recorrida, embora sem suscitar formalmente a questão prévia do não conhecimento do recurso, afirma, nas alegações, que se não devia conhecer do mesmo, foram os recorrentes ouvidos sobre esse ponto.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. O objecto do recurso: O Regime do Arrendamento Urbano (RAU) foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º
321-B/90, de 15 de Outubro.
Os recorrentes suscitaram perante a Relação, de cujo acórdão agora recorrem, a questão da inconstitucionalidade dos artigos 69º, nº 1, alínea a), e 107º, nº 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, como pode ver-se na conclusão 2ª da respectiva alegação. E, no requerimento de interposição do recurso, indicaram-nas como objecto do mesmo. Simplesmente, da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 107º, o Tribunal não pode conhecer.
É que, tal norma não foi aplicada pelo acórdão recorrido. E não o foi, porque, apesar de os recorrentes terem invocado a sua inconstitucionalidade nas alegações da apelação, daí não extraíram, nem podiam extrair, qualquer efeito dessa invocação, pois não alegaram o facto capaz de obstar ao decretamento do despejo que se achava previsto na Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro (20 anos de permanência no arrendado). No caso, a invocação da inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano foi, pois, um obiter dictum, de todo irrelevante para o respectivo julgamento. [ Sobre a questão da constitucionalidade da alínea b) do n.º 1 do artigo 107º, cf., no entanto, o acórdão n.º 259/98 (Diário das República, II série, de 7 de Novembro de 1998)] .
O objecto do recurso é, assim, tão-só a norma do artigo 69º, nº 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, pois só quanto a ela se verificam os respectivos pressupostos: os recorrentes suscitaram a sua inconstitucionalidade, durante o processo e de forma processualmente adequada, e o acórdão recorrido utilizou-a como sua ratio decidendi.
4. A questão de constitucionalidade: Quando o processo já se achava inscrito em tabela, este Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do mencionado artigo 69º, nº
1, alínea a), do Regime de Arrendamento Urbano, na parte em que se refere os descendentes em 1º grau do senhorio. Fê-lo no acórdão nº 59/99, publicado no Diário da República, I série-A, de 19 de Fevereiro de 1999.
Resta, por isso, fazer aplicação ao caso dos autos de tal declaração de inconstitucionalidade.
III. Decisão: Isto posto, decide-se, em aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do mencionado acórdão nº 59/99, conceder provimento ao recurso e revogar o acórdão recorrido, a fim de ser reformado em conformidade.
Custas a cargo do recorrente, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Março de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José Manuel Cardoso da Costa