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Proc. nº 1086/98 Cons. Messias Bento
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do juiz do Tribunal de Trabalho de Ponta Delgada, de 3 de Novembro de 1998, que recusou aplicação, com fundamento na sua inconstitucionalidade, ao artigo 131º, nº 1, alínea a), do Código das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto-Lei nº
224-A/96, de 26 de Novembro).
O despacho recorrido foi proferido na sequência de dúvidas que se suscitaram ao Secretário daquele Tribunal sobre o destino a dar ao produto da coima aplicada, por contraordenações laborais, a J..., que este liquidou na execução que lhe fora instaurada.
Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto aqui em exercício, que formulou as seguintes conclusões:
1º - A norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro, ao estabelecer que reverte para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas de qualquer natureza cobradas em juízo, ainda que constituam receitas das Regiões Autónomas, por força do preceituado em norma constante do respectivo Estatuto Político-Administrativo, é organicamente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 164º, alínea b) e 228º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, na redacção então em vigor.
2º - Tal norma padecerá ainda de ilegalidade por violação da lei com valor reforçado, vício este que é do conhecimento deste Tribunal, nos termos do artigo
70º, nº 1, alínea e) da Lei nº 28/82.
3º - Termos em que deverá confirmar-se a recusa de aplicação da norma que constitui objecto do presente recurso.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. Advertência: O Tribunal apenas se pronunciará sobre a constitucionalidade da norma que constitui objecto do recurso, e não também sobre a sua eventual ilegalidade.
É que, se fosse pronunciar-se sobre a questão de ilegalidade reforçada da norma, o Tribunal ia conhecer de um recurso que não foi interposto: recorreu-se ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º e ia conhecer-se (também) de um recurso da alínea e). Ora, isso não é admissível: desde logo, porque a falta de indicação, no requerimento de interposição de recurso, da alínea do nº 1 do artigo 70º ao abrigo da qual ele é interposto, quando não suprida, importa, conforme os casos, o indeferimento ou a deserção do recurso (cf. artigos 75º-A, nºs 1, 5, 6 e 7, e
76º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional); ao que acresce que, no presente caso, nem sequer podia ser interposto recurso ao abrigo da mencionada alínea e), uma vez que a decisão recorrida não recusou aplicação à norma aqui sub iudicio
'com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto' da respectiva região autónoma.
4. A norma sub iudicio: O artigo 131º do Código das Custas Judiciais versa sobre o destino das receitas cobradas pelos serviços de tesouraria dos tribunais judiciais. O nº 1 deste artigo 131º preceituava, na sua alínea a), que revertem para o Cofre Geral dos Tribunais 'o produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, ainda que por lei constituam receita do Estado ou de outras entidades'. Significa isto que, de acordo com este normativo, passou a reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto de todas as coimas, desde que fossem cobradas em juízo. Tais quantias passaram, por isso, sem qualquer ressalva, a constituir receitas desse Cofre, mesmo que, até aí, por força de outros preceitos legais, elas constituíssem receita do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais ou de qualquer instituto público. Com esta disciplina legal, 'visou-se a contrapartida para uma actividade que, transitando do âmbito das autoridades administrativas, passou a traduzir-se em actividade jurisdicional, geradora de despesas, nem sempre negligenciáveis' (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril, que veio dar nova redacção ao mencionado artigo 131º).
O dito artigo 131º, na sua nova redacção, que era a que se encontrava em vigor aquando da prolação do despacho recorrido, prescreve como segue na sua alínea a):
1 Revertem para o Cofre Geral dos Tribunais: a) o produto das coimas e das multas de qualquer natureza cobradas em juízo, salvo se constituírem receitas do orçamento da segurança social, das autarquias locais ou percentagem a que, por lei, tenha direito o autuante ou o participante.
Esta alteração legislativa justificou-a o legislador com o facto de a versão original da mencionada alínea a) colidir com a alínea j) do nº 1 do artigo 4º da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), que inclui nas receitas próprias dos municípios o produto das coimas e multas que lhes caibam; e, bem assim, com o facto de se achar consignado à acção social, constituindo receita do orçamento da segurança social, quer o produto das coimas aplicadas no seu
âmbito (artigo 5º do Decreto-Lei nº 64/89, de 25 de Fevereiro), quer o das multas resultantes de infracções ao respectivo regime penal (artigo 5º do Decreto-Lei nº 140/95, de 14 de Junho).
O montante das coimas e das multas cobradas nas regiões autónomas continuou, porém, a reverter para o Cofre Geral dos Tribunais, não obstante, como adiante se verá, o produto das mesmas constituir receita das regiões, nos termos dos respectivos estatutos.
É, pois, a norma do artigo 131º, nº 1, alínea b), do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro (redacção do Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril), na parte em que manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o forem nas regiões autónomas, que aqui está sub iudicio.
5. A questão de constitucionalidade:
5.1. A decisão recorrida recusou aplicação à norma constante da alínea a) do nº
1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº
224-A/96, de 26 de Novembro (redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 91/97, de
22 de Abril), por entender que ela viola os artigos 164º, alínea b), e 228º da Constituição (redacção anterior à versão de 1997). Fundou tal juízo de inconstitucionalidade no facto de a norma em causa, que consta de um decreto-lei, ter alterado o Estatuto da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela Lei nº 9/87, de 26 de Março) – recte, a alínea b) do seu artigo 95º, que, no que aqui importa, dispõe que constituem receitas da Região 'todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no território [...]' -, pois - disse – o Governo não tem competência para alterar o estatuto de uma região autónoma.
6. 2. Como este Tribunal já teve ocasião de sublinhar [cf. acórdão nº 92/92
(publicado no Diário da República, I série A, de 7 de Abril de 1992)], a Constituição, na redacção introduzida pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho, em vigor à data da edição da norma sub iudicio, incluía na competência indelegável da Assembleia da República a aprovação dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas e, bem assim, a alteração dos mesmos [cf. também o acórdão nº 637/95 (publicado no Diário da República, I série A, de 26 de Dezembro de 1995)]. Tal resultava claramente do artigo 164º, alínea b) – que dispunha competir à Assembleia da República 'aprovar os estatutos político-administrativos das regiões autónomas' – conjugado com o artigo 228º, que prescrevia:
1. Os projectos de estatutos político-administrativos das regiões autónomas serão elaborados pelas assembleias legislativas regionais e enviados para discussão e aprovação pela Assembleia da República.
2. Se a Assembleia da República rejeitar o projecto ou lhe introduzir alterações, remetê-lo-á à respectiva assembleia legislativa regional para apreciação e emissão de parecer.
3. Elaborado o parecer, a Assembleia da República procede à discussão e deliberação final.
4. O regime previsto nos números anteriores é aplicável às alterações dos estatutos.
[Norma idêntica a esta, consta, hoje, do artigo 226º da Constituição, versão de
1997].
Existe, assim, uma reserva de lei estatutária, pois há matérias que só os estatutos regionais podem regular. E, por isso, há violação da reserva de estatuto, se a regulamentação dessas matérias for feita por uma lei comum da Assembleia da República ou por um decreto-lei do Governo.
A Constituição não diz, porém, quais as matérias que as leis estatutárias regionais, que são leis da República, embora de valor reforçado e sujeitas a um especial processo de aprovação, devem regular. A tal propósito, JORGE MIRANDA (Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, página 302) diz que a reserva de lei estatutária 'abarca as atribuições e o sistema de órgãos de governo próprios das regiões autónomas'. De sua parte, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 847) sublinham que 'o princípio fundamental a ter em conta nesta matéria é que o estatuto regional é o estatuto de uma pessoa colectiva e, neste sentido, uma lei organizatória. Ele deve pois abranger todas – e deve abranger apenas – as matérias directamente definidas por esse objecto, designadamente: atribuições das regiões autónomas
(cf. artigo 229º) e sua delimitação em relação às de outras pessoas colectivas territoriais (Estado, autarquias locais), formação, composição e competência dos
órgãos regionais e estatuto dos respectivos titulares (v. artigo 233º-5)'. E acrescentam: Em suma, o estatuto regional deve regulamentar as matérias previstas nos artigos
229º a 235º da Constituição em tudo aquilo que não esteja reservado para lei comum da Assembleia da República, como sucede, por exemplo, com a lei eleitoral, a lei do sistema de planeamento e a lei do regime orçamental (artigo 167º/f e artigo 168º/j e l, respectivamente).
Não basta, pois, que uma determinada norma conste de um estatuto regional para que a sua alteração por um decreto-lei importe violação da reserva de estatuto: desde logo, porque a norma estatutária pode ela, ela própria, ser inconstitucional. Essa violação só existirá, se essa norma constante do estatuto pertencer ao âmbito material estatutário – ou seja: se ela regular questão materialmente estatutária.
6.3. Para decidir a questão de constitucionalidade que os autos nos propõem, importa, então, começar por decidir se o destino que a alínea b) do artigo 95º do Estatuto da Região Autónoma dos Açores assinala ao produto das coimas cobradas na Região é matéria que possa considerar-se inscrita no âmbito material estatutário, é dizer, se é materialmente estatutária.
Começa por recordar-se que, de acordo com a norma em causa, o produto das coimas cobrado na Região constitui receita desta. E acrescenta-se que isso mesmo dispõe, hoje, o artigo 102º, alínea b), do Estatuto aprovado pela Lei nº 61/98, de 27 de Agosto. Trata-se de uma norma de teor idêntico à que consta da alínea b) do artigo 67º do Estatuto da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei nº 13/91, de 5 de Junho: também aí se destinam à Região os montantes nela cobrados a título de coimas. Em conformidade, de resto, com o que se prescreve na alínea b) do artigo 95º do Estatuto da Região Autónoma dos Açores e na alínea b) do artigo 67ºdo Estatuto da Região Autónoma da Madeira, a Lei das Finanças Regionais (Lei nº 13/98, de 24 de Fevereiro) preceitua, no seu artigo 19º, que as coimas constituem receita da
'circunscrição em que se tiver verificado a acção ou omissão que consubstancia a infracção' (nº 1) ou da 'circunscrição em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação', no caso de a infracção ser praticada por
'actos sucessivos ou reiterados ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo' (nº 2). Isto dito, assinala-se que a autonomia regional – que se traduz num 'regime político-administrativo próprio' e numa 'autonomia político-administrativa' - visa 'a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses' (cf. artigo 227º da Constituição, na redacção de 1989). Ora, os poderes legislativo e executivo próprios de que as regiões autónomas dispõem [cf. artigo 229º, nº 1, alíneas a) a d) e g)] só podem ser postos ao serviço dos objectivos da autonomia, se as regiões puderem dispor de meios financeiros próprios; designadamente, se puderem afectar ao pagamento das respectivas despesas as receitas cobradas no respectivo território. Por isso é que a Constituição lhes reconhece: poder tributário próprio, nos termos da lei; o direito de disporem das receitas fiscais nelas cobradas; e, bem assim, o poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos da lei-quadro da Assembleia da República [cf. o citado artigo 229º, nº 1, alínea i), e a referida Lei das Finanças Regionais]. Sendo isto assim, mal se compreenderia que o produto das coimas cobradas nas regiões autónomas não revertessem para elas próprias. Tanto mais que a própria Constituição, naquele artigo 229º, nº 1, alínea p), lhes reconhece o poder de, nos limites da respectiva lei-quadro, definir ilícitos de mera ordenação social e de lhes fixar as respectivas sanções (é dizer, as coimas).
Pode assim concluir-se que, legislar sobre o destino a dar ao produto das coimas cobradas nas regiões autónomas, é normativizar sobre uma questão que é materialmente estatutária.
Ora, já se viu que só a Assembleia da República pode alterar os estatutos regionais. E, ainda assim, carece sempre de uma iniciativa regional: a iniciativa legislativa originária cabe sempre, e em exclusivo, às assembleias regionais. E mais: a Assembleia da República não pode alterar, nem rejeitar definitivamente um projecto, sem que a respectiva assembleia regional se possa pronunciar sobre as alterações por ela introduzidas (cf. o citado artigo 228º da Constituição).
A alínea a) do nº 1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96, de 26 de Novembro (redacção do Decreto-Lei nº 91/97, de
22 de Abril), tendo sido editado pelo Governo, é, pois, inconstitucional: ele viola os artigos 164º, alínea b), e 228º da Constituição (redacção de 1989).
Há, assim, que negar provimento ao recurso.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). julgar inconstitucional – por violação dos artigos 164º, alínea b), e 228º da Constituição, na versão de 1989 – a norma constante da alínea a) do nº 1 do artigo 131º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei nº
224-A/96, de 26 de Novembro (redacção do Decreto-Lei nº 91/97, de 22 de Abril), na parte em que manda reverter para o Cofre Geral dos Tribunais o produto das coimas cobradas em juízo, sem exceptuar as que o forem nas regiões autónomas;
(b). em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida quanto ao julgamento de constitucionalidade que nela se contém.
Lisboa, 10 de Março de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida