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Processo n.º 584/2009
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. A. e outra interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do nº 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, do Acórdão proferido pelo
Tribunal da Relação do Porto a 15 de Abril de 2009. Neste Acórdão, o Tribunal da
Relação decidira de dois recursos interpostos pelos recorrentes: um, relativo à
decisão interlocutória que havia sido proferida pelo tribunal a quo a 27 de
Junho de 2008; outro, relativo ao acórdão final do mesmo tribunal, que os
condenara pela prática, em co‑autoria, de um crime de abuso sexual de crianças.
2. No requerimento de interposição do recurso (fls. 1172 e ss), os recorrentes
colocaram ao Tribunal nove questões de constitucionalidade. As primeiras cinco
reportavam-se a normas que, no entender dos recorrentes, teriam sido aplicadas
pelo tribunal a quo na parte respeitante ao juízo sobre a decisão
interlocutória; as restantes quatro reportavam-se a normas que, ainda no
entender dos recorrentes, teriam sido aplicadas pela decisão recorrida no
julgamento do recurso respeitante ao acórdão final condenatório.
3. Por Decisão Sumária, emitida ao abrigo do nº 1 do artigo 78º‑A da Lei nº
28/82, foi decidido não conhecer do objecto do recurso quanto a todas as
questões colocadas, por inverificação dos respectivos pressupostos de
admissibilidade.
Relativamente às primeiras cinco questões – reportadas, como já se disse, a
normas alegadamente aplicadas pelo Tribunal da Relação quanto ao recurso
interposto da decisão interlocutória que havia sido proferida pelo tribunal a
quo – entendeu-se que não havia lugar à dispensa da sua necessária suscitação
durante o processo, dado se não demonstrar que, como alegavam os recorrentes, a
interpretação normativa que, no caso, fora feita, se mostrava surpreendente,
inesperada, imprevisível ou insólita, ao ponto de tornar impossível a arguição
prévia da sua inconstitucionalidade.
Relativamente à quatro restantes questões, entendeu o Tribunal, em relação a
três delas, que os recorrentes não haviam colocado, de modo processualmente
adequado perante o tribunal a quo, e nos termos do artigo 72º da Lei nº 28/82,
qualquer questão de constitucionalidade normativa; e em relação a outra, que,
não havendo qualquer suscitação prévia do problema de constitucionalidade, mais
uma vez não seria tal dispensável, por não ocorrer, também neste caso, qualquer
aplicação normativa que, pelo seu conteúdo, se revelasse surpreendente ou
imprevisível.
4. É desta decisão que vêm agora reclamar, ao abrigo do nº 3 do artigo 78.º‑A
da lei nº 28/82, A. e outra.
Fundamentam a sua reclamação, basicamente, no seguinte.
(I) Que se trata da “derradeira possibilidade que o recorrente A., com 67
anos de idade, intérprete de uma vida impoluta e sem mácula criminal, tem, no
sentido de evitar uma decisão injusta e que o privará da liberdade, porventura
para todo o sempre”, apelando-se por isso que o Tribunal “analise todo o
processo com detalhe e minúcia” e que “pondere todos os mais elevados princípios
jurídicos cogentes aos nosso ordenamento constitucional.”
(II) Que devem ser admitidas as cinco primeiras questões de
constitucionalidade, reportadas a normas alegadamente aplicadas pelo tribunal a
quo no recurso sobre a decisão interlocutória, porque, não tendo embora tais
questões sido suscitadas durante o processo, se referem elas, na verdade, a
interpretações inesperadas e surpreendentes. É o que decorre, i.a., do seguinte
excerto:
Tal fundamentação jurídica [a constante do Acórdão do Tribunal da Relação] é
totalmente díspar da realizada em 1ª instância e, firmada nos termos em que foi,
conforme se encontra evidenciado, é surpreendente, inesperada, imprevisível e
insólita, sendo desrazoável exigir aos Recorrentes que fizessem uma antevisão de
sua aplicação, sendo que, as arguidas inconstitucionalidades só poderiam ser
suscitadas no presente recurso, apenas e só após os Recorrentes terem sido
confrontados com esta inesperada realidade interpretativa do direito que
consubstancia, na prática, numa impossibilidade de o arguido exercer um
verdadeiro direito de defesa.
Quanto a este ponto, dizem também os recorrentes:
Por seu turno, ao invés daquilo que se invoca no douto despacho (sic) objecto de
reclamação, é forçoso afirmar que a questão de apurar se uma determinada
interpretação normativa é ou não inesperada, imprevisível, insólita ou
surpreendente, constitui matéria que resulta – e resultará sempre – da análise
jurídica dos autos. Mormente, impõe-se que o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, por si
próprio, analise os autos e formule um juízo autónomo e suficiente sobre tal
questão. É claro que os Recorrentes podem avançar argumentos no sentido de
auxiliar e convencer o julgador da bondade das suas teses, mas em última análise
o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL dispõe de todos os elementos de facto para realizar a
ponderação jurídica para que é convocado.
A decisão basear-se-á única e exclusivamente na análise do conteúdo jurídico das
diversas peças processuais, todas ao dispor do Tribunal Constitucional. Aquilo
que os Recorrentes alegarem, constituirá apenas e tão-somente o seu juízo sobre
tais elementos de facto, juízo esse que não dispensa o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
de fazer a sua valoração própria. Por isso, a imposição aos Recorrentes de um
ónus de explicação, com o conteúdo e o alcance constantes do douto despacho
reclamado, para além de não ter enquadramento legal, constitui uma exigência
desproporcionada e desnecessária à boa decisão da causa.
(III) Que devem ser admitidas todas as quatro questões de constitucionalidade
colocadas a propósito das normas alegadamente aplicadas na decisão quanto ao
recurso principal. Quanto a este ponto, insiste-se que três dessas questões
foram objecto de adequada suscitação prévia; e que aquela em relação à qual não
ocorreu tal suscitação diz respeito a uma interpretação normativa que era de
todo imprevisível.
Quanto a este ponto, finalizam ainda os recorrentes:
Acresce ainda e sem conceder, que a interpretação que a douta decisão sumária
faz do disposto no artigo 72° n° 2 da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, extrapola
a respectiva letra e espírito, criando desmesurados e inaceitáveis entraves
materiais no acesso ao TC, tornando, do ponto de vista prático, praticamente
impossível aceder ao Tribunal Constitucional, interpretação essa que viola o
direito ao recurso dos Arguidos, nos termos do artigo 32° n° 1 da CRP, sendo,
deste modo, inconstitucional.
5. Notificado da reclamação, veio o representante do Ministério Público junto
do Tribunal pronunciar‑se pelo seu indeferimento, por entender que se não
verificara, in casu, qualquer decisão surpresa; que não tinha sido suscitada
qualquer questão de constitucionalidade normativa; e que “resultando da própria
Constituição (artigo 280°) quais os requisitos a que deve obedecer o recurso de
constitucionalidade, não tem sentido falar da inconstitucionalidade do artigo
72° da LTC, nos termos em que o reclamante o faz”.
II
6. Determina o artigo 280º.º, nº 1, alínea b) da Constituição que cabe recurso
para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. O pressuposto da
necessária arguição da questão de constitucionalidade de normas durante o
processo – arguição feita de modo adequado, de forma a que a decisão recorrida
sobre ela se pronuncie – é, assim, de ordem constitucional antes de ser de ordem
legal: na realidade, o que a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 faz
é tão somente replicar a exigência contida na própria Constituição, exigência
essa compreensível num sistema de controlo de constitucionalidade que, como o
nosso, incide sobre normas e não sobre decisões.
O disposto no nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82 – que determina que os recursos
de decisões de aplicação de normas só podem ser interpostos pela parte que haja
suscitado a questão da inconstitucionalidade (…) de modo processualmente
adequado – apenas concretiza a exigência constitucional da suscitação prévia,
enquanto pressuposto de admissibilidade do recurso para o Tribunal. Não faz, por
isso, sentido colocar o problema da eventual inconstitucionalidade de um
pressuposto processual que tem a sua origem no modelo de controlo de
constitucionalidade de normas que é fixado pela própria Constituição.
7. Como bem se sabe, o Tribunal só tem excepcionado a exigência de suscitação
prévia da constitucionalidade das normas – e prévia em relação à decisão de que
se recorre – naqueles casos anómalos e excepcionais em que se mostre de todo
impossível ao recorrente prever, antes da emissão da decisão de que se interpôs
recurso, qual a norma que viria nela a ser aplicada ou qual o sentido
interpretativo que aí lhe viria a ser concedido. Ora, não foi manifestamente
esse o caso dos autos, quanto às cinco primeiras questões de constitucionalidade
colocadas pelo recorrente. Todas elas se reportavam a cinco “interpretações
normativas”, alegadamente aplicadas pelo Tribunal da Relação no julgamento do
recurso da decisão interlocutória proferida pelo Tribunal de 1ª instância, das
disposições conjugadas dos artigos 131.º, nº 3 e 340.º do Código de Processo
Penal. Em relação a nenhuma delas foi a questão de constitucionalidade arguida
durante o processo. Conforme se disse na Decisão reclamada, e conforme se volta
a salientar na resposta que o Ministério Público oferece à reclamação, resulta
dos próprios autos que a Relação, ao confirmar nesta matéria a decisão da 1ª
instância, não levou a cabo qualquer interpretação imprevisível. Nada
legitimaria, por isso, a dispensa in casu do pressuposto de arguição, durante o
processo, das questões de constitucionalidade colocadas.
8. Em seguida, sustenta o recorrente que, quanto ao que denomina “decisão sobre
o recurso principal”, suscitou, durante o processo, três das quatro questões de
constitucionalidade colocadas.
Sucede, porém, que a Decisão Sumária reclamada, nos pontos 7, 8 e 10 da sua
fundamentação (relativos, respectivamente, à “questão A”, à “questão B” e à
“questão D”), demonstrou exaustivamente por que razão não correspondia tal
“suscitação”, alegada pelos recorrentes, à colocação adequada de qualquer
questão de constitucionalidade normativa que pudesse como tal ser conhecida e
respondida pelo tribunal a quo. Tal demonstração exaustiva não foi infirmada
pela reclamação agora apresentada. Tal como o não foi a razão pela qual se não
conheceu da “questão C” (ponto 9 da fundamentação da decisão sumária), em
relação à qual os próprios recorrentes reconhecem não ter cumprido o pressuposto
da suscitação prévia. Mais uma vez, ficou por demonstrar a natureza
surpreendente ou imprevisível da aplicação da norma, natureza essa que tornaria
impossível a colocação prévia da questão da sua constitucionalidade.
IIII
Assim, e pelos motivos expostos, o Tribunal decide indeferir a reclamação e
confirmar a decisão reclamada.
Custas pelos recorrentes, fixadas em 20 ucs, da taxa de justiça.
Lisboa, 18 de Novembro de 2009.
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão