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Procº nº 699/98.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. Por acórdão de 18 de Maio de 1994, lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi, inter alia, condenado o arguido M... na pena de 6 anos de prisão pelo cometimento de um crime previsto e punível pelo artigo 28º, nº 2, dos Decretos-Leis números 430/83, de 13 de Dezembro, e 15/93, de 22 de Janeiro.
Desse acórdão recorreu o arguido para o Tribunal Constitucional, o qual, por intermédio do Acórdão nº 200/97, decidiu negar provimento ao recurso quanto à norma constante do artº 469º do Código de Processo Penal de 1929 e, no tocante à norma ínsita no artº 665º do mesmo diploma, sem a sobreposição interpretativa do assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, revogou o aresto então impugnado, pois que a julgou desconforme à Lei Fundamental, 'em aplicação do julgamento de inconstitucionalidade proferido no acórdão nº 430/94'.
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, aí foi proferido, em 2 de Outubro de 1997, novo aresto onde se pode ler, por entre o mais:-
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Perante a invalidade da norma do artº 665º CPP/29, duas vias se abrem para a solução do problema: o ou o recurso ao Código de Processo Civil, por força do artº 1º, § 1º do CPP/29; o ou o recurso à integração, sugerida pelo artº 10º, nº 3 do Código Civil.
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Quanto à 2.ª via, a da integração, diz-nos o artº 10º, nº 3 do CC que a situação é resolvida «segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema».
Não basta, porém, criar a norma dentro do «espírito do sistema« do CPP/29 e atender aos princípios gerais do processo nele inscritos, pois essa norma terá ainda de conter-se nos limites constitucionais.
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Ora, como o regime de recursos do CPP/87 tem resistido a todas as críticas em sede de inconstitucionalidade (basta uma rápida mirada pela abundante jurisprudência do TC sobre o tema), surge- -nos como o caminho mais
óbvio para a dita integração adoptar – até onde for possível conciliá-lo com a estrutura do CPP/29 – o regime de recursos do CPP/87. V
Assim, e quanto à fundamentação do acordão do Colectivo, verifica-se que o mesmo obedece ao estatuído no artº 374º, nº 2 do CPP/87: estão nele enumerados os factos provados e expostos os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão. Faltaria a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, nessa parte, não é possível a conciliação com o regime do artº 469º CPP/29, que aliás o TC, no acordão de fls. 5479, não declarou inconstitucional, essencialmente porque «o ordenamento processual penal de 1929 contém mecanismos que, apesar de tudo, permitem suprir, com um mínimo de consistência, as funções que a motivação está chamada a desempenhar».
Aliás, qualquer norma que o tribunal criasse para integrar a lacuna teria de manter-se dentro do espírito do sistema do CPP/29 (...) e ser conciliável com as normas dos artigos 469º, 471º, 472º, 505º, 509º e 510º do mesmo diploma de 1929, sob pena de tal sistema ser completamente subvertido.
No que toca aos poderes de cognição do tribunal de recurso e fundamentos deste em matéria de facto (v. artºs 410º, nº 2 e 426º CPP/87), e conforme resulta do acordão de fls. 4969 acima transcrito, verifica-se que não sofre o acordão do Colectivo de qualquer dos vícios do nº 2 do artº 410º, o mesmo se dizendo do acordão da Relação que dele conheceu.
De resto, e quanto à elaboração dos quesitos e suas respostas (onde fica vazada a matéria de facto), tem o CPP/29 mecanismos de reclamação (artºs
468º, 494º, 502º e 512º) que asseguram manifestamente a suficiência da matéria de facto e a «coerência lógica» dos motivos de facto que servem de fundamentação
à decisão de direito e dos diversos dados de facto ente si.
Do exposto se pode concluir que, substituído o regime do artº 665º CPP/29, julgado inconstitucional, pelas normas acima apontadas, tributárias do CPP/87, não se encontra motivo para alterar a decisão proferida no acordão de fls. 4968, acima transcrito, tanto mais que neste se decidiu que «in casu, a Relação de Lisboa conheceu da matéria de facto sem qualquer limite – os vícios que os recorrentes apontavam ao acordão de facto, e que agora reeditaram, foram apreciados de modo claro, exaustivo e pormenorizado» e que foi respeitado o duplo grau de jurisdição «no efectivo e concreto exercício da administração da justiça».
Não se vê, pois, que o acordão em discussão tenha infringido o artº
32º, nº 1 da Constituição e, designadamente, as garantias de defesa do arguido Gonçalves Grou.
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'
O arguido M... requereu a aclaração do acórdão de que parte acima se transcreveu, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, em aresto de 15 de Janeiro de
1998, dito que no tocante à questão de saber qual 'a norma que o tribunal criou e aplicou nos termos do artº 10º, nº 3 do Cod Civil', 'vê-se que não foi eleita uma norma mas um conjunto de normas (regime de recursos do CPP/87) que se disse ter resistido a todas as críticas em sede de inconstitucionalidade e do qual se fez a devida adaptação ao espírito do sistema do CPP/29'.
Ainda foi arguida a nulidade do acórdão em apreço, o que foi indeferido por aresto de 7 de Maio de 1998.
É do acórdão de 2 de Outubro de 1997 que o arguido recorre para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, dizendo que:-
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2- Julgou o acórdão recorrido que, face ao decidido pelo Tribunal Constitucional, nada mais lhe restava senão socorrer-se do disposto no nº 3 do art. 10º do Cod. Civil.
3 – As normas criadas terão sido as seguintes:
3.1 - No que diz respeito à fundamentação da sentença parece – diz-se parece porque o acórdão recorrido não esclareceu convenientemente esta questão, apesar de ter sido requerida a aclaração – passar a ser regida pelo nº 2 do art.
374º do Cod, Proc. Penal de 1987, convenientemente extirpado da 'indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.'
3.2 – No que diz respeito aos poderes de cognição dos Tribunais da Relação, em matéria de facto, nos recursos interpostos das decisões proferidas em tribunal colectivo, serão os constantes do nº 2 do art. 410º e 426º do Cod. Proc. Penal de 1987.
4 – No caso subjudice não estamos perante normas '... que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.' mas de transplante de normas a que não faltaram fenómenos de rejeição (cfr. precedente
3.1).
5 – A solução dada pelo acórdão recorrido – criação de verdadeiras normas 'ad hoc' quanto aos poderes de cognição das Relações, em matéria de facto – viola, manifestamente, o disposto no nº 1 do art. 32º da CRP, nas versões anteriores à
4ª Revisão Constitucional.
6 – Na perspectiva do recorrente, o acórdão recorrido determinou-se por normas, que diz ter criado e que, no que toca aos poderes de cognição das Relações em matéria de facto, são mais limitativas do que a decorrente do art. 665º do Cod. Proc. Penal de 1929, na sua versão originária.
7 – No especial caso dos autos, o presente recurso só podia ser interposto após a prolação do acórdão recorrido, sendo certo que o 'tribunal a quo', esteve confrontado com uma concreta questão de constitucionalidade.
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2. Determinada a feitura de alegações, conclui o recorrente a por si produzida do seguinte modo:-
'1ª - O acórdão recorrido foi proferido para dar cumprimento ao acórdão do Tribunal Constitucional de fls. 5479 a 5504 que decidiu «...em aplicação do julgamento de inconstitucionalidade proferido no acórdão nº 430/94, conceder provimento ao recurso interposto por Gonçalves Grou, tendo por objecto a norma daquele art. 665º sem a sobreposição do assento do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Junho de 1934...»;
2ª - Julgou o acórdão recorrido que, face ao decidido pelo Tribunal Constitucional, nada mais lhe restava senão socorrer-se do disposto no nº 3 do art. 10º do Código Civil;
3ª - As normas criadas foram as seguintes:
3.1 – No que diz respeito à fundamentação da sentença, passou esta a ser regida pelo nº 2 do art. 374º do Cod. Proc. Penal de 1987, convenientemente extirpado da «...indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.»;
3.2 – No que diz respeito aos poderes de cognição dos Tribunais da Relação, em matéria de facto, nos recursos interpostos das decisões proferidas em tribunal colectivo, passaram eles a ser os constantes do nº 2 do art. 410º e 426º do Cod. Proc. Penal de 1987.
4ª - No caso subjudice não estamos perante normas '...que o próprio intérprete criaria se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema.' mas de transplante de normas a que não faltaram fenómenos de rejeição (cfr. precedente
3.1);
5ª - A solução dada pelo acórdão recorrido – criação de verdadeiras normas 'ad hoc' quanto aos poderes de cognição das Relações, em matéria de facto – viola, manifestamente, o disposto no nº 1 do art. 32º da CRP, nas versões anteriores à
4ª Revisão Constitucional;
6ª - Na perspectiva do recorrente, o acórdão recorrido determinou-se por normas, que diz ter criado e que, no que toca aos poderes de cognição das Relações em matéria de facto, são mais criativas do que as decorrentes do art. 665º do Cod. Proc. Penal de 1929, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 20.174 de 1 de Agosto de
1931;
7ª - O acórdão recorrido, ao fim e ao cabo e ainda que de forma oblíqua, repescou o art. 665º do Cod. do Proc. Penal de 1929, com a sobreposição do Assento do STJ de 29 de Junho de 1934, que aplicou!!!'
De seu turno o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu a sua alegação dizendo que não 'é inconstitucional a norma respeitante aos poderes das Relações em matéria de facto nos recursos das decisões penais condenatórias dos tribunais colectivos, criada pelo Supremo Tribunal de Justiça no uso de poder previsto no artigo 10º, nº 3, do Código Civil, com um conteúdo substancialmente idêntico ao que decorre das normas dos artigos 410º, 426º e 433º do actual Código de Processo Penal'.
II
1. Ressalta do requerimento de interposição de recurso e da alegação oferecida pelo recorrente (cfr. as «conclusões» ali formuladas e, maxime, a transcrita «conclusão» 5ª) que, em direitas contas, a vertente impugnação deve ser entendida como se circunscrevendo, e tão só, à norma (ou conjunto normativo) criada (ou criado) pelo Supremo Tribunal de Justiça, na sequência do julgamento de inconstitucionalidade do normativo ínsito no artº 665º do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto nº 16.489, de 15 de Fevereiro de 1929, sem a sobreposição interpretativa conferida pelo Assento daquele Supremo Tribunal de
29 de Junho de 1934, no que tange aos poderes das Relações quanto aos seus poderes de cognição em matéria de facto.
Na verdade, no teor daquela alegação, o recorrente tenta demonstrar que o que foi referido no Acórdão deste Tribunal nº 573/98, tirado em plenário em 13 de Outubro de 1998 e ainda inédito, no sentido da conformidade constitucional do disposto no nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, não tem razão de ser, fundando-se nas considerações carreadas à declaração de voto apendiculada àquele aresto pelo Conselheiro Sousa e Brito para concluir que um tal normativo ainda é mais limitativo do que o que decorria do artº 665º do Código de Processo Penal de 1929.
Ora, perante um tal contexto - e sendo que, como deflui do acórdão sob censura, a indicada norma (ou esse conjunto normativo) tem por base o disposto no sistema recursório previsto no citado Código de Processo Penal aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, designada e expressamente nos números 1 e 2 do seu artº 410º (e não só o nº 2 desse mesmo artigo, contrariamente ao que sustenta o recorrente, já que ali se indicou expressamente que, no caso então em análise, a Relação tinha conhecido da matéria de facto sem qualquer limite, tendo apreciado todos os vícios que foram suscitados pelos recorrentes nas suas impugnações) e do seu artº 426º, de onde se podendo dizer que a norma (ou conjunto normativo) em espécie não olvida o que se dispõe nos artigos 426º e
433º do mesmo diploma adjectivo - tem este Tribunal de concluir que o que se põe em causa e lhe é solicitado no presente recurso é que afira da constitucionalidade de uma tal norma (ou conjunto normativo) definitória dos poderes cognitivos das Relações em matéria de facto.
2. Assente, assim, que, na verdade das coisas, o que o Supremo Tribunal de Justiça levou a efeito no acórdão recorrido foi a aplicação, in casu, de uma norma, por si gizada, de conteúdo substancialmente idêntico à que se extrai dos preceitos consagrados nos artigos 410º, 423º e 433º do mencionado Código de Processo Penal de 1987, segue-se que será sobre ela que o juízo deste
órgão de administração de justiça deverá incidir.
Neste particular, entende-se que, para o caso sub iudicio, é plenamente transponível a fundamentação utilizada no referido Acórdão nº 573/98 e que conduziu a um juízo de não inconstitucionalidade sobre a regulação jurídica que deflui daqueles artigos e que, ao fim e ao resto, foi idêntica à que foi adoptada pelo Alto Tribunal a quo neste mesmo caso.
2.1. Não se vá, porém, sem dizer que se descortinam aqui acentuadas semelhanças com o feito decidido pelo Tribunal Constitucional por intermédio do seu Acórdão nº 264/98 (tirado em 5 de Março de 1998 no processo nº 636/95, subscrito pelo ora relator e ainda inédito).
Estava aí em causa uma decisão lavrada pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto a um processo em que ocorrera um julgamento realizado em 1ª instância ainda à sombra do Código de Processo Penal de 1929 e onde o Tribunal Constitucional proferira um julgamento no qual julgou inconstitucional o artº
665º daquele corpo de leis, com a sobreposição interpretativa do Assento de 29 de Junho de 1934, vindo aquele Supremo Tribunal, na sequência da decisão do Tribunal Constitucional - e porque entendeu que tal artigo, mesmo sem aquela sobreposição interpretativa, continuava a enfermar de desconformidade com a Lei Fundamental, - a criar uma norma quanto aos poderes cognitivos da Relações.
Essa norma foi assim redigida:-
'1- As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julgam em primeira instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e ou quaisquer outros elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.
2- As Relações podem anular as decisões do tribunal colectivo, mesmo oficiosamente, quando reputem insuficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos formulados ou quando considerem indispensável a formulação de outras questões, ou quando haja nova matéria de apreciação da prova.
3- As Relações podem determinar oficiosamente a renovação da prova para evitar a anulação da decisão do tribunal colectivo.
4- A decisão que determinar a renovação da prova é definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida em primeira instância pode ser renovada.
5- Havendo lugar à renovação da prova, intervêm na audiência os juízes do processo, sobre a presidência do relator, observando-se na parte aplicável o disposto nos artºs. 423º e 430º do C.P.P. de 1987'.
Tocantemente à questão então equacionada, discreteou este Tribunal, no que ora releva (efectuando-se uma abundante transcrição, atendendo ao ineditismo do falado Acórdão nº 264/98):-
'................................................................................................................................................................
12.2. A segunda diz respeito ao problema de saber se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1992 se encontra uma norma jurídica, para efeitos de recurso de constitucionalidade, ou se nele não se descortina mais do que uma simples decisão judicial. A colocação deste problema
é pertinente, dado que, como é sobejamente conhecido e tem sido afirmado e repetido em grande número de arestos deste Tribunal, a competência do Tribunal Constitucional é uma competência de controlo da constitucionalidade de normas e não de decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Ora, não há dúvidas de que aquele aresto criou, nos termos do artigo
10º, nº 3, do Código Civil, uma norma jurídica, ainda que, como salienta J. Baptista Machado, uma simples norma 'ad hoc', apenas para o caso sub judicio, sem que de modo algum adquira carácter vinculante para futuros casos ou para outros julgadores '(cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, Almedina, 1993, p. 203). Mas essa norma, criada pelo intérprete, 'se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema', traduz, como sublinha J. Oliveira Ascensão, 'uma intenção generalizadora', apontando a referência feita no artigo 10º, nº 3, do Código Civil à função de legislar para a necessidade de elevar a perspectiva para além do caso a decidir.
Ainda segundo o mesmo autor, o artigo 10º, nº 3, do Código Civil
'proclama também, consagrando aqui a tendência doutrinária portuguesa, o primado da norma sobre a solução do caso concreto: é porque se determinou aquela que a solução do caso concreto se tornou possível. Fala-se efectivamente na norma que o próprio intérprete criaria, e é essa norma que resolve o caso' (cfr. A Integração das Lacunas da Lei e o Novo Código Civil, in o Direito, Ano 100, Nº
3, p. 288, 289).
Na linha deste entendimento, escreveu-se no Acórdão deste Tribunal nº
150/86, publicado no Diário da República, II Série, de 26 de Julho de 1986) que
'exercício do poder normativo existirá, na realidade, também sempre que, como no caso vertente, ao tribunal cabe criar o direito, mais que dizê-lo e aplicá-lo. É o que acontece, igualmente, quando ao juiz, para integrar uma lacuna, é deferido pela lei [cfr. o artº 10º, nº 3, do Código Civil (CC) português; o artº 1º do Código Civil suíço; o artº 22º da Lei sobre Fontes de Direito da Cidade do Vaticano] o poder de criar a norma aplicável, como se fosse o legislador (Renzo Provinciali, Norme de diritto processuale nella costituzione, pp. 189 e ss.; S. Belaid, Essai sur le pouvoir créateur et normatif du juge)'.
No caso concreto, pode também dizer-se, utilizando as palavras daquele aresto, que o Supremo Tribunal de Justiça, ao formular a norma sobre os poderes das Relações nos recursos penais, 'não estava a dizer o direito aplicável ao caso concreto, antes estava, na verdade, a criar esse direito; não estava a decidir um litígio, antes a fixar os critérios [...] que lhe permitiriam vir a resolvê-lo num momento ulterior. Isto é, não estava a exercer uma função materialmente jurisdicional' [...].
12.3. A terceira relaciona-se com a determinação do objecto do presente recurso de constitucionalidade. Ele não é constituído por todas as normas do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 recriado pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22 de Janeiro de 1992, mas apenas pelas normas constantes nºs.
1,2 e 3 daquele preceito, enquanto, como refere o recorrente, negam 'ao réu criminal o direito de ver repetida perante a 2ª Instância, sem quaisquer limitações, a prova oralmente produzida perante o tribunal colectivo'.
13. Ultrapassadas estas questões preliminares, poderá, agora, perguntar-se: as normas do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 recriado por aquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto barram 'ao réu criminal o direito de ver repetida perante a 2ª Instância, sem quaisquer limitações, a prova oralmente produzida perante o tribunal colectivo' (como escreveu o recorrente nas conclusões das suas alegações), violam o artigo 32º, nº 1, da Constituição?
O Tribunal entende que não, pelas razões que sucintamente se indicam.
13.1. O artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na formulação que lhe deu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1992, tem um conteúdo substancialmente idêntico ao das normas dos artigos
410º, nº 2, e 433º do actual Código de Processo Penal, com a evidente diferença de no domínio destes, o recurso ('revista alargada') das decisões condenatórias do tribunal colectivo ser interposto para o Supremo Tribunal de Justiça e não para o Tribunal da Relação.
Tal facto é realçado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que reconstruiu aquele preceito, nos seguintes termos:
'Pela redacção do nº 1 da norma transcrita, a competência das Relações em matéria de facto fica efectivamente alargada em relação à redacção constante do correspondente preceito do Código.
Quanto ao nº 2, chamou-se directamente ao artigo 665º os poderes de anulação já contemplados no nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente, mas adiantando-se o caso de erro notório na apreciação da prova, por inspiração do novo Código de Processo Penal (cfr. artº
410º, nº 2, al. c) e 428º, nº 2).
Relativamente ao nº 3, introduz-se na norma em causa a inovação da renovação da prova, que caracteriza os poderes das Relações na estrutura da nova lei de processo, e que possibilita ao tribunal de recurso fazer reproduzir perante si próprio determinada prova, em vez de ordenar a anulação da decisão recorrida, nos termos previstos no nº 2 .
O nº 5 limita-se a regular os trâmites da audiência de julgamento do recurso com renovação da prova em termos análogos aos do novo Código de Processo Penal.
Crê-se que, globalmente, a norma enunciada vai ao encontro das mais prementes garantias de defesa constitucionalmente garantidas.
A elas acresce ainda a existência de um grau de recurso das decisões das Relações para o Supremo Tribunal de Justiça, que, embora circunscrito à matéria de direito, pode levar este Tribunal a ordenar a baixa do processo à Relação quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (artº. 729º, nº 3 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente), o que não deixa de constituir certamente uma garantia suplementar quanto ao apuramento da matéria de facto'.
13.2. Ora, as normas do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal de 1987, bem como do artigo 433º do mesmo Código não foram julgadas inconstitucionais, em vários acórdãos deste Tribunal, ainda que os mesmos não tenham logrado alcançar a unanimidade dos juízes que compõem cada uma das suas Secções (cfr., entre outros, os Acórdãos nºs. 234/93, 322/93, 356/93, 141/94,
170/94 e 171/94, o terceiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 25º, p. 505 ss., e os restantes no Diário da República, II Série, de 2 de Junho de 1993, de 29 de Outubro de 1993, de 7 de Janeiro de 1995, de 16 de Julho de 1994 e de 19 de Julho de 1994, respectivamente).
Dada a identidade substancial entre o recriado artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929 e as mencionadas normas do Código de Processo Penal de
1987, também aquele não enferma de inconstitucionalidade, pelos fundamentos daqueles arestos este Tribunal, para os quais se remete.
De resto, como abundantemente se expôs na jurisprudência citada, o segundo grau de jurisdição em matéria de facto em parte alguma reveste a natureza de um direito potestativo do arguido a ver repetida 'sem quaisquer limitações' a prova produzida - que corresponderia, na prática, a inutilizar todas as primeiras decisões probatórias que culminassem em condenação e, no dizer de Cunha Rodrigues, a proporcionar 'segundos julgamentos necessariamente montados sobre cenários já utilizados e com prévio ensaio geral'(cfr. Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1992, p. 393].'
3. Sendo, como salienta o Ministério Público na sua alegação, a norma (ou o complexo normativo) criado pelo Supremo Tribunal de Justiça e ora em análise de conteúdo substancialmente idêntico ao que decorre das normas dos artigos 410º, 426 e 433º do Código de Processo Penal de 1987, concluir-se-á que a solução a conferir à questão da conformidade constitucional de tal norma (ou de tal complexo normativo) há-de ser em tudo semelhante à que este Tribunal tem dispensado àqueloutra questão reportada às normas do indicado corpo de leis adjectivas penais, com a transposição, mutatis mutandis, da fundamentação em que, maioritariamente, se alicerçou.
E daí que se haja, também agora, de concluir por que a norma (ou o complexo normativo) sub specie não enferma de vício de inconstitucionalidade.
III
Em face do que se deixa dito, nega-se provimento ao recurso, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em dez unidades de conta. Lisboa, 10 de Março de 1999- Bravo Serra Paulo Mota Pinto Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto junta ao acórdão nº 573/98) Maria Fernanda Palma (vencida, nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão nº 573/98). José Manuel Cardoso da Costa