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Processo nº 780/09
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é
recorrente A. e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto
recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele
Tribunal de 13 de Julho de 2009.
2. Em 8 de Outubro de 2009, foi proferida decisão sumária, pela qual o Tribunal
decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 1, da LTC, não tomar
conhecimento do objecto do recurso.
Foi utilizada a seguinte fundamentação:
«Constitui requisito do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da
LTC a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja
apreciação é requerida pelo recorrente.
A decisão recorrida não aplicou, como razão de decidir, qualquer norma extraída
dos preceitos legais indicados pela recorrente. Ao Supremo Tribunal de Justiça
cabia verificar o fundamento do recurso extraordinário, pelo que, para julgar
não verificada a oposição de acórdãos e, em consequência, rejeitar o recurso,
aplicou o artigo 437º do Código de Processo Penal.
A não verificação daquele requisito obsta ao conhecimento do objecto do recurso,
justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. A recorrente reclama da decisão, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, nº 3,
da LTC, concluindo o seguinte:
«II. Na Decisão Sumária recorrida, transcreve-se a Decisão do Supremo Tribunal
de Justiça na parte em que a mesma não conhece a aplicação do artigo 308° n° 2
do Código de Processo Penal
III. No entanto, para chegar a esta conclusão, a Decisão do Supremo Tribunal de
Justiça afirmou antes: “um Observador atento e desinteressado” de imediato
descortina “a factualidade que se tem por verificada”, não existindo ofensa ao
artigo 308 n° 2.
IV. Ora, desta decisão, ainda que a mesma seja de acolhimento e confirmação de
decisão anterior do Tribunal da Relação, resulta que o Supremo Tribunal de
Justiça apreciou a aplicação ali feita do artigo 308° n° 2 do CPP, julgando-a
correcta.
V. Entender de forma diferente é esvaziar o conteúdo de tal decisão do Supremo
Tribunal de Justiça pois, com o devido respeito, não se vê como se possa
concluir, como se concluiu, que não existe oposição de Acórdãos sem apurar se a
decisão em reapreciação violou ou não o artigo 308° n° 2 do CPP.
VI. Por esse motivo se discorda do entendimento constante da decisão sumária
pois para aplicar o artigo 437° do CPP o Supremo tribunal de Justiça sempre teve
de interpretar e aplicar em determinado sentido, expressa ou implicitamente, o
artigo 308° do CPP.
VII. O Supremo Tribunal de Justiça afastou a existência de Oposição por ter
concluído, interpretando e aplicando em determinado sentido, que no Acórdão
fundamento a situação era de violação do artigo 308° n° 2 do CPP e no Acórdão
Recorrido não existia tal violação.
VIII. Entender de forma diferente é com o devido respeito, sempre muito, fazer
desaparecer qualquer utilidade ao Recurso de Oposição de Acórdãos pois faria da
apreciação de tal Recurso uma mera leitura das conclusões de cada um dos
Acórdãos e, caso não fossem exactamente iguais, não existia oposição não se
conhecendo.
IX. Ora, se as conclusões fossem iguais, não teria havido Recurso. O fundamento
do Recurso de Oposição é exactamente o contrário.
X. O Venerando Supremo Tribunal de Justiça concluiu que na Decisão em
reapreciação houve respeito do que dispõe o artigo 308° n° 2 do CPP.
XI. O que é falso. E, além de falso e ter por base um erro que já vem da Decisão
da Relação de Lisboa em que se afirma que das conclusões resultam os factos, tal
entendimento daquela norma é também inconstitucional.
XII. Entende a Recorrente que a Decisão do Supremo Tribunal de Justiça aplicou
de forma expressa a norma, aplicando-a no sentido cuja inconstitucionalidade se
alega. No entanto, sem conceder, sempre será de entender que, no menos, sempre o
fez de forma implícita. No sentido da Admissibilidade neste caso os Acs. 318/90
e 235/93 desse Tribunal Constitucional.
XIII. Veja-se que a Recorrente alegou que existia oposição de julgados pois no
Acórdão Fundamento a ausência completa dos factos indiciados foi considerada
fundamento de nulidade de Despacho de Não Pronúncia e no Acórdão Recorrido a
mesma total ausência de factos indiciários provados ou não foi considerada
regular.
XIV. Atente-se que nenhuma Decisão proferida até á data conseguiu enunciar um
facto que fosse constante do Despacho de Não pronúncia pois do mesmo não constam
factos provados ou não mas apenas conclusões.
XV. Mais, respeitosamente, nem se entende o comentário constante do Acórdão da
Relação em oposição com o Ac. Fundamento, pois: Será que é o observador atento e
desinteressado que vai exercer o direito de recurso? Ou será o interessado e seu
mandatário que têm de compreender a decisão para a poder aceitar ou da mesma
recorrer?
XVI. E só a expressão escolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça - Descortinar –
é por si só sinal de erro na apreciação que se fez pois, salvo melhor
entendimento, não é aceitável que, em Processo Penal, se tenham de - afastar
cortinas para avistar - os factos provados ou não provados.
XVII. Mais, o que determina este Recurso é a dificuldade em se aceitar que a
Decisão de Não pronúncia alcance o efeito de Caso Julgado com o patrocínio de
Relação e Supremo em erro grave.
XVIII. É falso que conste directa ou indirectamente daquele despacho qualquer
factualidade provada ou não. E é inconstitucional considerar, interpretando
nesse sentido o artigo 308° n° 2 do CPP, que basta que das conclusões se retire
qual a factualidade provada.
XIX. Veja-se que afirma o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão: “ No Acórdão
recorrido, que, como afirma, transcreveu do Despacho de Não pronúncia apenas o
que interessa, não tendo reproduzido os factos apurados...”
XX. Não o fez porque não o podia fazer pois os mesmos não constam de tal
Despacho, motivo pelo qual não reapreciou a Relação a decisão de facto.
XXI. Mais, o Acórdão do Supremo afirma que não são idênticas as situações quando
as mesmas são exactamente idênticas e as decisões são em sentido expressamente
oposto.
XXII. E nem se afirme como fez o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mais
uma vez conhecendo e conhecendo mal, que no Acórdão da Relação o tratamento do
vício de falta de indicação de factos como de mera irregularidade sanada apenas
foi referido por “mera necessidade de discurso.”
XXIII. O Acórdão da Relação errou ao analisar a questão como irregularidade,
apressando-se a dizer que sempre estaria sanada, não verificando como se impunha
- e com o devido cuidado - se os factos se encontravam descritos como provados
ou não provados.
XXIV. E a Relação de Lisboa não referiu o vício por mera necessidade de
discurso, referiu-o no fim é certo, mas fez a sua apreciação de direito com o
cuidado de quem verifica uma irregularidade sanada e não uma nulidade. E o
Supremo Tribunal de Justiça recusou a existência de oposição confirmando este
entendimento.
XXV. Por estes motivos a Recorrente interpôs Recurso ao abrigo da alínea b) do
n° 1 do Artigo 70º da Lei n° 28/82 de 15 de Novembro, estando reunidos os
pressupostos para apreciação do Recurso;
XXVI. Pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos
308° n°2 e 283° n° 3 al. b) do C.P.P. com a interpretação que foi aplicada na
Decisão Recorrida. Devendo ainda ser considerada também a inconstitucionalidade
do sentido normativo dado à norma que resulta do disposto nos artigos 118° a
123°, 97° n° 5, 374º n° 2, 309°, 379 al. a) e 379° al. c) no sentido em que
foram interpretados instrumentalmente pelo Tribunal Recorrido para proferir a
Decisão de que se recorre.
XXVII. Com efeito, na Decisão Recorrida tal interpretação foi feita no sentido
de: “ O Cuidadoso Despacho Recorrido não pode considerar-se Nulo. Na verdade
dele decorre, para um observador atento e desinteressado – e este último não é o
estado de espírito da recorrente – qual a factualidade que se tem por
verificada... de qualquer forma sempre a ofensa desse legal dispositivo (308 n°
2 do CPP) não determinaria a existência de qualquer nulidade...a existir um
vício seria uma irregularidade...sanada...”
XXVIII. Quando, como se disse, do Despacho de não pronúncia não resulta um único
facto, ainda que por remissão para o Despacho de Arquivamento ou para o
Requerimento de Abertura de Instrução, julgado provado ou não, mas apenas
conclusões.
XXIX. Ora, tal norma dos artigos 308° n° 2 e 283° n° 3 al. b) no sentido em que
foi interpretada e aplicada pela decisão recorrida, é inconstitucional por
violar o disposto, em especial, nos artigos 205 n° 1 e 32° n° 1 da Constituição
da República Portuguesa mas também os artigos 20° n° 1 e n° 5 e 202° n°2 da CRP,
na medida em que de tal entendimento e aplicação decorre para a Recorrente a
perda do direito a uma reapreciação da decisão de facto por ausência de
fundamentação de facto que permita a quem recorre e a quem reaprecia conhecer a
decisão de forma bastante para efeitos de Recurso. Neste sentido o Acórdão no
444/91, de 20/11, no DR II série; e nº78-S de 2/4/92 e BMJ, 411.
XXX. Bem como Inconstitucional o entendimento da Decisão Recorrida, por atentar
contra os mesmos Preceitos Constitucionais, naquele sentido das normas contidas
nos artigos referidos no n° XXXVI desta reclamação.
XXXI. Aliás, com o devido respeito, basta analisar a reapreciação da matéria de
facto que a Relação de Lisboa fez (não fez) na Decisão recorrida para verificar
que tal reapreciação não existe (não podia existir), limitando-se a reiterar as
conclusões do Despacho de não pronúncia, não transcrevendo factos provados ou
não por os mesmos não existirem.
XXXII. Sendo Inconstitucional nos termos já referidos, interpretar a citada
norma dos artigos 308° n° 2 e 283° n° 3 al. b) com o sentido em que o fez a
Decisão Recorrida, antes o sentido daqueles artigos conforme aos citados
preceitos constitucionais sempre terá de ser “que tal Despacho de Não Pronúncia,
padece do vício de Nulidade que deve ser decretado pela Relação, uma vez que, as
meras conclusões genéricas e a não descrição de factos, ainda que de forma
sintética, que possibilitem chegar à conclusão de suficiência ou insuficiência
de Prova indiciária, é uma nulidade fundamentadora de Recurso por falta de
fundamentação e que, como tal, ali foi declarada” como resulta, entre outros,
dos Doutos Acórdãos da Relação de Lisboa de 10.07.07 e do Douto Acórdão n.°
116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série,
XXXIII. A Questão da Inconstitucionalidade foi suscitada nos autos na
Interposição e Alegações de Recurso Ordinário para o S.T.J. recusado por
inadmissibilidade - (Req. de interposição e 9° das Alegações), bem como no
Recurso Extraordinário.
XXXIV. De tudo, resulta que não se pode aceitar a Decisão sumária de que ora se
reclama quando entende que a Decisão recorrida se limitou a verificar a oposição
de julgados, verificando e aplicando apenas o artigo 437° do CPP, não aplicando
a norma constante no artigo 308° n° 2 em sentido inconstitucional (…)».
4. Notificado desta reclamação, o Ministério Público respondeu nestes termos:
«1°
A assistente A. interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão
da Relação que, por sua vez, havia julgado improcedente o recurso que
interpusera do despacho de não pronúncia, em que era arguido B.
2°
Simultaneamente, para a hipótese de não ser aquele recurso admitido, interpôs
Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência.
3º
O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, quanto ao recurso ordinário, tinha
havido uma renúncia tácita à reclamação do despacho do Senhor Desembargador que
não o admitira.
4º
Consequentemente, considerou ter ocorrido trânsito daquele Acórdão da Relação,
mais entendendo que se verificavam os restantes requisitos formais de que
dependia a admissibilidade do Recurso Extraordinário de Fixação de
Jurisprudência.
5º
Passando a apreciar a oposição de julgados, aquele Tribunal entendeu que essa
oposição não se verificava.
6º
Para concluir pela não oposição de julgados, é evidente que o Tribunal teve de
analisar a interpretação que os acórdãos, supostamente conflituantes, deram às
pertinentes normas do Código de Processo Penal, designadamente o artigo 308°,
n°2.
7º
Nessa análise, o Supremo Tribunal de Justiça tem, não só de analisar essas
interpretações como de as aceitar – relembremos que se trata de decisões
transitadas - ,com vista ao único objectivo: verificar se ocorre, ou não,
oposição.
8°
Por isso, as únicas normas que o Supremo Tribunal aplicou na decisão recorrida,
são as respeitantes àquele Recurso Extraordinário, no caso, mais concretamente,
o artigo 437°, como se entendeu, e bem, na Decisão Sumária de fls.231 a 233.
9º
O reclamante não tem, pois, razão, ao continuar, na reclamação, a insistir que o
Supremo Tribunal de Justiça conheceu das questões de constitucionalidade que
suscitara no recurso ordinário para a Relação, quando, como se viu, o Supremo
entendeu que o Acórdão, por aquela proferido, tinha transitado.
10°
Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação».
5. Notificado da reclamação, o recorrido B. respondeu, sustentando que a mesma
deve “ser liminarmente rejeitada por ausência de fundamento”.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O Tribunal decidiu não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto, por
ter entendido que não se pode dar como verificado o requisito da aplicação pelo
tribunal recorrido, como ratio decidendi, de qualquer norma extraída dos
preceitos legais indicados pela recorrente no requerimento de interposição de
recurso (dos artigos 308º, nº 2, 283º, nº 3, alínea b), 118º a 123º, 97º, nº 5,
374º, nº 2, 309º e 379º, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal). Segundo
a decisão reclamada, a decisão recorrida aplicou, como razão de decidir, o
artigo 437º do Código de Processo Penal.
Contrariando o decidido, a reclamante sustenta que, para aplicar o artigo 437º
do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça teve de interpretar e
aplicar em determinado sentido, expressa ou implicitamente, o artigo 308º do
Código de Processo Penal; e que para proferir a decisão de que recorre,
interpretou instrumentalmente os restantes preceitos. Sem razão.
Ao Supremo Tribunal de Justiça cabia decidir se havia fundamento para a
interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, nos termos
do disposto no artigo 437º do Código de Processo Penal. Competia-lhe averiguar,
designadamente, se o acórdão recorrido e o acórdão fundamento assentavam em
soluções opostas relativamente à mesma questão de direito, em cumprimento do nº
1 daquele artigo. Teve, por isso, que enquadrar juridicamente a decisão do
tribunal recorrido, sem que isso correspondesse à aplicação, como ratio
decidendi, das normas aplicadas, como razão de decidir, pelo Tribunal da Relação
de Lisboa. É expressão desse enquadramento jurídico o que, de seguida, se
transcreve do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
«As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico são assim
diferentes: no acórdão fundamento há uma omissão completa dos factos indiciados,
o que contraria, na óptica da decisão, o art. 308º nº 2 do Código de Processo
Penal; no acórdão recorrido “um observador atento e desinteressado” de imediato
descortina “a factualidade que se tem por verificada”, não existindo ofensa ao
art. 308º nº 2.
Não estão preenchidos, portanto, os requisitos necessários para se ter por
verificada a oposição de acórdãos, pois não só não são idênticas as situações de
facto como também e não são ambas as decisões em oposição expressas, uma vez
que, no acórdão recorrido, o vício, que é tratado como mera irregularidade, só é
referido por mera necessidade do discurso.
Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar não verificada a
oposição de acórdãos, em consequência do que rejeitam o recurso».
Resta, pois, concluir pelo indeferimento da reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 17 de Novembro de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão