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Proc. nº 79/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. O Supremo Tribunal de Justiça, por decisão de 3 de Dezembro de 1998, confirmou a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que, por sua vez, havia confirmado a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, que havia julgado procedente a acção de impugnação pauliana que o Banco T... (ora reclamado) propôs contra A... e outros (ora reclamantes) e, em consequência, declarou a ineficácia, em relação ao autor, da compra e venda formalizada pela escritura de fls. 26 a 32 dos autos que teve por objecto os cinco primeiros prédios identificados na alínea h) da especificação.
2. Inconformados com o teor daquela decisão os ora reclamantes pretenderam recorrer para o Tribunal Constitucional. Pretendiam os recorrentes, nos termos do respectivo requerimento de interposição do recurso, ver apreciada a constitucionalidade do artigo 664º do Código de Processo Civil, por entenderem que, com o sentido e alcance que lhe deu a decisão recorrida, tal norma é violadora do princípio constitucional da igualdade.
3. O Relator do processo no Supremo Tribunal de Justiça decidiu não admitir o recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento em que a questão de constitucionalidade que os recorrentes pretendiam submeter à apreciação deste Tribunal era extemporânea, uma vez que 'não foi suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria em causa (CPC – 666º, 1)'.
4. Contra este despacho de não admissão do recurso apresentaram os requerentes, em 18 de Janeiro de 1999, a reclamação para o Tribunal Constitucional que agora se aprecia, aduzindo na exposição das razões que a justificam, em síntese, que não podiam razoavelmente prever a aplicação do artigo 664º do CPC com o sentido com que veio a ser aplicado, pelo que, não sendo previsível tal interpretação, não obstante a questão de constitucionalidade só ter sido suscitada no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, ainda o havia sido tempestivamente.
5. Já neste Tribunal foram os autos com vista ao Ministério Público, que emitiu parecer no sentido da improcedência da presente reclamação.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
6. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica – ou de uma sua dimensão normativa – e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado como racio decidendi. Quanto ao sentido a dar ao pressuposto de admissibilidade do recurso que se traduz na necessidade de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, constitui desde há muito jurisprudência assente neste Tribunal que a inconstitucionalidade de uma norma jurídica só se suscita durante o processo, quando tal se faz em tempo de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão para resolver e, consequentemente, a poder e dever decidir. Tal implica, em suma, que a questão de constitucionalidade seja suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a mesma inconstitucionalidade respeita; ou seja: em regra, antes da prolação da decisão recorrida (veja-se, entre muitos nesse sentido, os Acórdãos nºs 62/85, 90/85 e
450/87, in Acórdãos do T.C., 5º vol., p. 497 e 663 e 10º vol., pp. 573, respectivamente). Somente tem este Tribunal admitido que a questão da constitucionalidade de uma norma jurídica – ou de uma sua interpretação normativa – seja suscitada depois de proferida a decisão em hipóteses, excepcionais, em que o recorrente não tenha tido oportunidade processual de o fazer antes, ou em que o poder jurisdicional, por força de norma processual específica, não se tenha esgotado com a prolação da decisão recorrida. E, nessa sequência, tem o Tribunal entendido que uma das situações em que o interessado não dispõe de oportunidade processual para suscitar a questão da constitucionalidade antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo é precisamente a daqueles casos em que o recorrente é confrontado com uma situação de aplicação ou interpretação normativa, feita pela decisão recorrida, de todo imprevisível ou inesperada, em termos de não lhe ser exigível que a antecipasse, de modo a impor-se-lhe o ónus de suscitar a questão antes da prolação dessa decisão.
É esta última hipótese factual que os reclamantes entendem que se encontra retratada nos autos.
É, porém, manifesto, como vai ver-se, que não têm razão. Ao contrário do que sustentam os reclamantes a aplicação pela decisão recorrida do artigo 664º do CPC, com o sentido com que veio a ser aplicado – o de considerar que 'mesmo que, a propósito da acção pauliana, o autor tenha, mal, pedido que o bem em causa reverta ao património do alienante, o tribunal pode, e deve, juridicamente, interpretar a pretensão do autor e decidir a impugnabilidade ou ineficácia relativa do acto questionado e a possibilidade de o credor ser pago, pelas forças daquele bem, ainda que no património do adquirente (...)' -, era perfeitamente previsível, em termos de poder ter sido, antes de proferida a decisão recorrida, suscitada a sua inconstitucionalidade. E, tal é assim não tanto porque, como se salienta na decisão recorrida, essa interpretação normativa corresponde a uma orientação jurisprudencial que vinha a ser seguida por uma das secções do Supremo Tribunal de Justiça (nesse sentido citam-se, na decisão recorrida, algumas decisões anteriores da 1ª Secção do STJ), mas, fundamentalmente, porque - como, bem, sublinha o Ministério Público no seu parecer - os próprios reclamantes equacionaram essa possibilidade interpretativa da lei processual nas alegações que produziram no STJ (cf. conclusões 5º a 9º, a fls. 45 dos autos), limitando-se porém nessa altura a questionar a sua validade à luz da própria lei adjectiva – e não à luz da Constituição. Tendo equacionado, logo nessa altura, essa possibilidade interpretativa - designadamente para suscitar a sua inadmissibilidade à luz da lei adjectiva - não procede pois a alegação de que a sua utilização pela decisão recorrida surge como imprevisível ou inesperada, em termos de permitir aos recorrentes, de acordo com a jurisprudência antes expressa, suscitar a sua inconstitucionalidade apenas no requerimento de interposição do recurso. Pelo exposto, é efectivamente de considerar intempestiva a suscitação da questão de constitucionalidade que os ora reclamantes pretenderam submeter à apreciação deste Tribunal, não merecendo pois qualquer censura o despacho reclamado.
III – Decisão Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 10 de Março de 1999 José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida