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Processo n.º 35/99 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO interpõe o presente recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 4 de Novembro de 1998, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do n.º 5 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro - norma a que aquele aresto recusou aplicação, com fundamento em que ela viola o n.º 2 do artigo 20º da Constituição.
Aquele acórdão foi proferido no recurso de agravo, interposto pela empresa T..., do despacho judicial, proferido na acção ordinária contra si proposta pelo BANCO E..., SA, pendente no Tribunal Cível de Lisboa. Nesse despacho, o Juiz concedeu apoio judiciário à agravante, na modalidade de dispensa de pagamento de preparos e custas, mas, fundando-se no disposto no mencionado artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, indeferiu o pedido por ela feito de nomeação de patrono.
Neste Tribunal, alegou o PROCURADOR-GERAL ADJUNTO aqui em funções, que formulou as seguintes conclusões:
1ª. Não constitui restrição excessiva ou desproporcionada relativamente ao direito de acesso à justiça, na modalidade da protecção jurídica, a que se traduz em limitar - quanto às sociedades, aos comerciantes em nome individual nas causas ligadas ao exercício do seu comércio e aos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada - o referido direito (de que gozem integralmente as pessoas singulares e colectivas sem fins lucrativos), de modo a não permitir que empresas que prosseguem uma actividade económica com fins lucrativos ponham a cargo da generalidade dos contribuintes o pagamento de custos que, embora ligados à administração da justiça, são inerentes ao normal
'giro comercial' dos requerentes e cujo montante se não mostra manifestamente desproporcionado relativamente à dimensão económica da empresa.
2ª. Na verdade, tal limitação ou restrição traduz mera decorrência das finalidades constitucionalmente atribuídas ao sistema fiscal e do princípio da igualdade na repartição de encargos públicos, bem como da regra de que devem ser prioritariamente os beneficiários de uma actividade económica, exercida com fins lucrativos, a fornecer os meios financeiros indispensáveis ao prosseguimento de tal actividade.
3ª. Termos em que deverá ser julgado procedente o presente recurso.
A empresa recorrida formulou as seguintes conclusões: a) Não obstante o brilho e erudição da douta alegação do Ministério Público – elogio sincero que se deixa reiterado – a verdade é que lhe não assiste razão, tal como não assiste razão aos doutos Acórdãos referidos. b) Por muito que custe admitir, a verdade é que não é possível em abstracto suprimir as condições de exercício de um direito fundamental, como é o de acesso aos Tribunais, fundando o juízo abstracto do legislador em considerações de normalidade, de comerciante médio, de despesas de custas e de honorários como custos de produção, do montante módico dos honorários dos advogados, a quem está vedado o sistema de quota litis, etc. c) Toda a argumentação carreada só contribui, na opinião da recorrida, para fortalecer o juízo de inconstitucionalidade do douto acórdão da Relação (onde, aliás, há opinião maioritária, que permite à recorrida juntar vários acórdãos que lhe dão razão), quanto à solução do legislador de 1996 de matar o mal pela raiz. d) A solução encontrada pode valer no Reino Unido ou ser aconselhada por uma prática exigente na Escandinávia, mas não resiste face ao 'rochedo constitucional' que resulta dos artºs 13º, 18º, nºs 2 e 3, e 20º, nºs 1 e 2, CRP. e) Esse Alto Tribunal terá certamente ocasião de, confirmando a decisão recorrida, censurar a solução legislativa de restrição de um direito fundamental através da supressão da mesma quanto a uma classe de pessoas que é suposta ter à força do sucesso, por estar vocacionada ex lege para o lucro ... ainda quando tenha prejuízos que a tornem insolvente (antes de declarada a falência...). Termos em que se conclui pela improcedência do recurso.
2. Cumpre decidir.
II. Fundamentos:
3. A norma sub iudicio: Com o objectivo de que 'o ‘direito aos direitos’ ganhasse forma e efectiva viabilidade' (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro), o legislador editou o regime de acesso ao direito e aos tribunais. Pretendeu ele
'promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos' (cf. o artigo 1º, n.º 1). E, para concretizar esses objectivos - precisou no n.º 2 do mesmo artigo 1º -, assegurou que se desenvolverão 'acções e mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica'.
A protecção jurídica - dispõe o artigo 6º - 'reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário'. Este último (o apoio judiciário) 'compreende a dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas, ou o seu diferimento', e, bem assim, a dispensa de 'pagamento dos serviços do advogado ou solicitador' (cf. o artigo 15º, n.º 1) - ou seja: o direito a patrocínio oficioso. Apenas às 'pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial' se reconheceu o direito a protecção jurídica completa - é dizer: o direito a consulta jurídica e a apoio judiciário
(cf. artigo 7º, n.º 1). Às pessoas colectivas e sociedades, que fizessem prova de insuficiência de meios económicos para suportar os honorários e os encargos normais do pleito, a lei apenas reconheceu o direito a apoio judiciário (cf. artigo 7º, n.º 4).
A Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, veio, porém, dar nova redacção aos nºs 2, 4 e
5 do artigo 7º. Na sua nova redacção, este artigo 7º, nos seus nºs 1, 4 e 5, passou a preceituar como segue:
1. Têm direito a protecção jurídica, nos termos da presente lei, as pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial.
2. e 3. [ ...]
4. As pessoas colectivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
5. As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento, quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço.
De acordo com esta nova redacção, apenas as pessoas colectivas de fins não lucrativos, que se encontrem na apontada situação de insuficiência económica, continuam a gozar integralmente do direito a apoio judiciário - é dizer: do direito a dispensa (ou a diferimento) do pagamento de preparos e custas e do direito a patrocínio oficioso. As sociedades e as entidades a elas equiparadas para este efeito (a saber: os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada), essas deixaram de ter direito a patrocínio oficioso. Mantiveram, porém, o 'direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento'. Mas, ainda assim, com uma especificidade: este direito (o direito à dispensa ou ao diferimento do pagamento de preparos e custas), reconhecido às sociedades e
às entidades que a elas foram equiparadas para o efeito, ficou sujeito a pressupostos diferentes (e bem mais apertados) do que aqueles que a lei fixa para a concessão de apoio judiciário às pessoas colectivas de fins não lucrativos: de facto, ele só lhes é reconhecido, 'quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às [ suas] possibilidades económicas, aferidas, designadamente, em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço' (cf. o n.º 5). Como sublinha o Ministério Público, de harmonia com o que preceitua o n.º 5 do artigo 7º, para obter a dispensa (ou o diferimento) do pagamento de preparos e custas, não basta que as empresas aleguem 'a insuficiência de meios pecuniários imediatamente disponíveis para fazer face às custas da acção, importando ainda convencer o tribunal de que ocorre desproporção considerável entre o montante das custas (calculado, como se sabe, em função, desde logo, do valor da acção) e a dimensão e capacidade económica da empresa'. Decorre daí - diz ainda o Ministério Público - que, às empresas 'não será lícito obter dispensa de custas (com base numa ocasional insuficiência de ‘tesouraria’) para as acções que decorrem do ‘giro comercial normal’; mas já será possível obter tal benefício quando o valor da acção (e as custas eventualmente devidas) transcendam manifestamente a dimensão económica da entidade requerente (v.g., acção de indemnização da responsabilidade extracontratual, no valor de dezenas de milhares de contos, deduzida contra pequena empresa, de reduzido capital e precária estrutura produtiva)'.
Diferentemente do que sucede com as empresas, as pessoas colectivas de fins não lucrativos gozam de tal direito, sempre que 'demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial' (cf. o n.º 4 conjugado com o n.º 1). Ou seja: a estas últimas reconhece-se esse direito nos mesmos termos em que ele é reconhecido às pessoas singulares. [ Abre-se aqui um parêntesis para insistir em que, para este efeito, os comerciantes em nome individual, nas causas ligadas ao exercício do comércio, se não incluem nas pessoas singulares: é que, semelhantemente ao que acontece com os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, eles (os comerciantes) são - recorda-se - equiparados às sociedades] .
É o n.º 5 do artigo 7º, na redacção que atrás se transcreveu, que aqui está sub iudicio, mas apenas na parte em que essa norma não permite a nomeação de patrono oficioso às sociedades, mesmo que elas se encontrem em situação de insuficiência económica. Com efeito, foi só nessa medida que tal norma foi desaplicada pelo acórdão recorrido, pois ele apenas indeferiu o pedido de nomeação de patrono oficioso, formulado pela sociedade requerente; e, na 1ª instância, tinha-lhe sido concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de preparos e custas.
4. A questão de constitucionalidade:
4.1. O artigo 20º da Constituição - depois de, no n.º 1, dispor que 'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' - prescreve, no n.º 2, o seguinte:
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
É, justamente, este n.º 2 do artigo 20º que, segundo o acórdão recorrido, é violado pelo n.º 5 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro. E é-o, porque ele nega às sociedades o direito a patrocínio judiciário oficioso, garantido por aquele n.º 2.
Pergunta-se, então: a norma constante do n.º 5 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, na parte em que nega às sociedades a possibilidade de obter patrocínio judiciário oficioso, será inconstitucional?
4.2. A resposta - adianta-se já - é negativa.
4.2.1. A Constituição não define o âmbito de protecção do direito a patrocínio judiciário; antes o garante 'nos termos da lei'. Isto, porém, não significa que o legislador seja inteiramente livre de recortar de um modo ou de outro este tipo de protecção jurídica. Ele está obrigado a tornar acessível aos cidadãos o recurso ao patrocínio oficioso, pois, se a possibilidade de recorrer a tal tipo de patrocínio não tiver um mínimo de consistência, o direito de acesso aos tribunais pode tornar-se, para os economicamente mais carenciados, numa garantia vazia de sentido.
4.2.2. Pois bem: enquanto que as pessoas singulares (com exclusão dos comerciantes, nas causas decorrentes do exercício do comércio), bem como as pessoas colectivas de fins não lucrativos, têm direito a patrocínio judiciário oficioso, desde que, por insuficiência de meios económicos, se encontrem impossibilitados de 'suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços', as sociedades - únicas que aqui estão em causa -, essas não gozam de tal direito, seja qual for a sua situação económica ou financeira. Não gozam desse direito, mesmo nos casos em que a lei lhes reconhece o direito à dispensa (ou ao diferimento) do pagamento de preparos e de custas - ou seja: mesmo 'quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às [ suas] possibilidades económicas, aferidas, designadamente, em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço'.
A verdade, porém, é que, como vai ver-se, existem suficientes razões para a norma aqui sub iudicio - que não reconhece às sociedades o direito de obter patrocínio judiciário oficioso, mas apenas o direito de litigar com dispensa de preparos e do pagamento de custas - não ser passível de censura sob o ponto de vista constitucional.
Na verdade, desde logo, não decorre do artigo 20º da Constituição, nem do seu artigo 13º, que as sociedades devam ser equiparadas às pessoas singulares, para o efeito de obterem patrocínio oficioso: é, de resto, o artigo 12º que, depois de prescrever que 'todos os cidadãos gozam dos direitos [ ...] consignados na Constituição', precisa que 'as pessoas colectivas gozam dos direitos [ ...] compatíveis com a sua natureza'. Depois, aqueles preceitos constitucionais tão-pouco impõem que, para o efeito assinalado, as sociedades se devam equiparar
às pessoas colectivas sem fins lucrativos. Acresce que, estando em causa o direito de acesso à justiça, a carência económica não tem o mesmo significado para as pessoas singulares e para as sociedades. Tal como o não tem para as sociedades e para as pessoas colectivas sem fins lucrativos. De facto, o cidadão economicamente carenciado - carenciado para o efeito de lhe ser, constitucionalmente, devida informação e protecção jurídicas gratuitas - só excepcionalmente necessita do patrocínio judiciário oficioso, pois raramente precisa de aconselhamento jurídico ou de ir a juízo defender os seus direitos ou interesses legalmente protegidos. Os custos com honorários a pagar a advogados ou solicitadores constituem, assim, para ele uma despesa excepcional, com a qual, por isso, ele não conta no seu orçamento familiar. E, quanto às pessoas colectivas sem fins lucrativos, justamente porque se não propõem a obtenção de lucros, é de justiça que, para o efeito ora considerado, se equiparem às pessoas singulares, e não às sociedades.
As sociedades - que, na definição que delas fornece o artigo 2º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril), se traduzem na 'organização dos factores de produção destinada ao exercício de qualquer actividade agrícola, comercial ou industrial ou de prestação de serviços' - são organizações económicas que têm como finalidade a obtenção de lucros. Podem ser sociedades de pessoas (sociedade em nome colectivo) ou de capitais (sociedade anónima, por quotas ou em comandita, simples ou por acções). Em todos os casos, porém, do que se trata é de reunir capital e de criar uma organização com um objectivo específico: obter lucros. Ora, a actividade destas organizações económicas - recte, das sociedades comerciais - gera, naturalmente, conflitos, cuja solução há, em muitos casos, que pedir aos tribunais. É este um dado da experiência comum, bem ilustrado, de resto, pelo caso de que emerge o presente recurso, em que a empresa, ao impetrar o patrocínio oficioso, diz penderem contra si mais de um milhar de processos judiciais. Por isso, antes de dar vida à organização que se propõem criar, os futuros sócios, cientes que estão de que o giro comercial normal de uma empresa se encarrega de 'segregar' uma certa dose de litigiosidade, têm, necessariamente, que contar com a necessidade de recorrer a advogados, com maior ou menor frequência: tal necessidade existe, de facto, mesmo quando a sociedade não tem que ir a juízo. Ao que acresce que os honorários dos advogados, sendo negociáveis pelas sociedades, podem por estas ser previstos e contabilizados com alguma segurança. Daí decorre que os custos dessa litigiosidade, incluindo os honorários dos advogados, aos quais as empresas necessitam de recorrer, são custos correntes da própria actividade empresarial, como o são, pelo menos, os do técnico de contas ou os do economista a que elas têm também necessidade de recorrer.
Por isso, é com toda a razão que o Ministério Público sublinha: A existência de litígios decorrentes do próprio 'giro' ou da vida comercial normal é inelutável, constituindo, pela própria 'natureza das coisas', os respectivos 'custos' uma fracção dos próprios custos gerais de organização e funcionamento, inerentes à actividade económica ou empresarial.
E acrescenta: Deste modo - e, pelo menos, em relação aos litígios que directamente se conexionam com o normal 'giro comercial' da empresa, não transcendendo, de forma manifesta, a própria dimensão económica daquela - os custos derivados dos conflitos ou litígios em que a empresa ou o comerciante se vêem envolvidos acabarão por ser equiparáveis aos demais 'custos de produção' ou 'organização' da actividade económica que, com fins lucrativos, vem sendo realizada.
Também no acórdão n.º 97/99 (por publicar), que apreciou, sub specie constitutionis, a norma aqui sub iudicio, tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade, se pôs em relevo a mesma ideia. Escreveu-se aí o seguinte: Não há, deste modo, uma necessidade lógica e valorativa de equiparar as pessoas singulares, e até mesmo as pessoas colectivas sem fim lucrativo, às pessoas colectivas com fim lucrativo, no que se refere ao direito de que sejam criadas ou promovidas condições de acesso à Justiça através da gratuitidade do patrocínio judiciário, em casos de insuficiência económica. As pessoas colectivas com fim lucrativo integram, pela sua natureza, na estruturação da sua actividade económica esses custos, dispondo, por isso mesmo, de condições para a compensação dos mesmos. E a possibilidade de integração daqueles custos na actividade económica das pessoas colectivas de fim lucrativo não é só uma normalidade, mas é mesmo um pressuposto normativo da própria existência jurídica de tais entidades.
4.2.3. O legislador só estaria, então, obrigado a proporcionar às sociedades a possibilidade de obterem patrocínio judiciário gratuito, se, relativamente às que não têm condições para assegurar a respectiva actividade económica, da Constituição decorresse para o Estado o dever de proteger a litigância que o seu giro comercial normal, naturalmente, gera.
Uma tal imposição constitucional não existe, porém. Acresce que, cumprindo ao Estado 'assegurar o funcionamento eficiente dos mercados, de modo a garantir uma equilibrada concorrência entre as empresas' [ cf. artigo 81º, alínea e); cf. também o artigo 99º, alínea a)] , mal se compreenderia que ele adoptasse, relativamente a estas, uma política de protecção jurídica capaz de conduzir a que algumas delas (as que se encontram em situação económica difícil) ficassem dispensadas de suportar os custos com os honorários dos advogados. Na verdade, ao fazer essa opção legislativa, o legislador estava a pôr as cargo da comunidade (recte, dos contribuintes) parte dos custos da actividade de uma pessoa jurídica que se constituiu, justamente, para gerar riqueza e obter lucros. Ora, há-de convir-se que um tal resultado dificilmente se casaria com a ideia de igualdade perante os encargos públicos (e, assim, com as exigências de justiça fiscal), ou seja, com o objectivo que a Constituição, no artigo 103º, n.º 1, aponta ao sistema fiscal de contribuir para 'uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza' (cf. também o artigo 104º, n.º 1, da Constituição, que dispõe que o imposto sobre o rendimento há-de visar 'a diminuição das desigualdades'). Mais: o próprio interesse público na protecção da economia não aconselharia uma política de protecção jurídica desse tipo, relativamente a tais empresas: de facto, o que uma economia saudável realmente reclama é que as empresas que se mostram incapazes de suportar os custos normais da sua actividade económica - e que, por isso, se tornam inviáveis - se dissolvam, designadamente pela declaração de falência. Reclama-o o interesse geral - é dizer, o bem comum. E reclama-o, bem assim, o interesse dos credores.
É que - repete-se -, o que justifica a subsistência de uma empresa como ente jurídico é a possibilidade de ela gerar lucros, pois foi para isso que a mesma se constituiu.
Escreveu-se, a este propósito, no mencionado acórdão n.º 97/99: A impossibilidade de suportar os custos normais do exercício da actividade económica retira viabilidade a pessoas jurídicas, cuja constituição se justifica apenas para o exercício dessa mesma actividade económica, determinando, porventura, situações de falência e o congelamento da própria actividade económica de tais entidades, como forma de protecção dos interesses patrimoniais de outros e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia.
4.2.4. Mas, mesmo nos casos em que as sociedades têm que litigar em acções não relacionadas com a sua actividade económica normal (por exemplo, as acções de indemnização por danos provocados por acidentes ou emergentes de outras situações excepcionais), a conclusão, para o efeito de patrocínio judiciário, não tem que ser diferente da que se enunciou para os litígios que decorrem do giro comercial normal das empresas.
É que, para esse tipo de situações, existem seguros que as sociedades podem - e, quiçá, devem - contratar, levando os respectivos prémios à conta de custos.
A situação das sociedades, mesmo quanto a esses casos, é, assim, bem diferente da das pessoas singulares e da das pessoas colectivas sem fins lucrativos, pois que elas têm outras possibilidades de gerir os riscos da sua actividade, ainda que eles se não apresentem como riscos normais da mesma.
Assim, mesmo para os casos do tipo agora considerado, o artigo 13º da Constituição (conjugado com o seu artigo 20º, n.º 2) não impõe que as sociedades sejam equiparadas às pessoas singulares e às pessoas colectivas de fins não lucrativos, para o efeito de obter patrocínio judiciário gratuito. Também nesses casos, com efeito, a diferença de situações justifica a diferença de tratamento jurídico e, bem assim, a restrição ao direito a patrocínio judiciário, quando está em causa uma sociedade.
4.2.5. Por último, regista-se que o facto de se recusar às sociedades o direito a patrocínio judiciário oficioso não esvazia de conteúdo o direito de acesso à justiça, por banda das sociedades: desde logo, porque, como se viu, verificados os requisitos legais (ou seja, quando o 'preço da justiça' seja para as mesmas incomportável), elas gozam do direito de dispensa (ou de diferimento) do pagamento de preparos e de custas, assim se evitando que, por insuficiência de meios económicos, fiquem impedidas de ir a tribunal. O núcleo essencial do direito de acesso à justiça permanece, pois, intocado. Isto, mesmo que deva entender-se que a Constituição impõe ao legislador que, para garantir às sociedades o direito de acesso aos tribunais, deve, ao menos, prever a possibilidade de elas serem dispensadas do pagamento de preparos e custas, tal como se dispõe no artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de
29 de Dezembro, na redacção da Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro - questão esta que aqui não é necessário decidir.
1. Conclusão: Em matéria de patrocínio judiciário gratuito, a Constituição não impõe ao legislador que dê às sociedades o mesmo tratamento que confere às pessoas singulares e às pessoas colectivas sem fins lucrativos. Acresce o que, a tal propósito, se ponderou no citado acórdão n.º 97/99 e que é o seguinte: Mas mesmo que se entenda que a diferenciação não pode ser total ou que será necessário respeitar, nas restrições previstas pelas normas sub iudicio, uma certa proporcionalidade relativamente às demais situações, dever-se-á, ainda assim, reconhecer que tal diferenciação não só é justificada pela diversidade de condições referida - não sendo, por isso, uma restrição excessiva nem uma diferenciação desproporcionada - como também está sustentada por razões de interesse público. Com efeito, tal restrição do direito ao patrocínio judiciário
é justificável por critérios racionais de gestão do interesse colectivo e de repartição de encargos públicos, ao dar prioridade e especial protecção no acesso à Justiça às pessoas e entidades sem fim lucrativo e ao exigir que as entidades com fim lucrativo suportem - ou criem mecanismos para isso adequados - os custos da actividade económica de que são beneficiários.
A norma sub iudicio não é, pois, inconstitucional.
III. Decisão: Pelos fundamentos expostos, decide-se:
(a). conceder provimento ao recurso;
(b). em consequência, revogar o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade, a fim de ser reformado com conformidade com o aqui decidido;
(c). condenar a recorrida nas custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa,10 de Março de 1999 Messias Bento José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Beleza (vencida, nos termos da declaração de voto do Senhor Conselheiro Paulo Mota Pinto, aposto ao acórdão nº 97/99). Luís Nunes de Almeida