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Processo n.º 873/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Por acórdão de 16 de Setembro de 2008, o Supremo Tribunal Administrativo
(Secção do Contencioso Tributário), concedendo provimento a recurso interposto
por A. Ld.ª, anulou uma impugnação de IVA, com a seguinte fundamentação (na
parte que agora releva):
“Assim, abordar-se-á, de seguida, a questão da inconstitucionalidade.
A Circular n.º 19/89 da DGCI Disponível em
http://www.dgci.minfinancas.pt/NR/rdonlyres/OF22FB57-lADD-4D699DE3-951458B11A08/O/circular
19 de 18-12-1989 direccao de serviços do iva.pdf), na parte que interessa para a
apreciação do presente recurso jurisdicional, estabelece o seguinte:
Conceito de “pequeno valor” e de limite máximo a considerar
3. Para a conceituação do “pequeno valor” a aplicar às ofertas, que não às
amostras, considerar-se-á tal valor como não podendo ultrapassar unitariamente o
montante de 3.000$00 (IVA excluído), considerando-se ainda, em termos globais,
que o valor anual de tais ofertas não poderá exceder 5%0 (cinco por mil) do
volume de negócios, com referência ao ano anterior, sem qualquer limite em
termos de valores absolutos. No caso de início de actividade, a permilagem
referida aplicar-se-á aos valores esperados, sem prejuízo de rectificação a
efectuar na última declaração periódica a apresentar no ano de início, se os
valores definitivos forem inferiores aos valores esperados.
No caso em apreço, o que está em causa é a constitucionalidade da fixação do
valor anual de 5%0 (cinco por mil) do volume de negócios, com referência ao ano
anterior.
O art. 3.º, n.º 3, e alínea f), do C.I.V.A. estabelece o seguinte:
3 - Consideram-se ainda transmissões de bens, nos termos do n.º 1 deste artigo:
f) Ressalvado o disposto no artigo 25.º, a afectação permanente de bens da
empresa, a uso próprio do seu titular, do pessoal, ou em geral a fins alheios à
mesma, bem como a sua transmissão gratuita, quando, relativamente a esses bens
ou aos elementos que os constituem, tenha havido dedução total ou parcial do
imposto.
Excluem-se do regime estabelecido por esta alínea as amostras e as ofertas de
pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais;
Esta parte final da alínea f) contém um conceito indeterminado ao fazer
referência a «ofertas de pequeno valor, em conformidade com os usos comerciais».
A referência à conformidade com os usos comerciais aponta no sentido de se ter
pretendido que o valor das ofertas relevante para preenchimento do conceito de
«oferta de pequeno valor» fosse determinado não em função de um valor objectivo,
mas sim tendo em atenção, relativamente a cada tipo de actividade comercial, a
prática corrente em matéria de ofertas.
Por outro lado, não havendo qualquer razão para crer (nem sendo alegado nem
demonstrado) que em relação a todas as actividades comerciais os usos sejam no
sentido de não ser excedido o valor de 5%o do volume de negócios do ano anterior
não se encontra qualquer suporte no texto daquela alínea f) para a fixação de
tal limite.
Aliás, como resulta da matéria de facto, a Impugnante repetidamente vem
excedendo o limite referido, mesmo depois de lhe ser imposto o pagamento de IVA
na parte excedente, pelo que se indicia que a prática comercial no seu ramo de
actividade seja no sentido de efectuar ofertas em valor superior àquele limite,
o que, a ser assim, constituirá um «uso comercial» a atender.
Por outro lado, nesta matéria, não há qualquer disposição que permita à
administração tributária fixar «limites razoáveis», ao contrário do que sucede
em matéria de IRC, com as taxas de reintegração e amortização (art. 30.º, n.º 2,
do CIRC) E com repartição de custos para efeitos de determinação do lucro
tributável imputável a estabelecimento estável de sociedades e outras entidades
não residentes (art. 50.º, n.º 2, do CIRC). ( ( ) O Plano Oficial de
Contabilidade também não contém qualquer indicação nesse sentido, nomeadamente
relacionada com os «Artigos para ofertas»).
Assim, é de concluir que a referida Circular n.º 19/89, no ponto em apreço, é
material e organicamente inconstitucional, pois contém uma regra de incidência
objectiva de IVA que não foi criada por diploma emanado da Assembleia da
República, em matéria que se insere na reserva relativa de competência
legislativa da desta (arts. 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP, na
redacção vidente, a que correspondem os arts. 106.º, n.º 2, e 168.º, n.º 1,
alínea i), respectivamente, nas redacções de 1982 e 1989.
Consequentemente, a liquidação de IVA impugnada enferma de vício de violação de
lei, que justifica a sua anulação (art. 135.º do CPA).
Justificando-se a anulação da liquidação impugnada por vício que impede a
renovação do acto, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões
colocadas no presente recurso jurisdicional.”
2. O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o
Tribunal Constitucional, com invocação dos artigos 280.º n.º 1 alínea a) da
Constituição da República, 70.º, n.º 1, alínea a), 71.º, n.º 1 e 72.º n.ºs 1
alínea a) e 3, 78.º, n.º 4 e 79.º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na
redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, “por, no mesmo, se ter recusado a
aplicação da norma de incidência tributária constante da Circular n.º 18/89, de
18/12/1989, da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos”.
3. Prosseguindo o recurso, o Ministério Público alegou, tendo
sustentado as seguintes conclusões:
“1.º
Não pode inferir-se dos princípios da legalidade e da tipicidade, contidos no
princípio constitucional da reserva de lei fiscal, que esteja absolutamente
proscrita a utilização, pelas normas delimitadoras da incidência dos impostos,
de conceitos indeterminados, estando, em absoluto, vedada qualquer margem de
apreciação subjectiva pela Administração Fiscal, na fase de liquidação e
apuramento da matéria colectável, a qual teria de decorrer, de forma plena e
automática, da própria lei.
2.º
A norma constante do artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do CIVA ao excluir do regime
de “transmissões de bens” as amostras e ofertas de pequeno valor, feitas em
conformidade com os usos comerciais – cometendo naturalmente à Administração
Fiscal a densificação e concretização dos conceitos indeterminados de que o
legislador se socorreu – não representa a outorga à administração de um poder
constitutivo e discricionário de determinação da matéria colectável, não
afrontando, consequentemente, o princípio da reserva de lei fiscal.
3.º
Não viola qualquer princípio constitucional a norma regulamentar, constante da
circular n.º 19/89, que – sem vincular naturalmente os tribunais – estabelece um
critério interpretativo geral, a seguir pela Administração Fiscal na
concretização do conceito de oferta de “pequeno valor”, funcionando como
critério de decisão na definição do sentido objectivo emergente da norma fiscal,
de modo a obstar a uma inconveniente dispersão e subjectividade dos critérios
adoptados pelos funcionários daquela Administração.
4.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de
não inconstitucionalidade da norma que integra o objecto do presente recurso.”
4. A recorrida A. Ldª contra-alegou e concluiu nos termos seguintes:
“III. CONCLUSÕES
A. QUESTÃO PRÉVIA: DA INEXISTÉNCIA DE FUNDAMENTO DO RECURSO:
1. O artigo 72.º, n.º 3 da LTC invocado pelo Ministério Público para a
interposição do presente recurso não é fundamento do mesmo, já que se baseia na
inconstitucionalidade da Circular 19/89;
2. As Circulares não se subsumem a nenhuma das hipóteses previstas no artigo
72.º, n.º 3 da LTC, pois não se trata de convenção internacional, acto
legislativo ou decreto regulamentar;
3. As Circulares são normas internas e que vinculam apenas os órgãos
hierarquicamente inferiores ao órgão autor dos mesmos, pelo que, sendo o
Ministério Público uma entidade autónoma, não há qualquer espécie de hierarquia
face à Administração Fiscal e, consequentemente, não está obrigado à obediência
da Circular 19/89;
4. Não há nenhum princípio da constitucionalidade das Circulares que imponha o
dever do Ministério Público proteger a sua aplicação em cumprimento do seu papel
fiscalizador autónomo, pelo que está patente a falta de interesse em agir do
Recorrente, visto que a Douta decisão recorrida não afecta o interesse do
Recorrente, interesse que é constitucional e organicamente delimitado;
5. Uma vez que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais separa as
funções do Ministério Público apenas à promoção e defesa da legalidade fiscal da
representação da Fazenda Pública, se interesse em agir houvesse este seria da
Fazenda Pública, como parte do processo, na defesa dos seus interesses, de como
que o Recorrente é, ainda, parte ilegítima para recorrer;
6. Admitindo, contudo, à cautela e por mero dever legal de prudente patrocínio
que o Ministério Público se equivocou na qualificação do recurso, que, ao invés
de afigurar-se como obrigatório, é, na verdade, facultativo, ainda assim não
deverá ser o mesmo conhecido, pois não obedece aos respectivos pressupostos;
7. O recurso não indica de forma clara quais as normas cuja questão de
constitucionalidade pretende submeter, tão pouco se mostra útil, na medida em
que o fundamento do Douto Acórdão recorrido, antes, a ilegalidade da Circular
19/89, XIII, por violação do disposto no artigo 8.º, n.º 1 da LGT e artigo 3.º,
n.º 3, alínea f) Código do IVA o qual pretendeu regular, é ilegal, pela
regulação ilegítima que faz da incidência do imposto, pela abusiva transposição
de Directiva Comunitária e pela respectiva imposição com eficácia externa
vinculativa aos contribuintes, motivo que por si só sustenta a referida decisão;
8. Assim, o recurso não deve ser admitido por falta de pressuposto processual,
interesse em agir e ilegitimidade da parte, com a sua extinção sem julgamento de
mérito, nos termos do artigo 78.º-A da LTC.
DA EFECTIVA INCONSTITUCIONALIDADE DA CIRCULAR 19/89:
9. O Código do IVA, no seu artigo 3.º, n.º 3, alínea f) in fino, dispõe que se
encontram excluídas do regime daquela alínea as amostras e as ofertas de pequeno
valor, em conformidade com os usos comerciais;
10. A incidência do imposto tem de ser regulada por Lei ou por Decreto-Lei
autorizado.
11. A Circular 19/89, ao limitar a norma de incidência negativa prevista na
alínea f) in fino, do n.º 3, do artigo 3.º do Código do IVA, é inconstitucional
por violação do disposto nos artigo 165.º, n.º 1, alínea i) e no artigo 103.º,
n.º 2, da CRP, ferindo o princípio da separação dos poderes;
12. A Administração Fiscal usurpou as funções do legislador;
13. A Circular 19/89, ao fixar valores e critérios acima dos quais se verifica a
incidência do imposto, está, na medida em que é aplicada com eficácia externa,
aquando das liquidações correctivas do imposto a quem não aja de acordo com a
mesma, em desconformidade com a Lei.
14. A ora Recorrida está tão-somente adstrita ao cumprimento da Lei, pelo que
não está obrigada a obedecer aos critérios administrativos de orientação
genérica para os serviços, com eficácia meramente interna para estes, que, para
mais, a afectam grandemente no desenvolvimento da sua actividade comercial;
15. A Circular 19/89, de 18 de Dezembro é inconstitucional, do ponto de vista
formal, por violação do princípio da legalidade, previsto nos artigos 165.º, n.º
1, alínea i), e 103.º, n.º 2 da CRP e, também, no artigo 8.º, n.º 1 da LGT;
16. E, do ponto de vista material, por violação do princípio da igualdade,
previsto no artigo 13.º da CRP;
17. Deverá pois, concluir-se pela manutenção in totum do Douto Acórdão
recorrido, declarando a inconstitucionalidade da Circular 19/89, tal como vem
sendo decidido pelo Venerando Supremo Tribunal Administrativo em casos
igualmente idênticos ao dos presentes autos.”
5. O Ministério Público respondeu que o presente recurso deve
entender-se como facultativo, contendo a “Circular” uma norma regulamentar
dotada de manifesta “eficácia externa”, a que foi efectivamente recusada
aplicação de modo explícito, pelo que “tem o Ministério Público inquestionável
legitimidade para interpor o dito recurso, radicando o “interesse em agir” na
defesa do ordenamento jurídico objectivo, face à impugnação, constante das
conclusões da alegação, tempestivamente apresentadas, em que claramente se pugna
pela conformidade à Lei Fundamental da norma que integra o objecto do recurso”.
II - Fundamentos
6. A recorrida começa por contestar a legitimidade ao Ministério Público para o
presente recurso, salientando que a “Circular” não corresponde a nenhuma das
hipóteses que o n.º 3 do artigo 72.º da LTC prevê como casos de “recurso
obrigatório” para o Ministério Público
Neste estrito argumento, a recorrente tem razão. O recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade é obrigatório para o Ministério Público quando a
norma cuja aplicação tiver sido recusada, por inconstitucionalidade (ou
ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado), conste de convenção
internacional, acto legislativo ou decreto regulamentar. A “circular” não
integra nenhum destes tipos de acto normativo.
Todavia, isso não significa que proceda a excepção invocada.
O Ministério Público tem o dever funcional (ex lege) de interpor recurso
(recurso obrigatório) nas hipóteses enunciadas nos n.ºs 3 e 5 do artigo 280.º da
Constituição e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC (com as excepções previstas no n.º
4 do cit. artigo 72.º). Mas, além disso, pode interpor recurso em qualquer caso
de desaplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade (recurso
facultativo), sem necessidade de invocar a defesa de um interesse específico,
patrimonial ou de outra natureza, nem de ter assumido a posição de parte no
processo.
Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º da LTC confere ao Ministério
Público legitimidade para a interposição de recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade. É uma legitimidade conferida em termos amplos, como órgão a
que compete defender a legalidade democrática, distinta e autónoma daquela que
assiste às pessoas que porventura represente e que, de acordo com a lei
reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para
dela interpor recurso (alínea b) do n.º 1 do artigo 72.º da LTC).
Esta atribuição de legitimidade tem, desde logo, a limitação que resulta de,
quanto às decisões negativas de inconstitucionalidade e ilegalidade (decisões
que apliquem normas arguidas de violação da Constituição ou de lei de valor
reforçado), a lei restringir, por compreensíveis razões práticas e sistémicas, a
legitimidade à parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou
ilegalidade (n.º 2 do artigo 72.º). Assim, nos recursos ao abrigo da alíneas b)
e f) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, o Ministério Público só pode interpor
recurso se preencher esses dois requisitos: se tiver a qualidade de “parte” no
processo e se tiver suscitado a questão perante o tribunal da causa (cfr.
acórdãos n.º 636/94, 171/95 e 368/97, publicados no Diário da República, II
Série, de 31 de Janeiro de 1995, 9 de Junho de 1995 e 12 de Julho de 1997,
respectivamente).
Mas, relativamente a decisões positivas de inconstitucionalidade (ou
ilegalidade) não há qualquer limitação à previsão genérica de legitimidade do
Ministério Público constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º da LTC. Daí
que, perante decisões de recusa de aplicação de normas – além dos casos de
recurso obrigatório, se a norma recusada for uma daquelas a que se refere o n.º
3 do artigo 72.º –, o Ministério Público possa sempre interpor recurso
facultativo, que assume uma finalidade objectiva de defesa da integridade da
ordem jurídica, segundo a avaliação autónoma que dela faça enquanto órgão ao
qual compete defender a legalidade democrática (artigo 219.º, n.º 1, da
Constituição). Nestas circunstâncias, a legitimidade do Ministério Público para
interpor recurso não depende da defesa de posição concordante com aquela que a
Administração defende ou de coincidência de resultado quanto à prossecução do
mesmo interesse público imediato, tanto podendo redundar em benefício como em
prejuízo da posição sustentada no litígio pelo ente público que nele seja parte.
Destina-se a sustentar o que entenda ser a solução conforme à Constituição, seja
em sentido concordante, seja discordante do juízo de desvalor constitucional que
levou o tribunal a quo à recusa de aplicação da norma em causa.
Acresce que, mesmo que assim não se entenda e se considere que, fora das
hipóteses de recurso obrigatório, a intervenção do Ministério Público está
sempre subordinada às regras gerais de legitimidade para recorrer, em processos
do contencioso tributário sempre teria de reconhecer-se essa legitimidade do
Ministério Público para interpor recurso para o Tribunal Constitucional de
decisões de recusa de aplicação de normas com fundamento em
inconstitucionalidade. Nesse tipo de processos, atendendo à relevância da
prossecução do princípio da legalidade em matéria fiscal (artigo 103.º da CRP),
a lei confere ao Ministério Público, amplos poderes de intervenção,
designadamente o de interpor recurso de decisões judiciais, em defesa da
legalidade ou do interesse público objectivo (cfr. artigos 9.º, 14.º, 113.º,
121.º, 127.º, 151.º, 278.º, 280.º e 289.º do CPPT).
Por outro lado, a circunstância de ter sido invocado o disposto no n.º 3 do
artigo 72.º da LTC, isto é, de o magistrado que interpôs o recurso ter
porventura considerado que estava a isso imperativamente obrigado, é
irrelevante. No Tribunal Constitucional, foram produzidas alegações sem qualquer
referência ao carácter obrigatório do recurso, o que torna inequívoca a vontade
processual de prosseguir com o recurso como facultativo.
Improcede, pois, a questão de ilegitimidade do Ministério Público
suscitada pelo recorrente.
7. Igualmente improcede a objecção de que não há efectiva recusa por
inconstitucionalidade (ou de que concorre para a decisão um duplo fundamento),
na medida em que o fundamento do acórdão recorrido seria a ilegalidade da
Circular n.º 18/89, por violação do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Lei Geral
Tributária e o artigo 3.º, n.º 3, alínea f) do Código do IVA, que pretendeu
regular.
Embora essa pareça ter sido a orientação que a jurisdição fiscal
adoptou noutros casos em que apreciou a mesma questão (cfr., p. ex., acórdão do
Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2008, Proc. n.º 470/2008, in
www.dgsi.pt/jsta), o acórdão recorrido optou por centrar o problema na questão
da inconstitucionalidade da “Circular” e decidir a questão da validade da
liquidação exclusivamente com fundamento no juízo nessa perspectiva formulado.
Do texto que acima se transcreveu resulta claro que o tribunal a quo confinou o
problema à questão de constitucionalidade da “Circular” e, atingida a solução
desta, julgou prejudicada a apreciação das demais questões.
Perante isto, é de concluir que houve efectiva recusa de aplicação
da “Circular” ou, noutra perspectiva, que não é inútil o conhecimento do recurso
por existência de dupla fundamentação.
8. Há, porém, uma outra questão obstativa que cumpre apreciar e para
a qual o recorrente e a recorrida já deram, por antecipação, o seu contributo. É
ela a de saber se o conteúdo prescritivo da referida “Circular” constitui
objecto idóneo para o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
O Ministério Público adiantou (cfr. n.º 2.º da resposta a fls. 481), assim
tornando desnecessária a notificação para se pronunciar sobre a questão, que “a
norma recusada aplicar pelo Supremo Tribunal Administrativo é uma norma
regulamentar, dotada de “eficácia externa”, não constante de “decreto
regulamentar” – constituindo, pois, objecto idóneo do recurso interposto”. E,
neste aspecto da sindicabilidade da “Circular”, parece acompanhado pela
recorrente que a subsume ao conceito funcional de norma para efeitos de recurso
de fiscalização concreta de constitucionalidade (cfr. n.ºs 15.º e 16.º das
contra-alegações, a fls. 434).
Vejamos.
Desde o acórdão n.º 26/85 (publicado no Diário da República, II
Série, de 26 de Abril de 1985) que o Tribunal Constitucional, com vista a
proceder à identificação do objecto idóneo dos processos de fiscalização de
constitucionalidade, vem adoptando um conceito de norma funcionalmente adequado
ao sistema de controlo que a Constituição lhe comete. Cabem neste conceito de
norma os actos do poder público que contenham uma “regra de conduta” para os
particulares ou para a Administração, um “critério de decisão” para esta última
ou para o juiz ou, em geral, um “padrão de valoração de comportamentos”. Mas,
como é de um conceito de controlo finalisticamente ordenado a assegurar o
sistema de protecção jurídica típica do Estado de direito democrático
constitucional que se trata, não basta que o instrumento em causa vincule a
Administração a adoptar, na prática de actos individuais e concretos de
aplicação e enquanto o não alterar, um determinado critério que tenha
estabelecido. É necessário que esse critério seja dotado de vinculatividade
também para o outro sujeito da relação (heteronomia normativa) e constitua um
parâmetro que o juiz não possa deixar de considerar enquanto não fizer sobre ele
um juízo instrumental de invalidade. Se o “critério de decisão” é de origem
administrativa e só vincula no seio do serviço administrativo de que emana, não
há necessidade do tipo de protecção jurídica e de afirmação da supremacia da
Constituição que justifica a intervenção do Tribunal Constitucional.
Ora, um problema frequentemente colocado no direito fiscal é o da
relevância normativa das chamadas orientações administrativas. Trata-se, como
diz Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª ed., pág. 201 (embora afirmando que isso
não lhes retira a qualidade de normas jurídicas):
“[ …] de regulamentos internos que, por terem como destinatário apenas a
administração tributária, só esta lhes deve obediência, sendo, pois.
obrigatórios apenas para os órgãos situados hierarquicamente abaixo do órgão
autor dos mesmos.
Por isso não são vinculativos nem para os particulares nem para os tribunais. E
isto quer sejam regulamentos organizatórios, que definem regras aplicáveis ao
funcionamento interno da administração tributária, criando métodos de trabalho
ou modos de actuação, quer sejam regulamentos interpretativos, que procedem à
interpretação de preceitos legais (ou regulamentares).
É certo que eles densificam, explicitam ou desenvolvem os preceitos legais,
definindo previamente o conteúdo dos actos a praticar pela administração
tributária aquando da sua aplicação. Mas isso não os converte em padrão de
validade dos actos que suportam. Na verdade, a aferição da legalidade dos actos
da administração tributária deve ser efectuada através do confronto directo com
a correspondente norma legal e não com o regulamento interno, que se interpôs
entre a norma e o acto”.
Esses actos, em que avultam as “circulares”, emanam do poder do
poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens
genéricas de serviço e é por isso e só no respectivo âmbito subjectivo (da
relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam directrizes de
acção futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade
administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para
racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indirectamente
possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de
tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que
versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os
tribunais.
A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1
do artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de
circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o
dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de
entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em
determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta
perspectiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa. É
certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o
conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo
valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade
(cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa,
Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 3.ª ed., pág. 344). Mas é ao abrigo
do princípio da boa fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo,
que o conteúdo das circulares prevalece. O administrado só as acata se e
enquanto lhe convier, pelas mesmas razões que justificam que possa invocar
informações individuais vinculativas que o favoreçam (artigo 59.º, n.º 3, alínea
e) e artigo 68.º da LGT).
Consequentemente, faltando-lhes força vinculativa heterónoma para os
particulares e não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que
porventura possuam, as prescrições contidas nas “circulares” da Administração
Tributária não constituem normas para efeitos do sistema de controlo de
constitucionalidade da competência do Tribunal Constitucional, designadamente
para abrir a via de recurso prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
LTC.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do
recurso.
Sem custas.
Lx. 18/XI/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão