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Processo n.º 823/96
1ª Secção Relator – Paulo Mota Pinto Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
Relatório:
1. No Tribunal Judicial da Comarca de Cuba respondeu, em processo comum e para julgamento em tribunal singular, A..., acusado da prática do crime previsto e punido pelo n.º 10 do artigo 31º da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, em conjugação com o disposto nos artigos 16º e 18º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma e com os artigos 29º, 47º e 58º, alínea c), todos do Decreto-Lei n.º
251/92, de 12 de Novembro e, ainda, com o disposto no artigo 5º da Portaria n.º
640-B/94, de 15 de Julho. Submetido a julgamento, veio a provar-se que o ora recorrido se encontrava, no dia 6 de Outubro de 1994, cerca das 22.30 horas, a caçar coelhos e lebres, numa zona de caça associativa da qual não era sócio, 'usando para o efeito os faróis do seu carro com os quais encadeava os animais para posteriormente os abater com a espingarda caçadeira'. Na sentença que, julgando procedente a acusação do Ministério Público, condenou A... na pena de quatro meses de prisão, substituída pelo número correspondente de dias de multa e 60 dias de multa, perfazendo a multa única de 180 dias, à taxa diária de 350$00, num total de 63.000$00, e na interdição do direito de caçar por um período de três anos, o juiz do processo recusou-se a aplicar dois segmentos dispositivos do artigo 31º, n.º 10 da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto. Pode ler-se na decisão recorrida, proferida em 14 de Junho de 1996:
'De acordo com (...) art. 31 n.º 10 da Lei 30/86, a prática da infracção aí prevista, ‘...acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos...’. As penas acessórias dependem da aplicação de uma pena principal – distinguindo-se dos chamados efeitos das penas, porquanto nestes se trata de consequências, necessárias ou pendentes de apreciação judicial, determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória, que não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas (Assento STJ de 29 de Abril de 1992, in, DR I série-A, de 10.7.92) – e a respectiva moldura penal abstracta, obedece aos critérios legais de fixação da medida concreta. Em nosso entender, tal disposição legal, na parte em que estabelece a sanção acessória da interdição do exercício de um direito como efeito automático da condenação pela prática do crime, é inconstitucional, por violação dos arts. 30 n.º 4 da Constituição da República Portuguesa. Também por outro lado, na medida em que estabelece uma medida concreta fixa da sanção acessória a aplicar, sem atender ao suporte axiológico-normativo da culpa concreta que toda a pena tem de ter, viola o princípio da culpa, nulla poena sine culpa, e o disposto nos arts. 1, 13 n.º 1 e 25 da Constituição da República. Nestes termos, de acordo com o art. 207 da Constituição, não deverá ser, nessa parte, aplicada a disposição legal em apreço.' Nestes termos, a decisão recorrida entendeu que o crime praticado pelo arguido era 'punido com pena de prisão de 30 dias a um ano e multa até 200 dias, podendo, nos termos do art. 32º, n.ºs 3 e 4 da Lei 30/86, implicar ainda a interdição do direito de caçar, entre 3 e 5 anos, e a perda dos intrumentos e produtos da infracção a favor do Estado'. Tudo ponderado, foi o arguido condenado numa pena de 4 meses de prisão – que se substituiu pelo número de dias correspondente (120) de multa, e na interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos. Na verdade, considerando ainda a norma ora impugnada, na parte em que estatui sobre a perda dos instrumentos da infracção, escreveu-se nessa decisão:
'Atendendo às circunstâncias concretas do caso, nomeadamente à pequena gravidade das consequências dos factos, a que o objecto que serviu para a prática do crime não põe em perigo, pela sua natureza, a segurança, moral ou ordem pública – e que se encontra apreendido nos autos – à ausência de antecedentes criminais do arguido e por se entender que não existem sérios riscos da prática, pelo arguido, de futuros crimes com utilização do mesmo objecto, entendo que não é de aplicar, in casu, por se mostrar desproporcional, a perda dos instrumentos da infracção.'
2. Desta decisão interpôs o representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cuba recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo dos artigos 70º, n.º 1, alínea a) e 72º, n.º 3 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, o qual foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo. Tal recurso tem como objecto
'a apreciação da inconstitucionalidade do art. 31º, n.º 10 da Lei 30/86 de 27 de Agosto na parte em que estatui a interdição do exercício do direito de caçar por um período de 5 anos, bem como a perda dos instrumentos e produtos da infracção, como efeito automático de condenação pela prática do crime, cuja aplicação foi recusada na douta sentença com fundamento em que viola os art.ºs 1º, 13º, n.º 1,
25º e 30º, n.º 4, da C.R.P.' Nas alegações apresentadas junto deste Tribunal, o senhor Procurador-Geral Adjunto concluiu do seguinte modo:
'1º – Não é inconstitucional a norma constante do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º
30/86, na parte em que estatui a sanção acessória de inibição do exercício do direito de caçar por um período fixo de 5 anos, sem, todavia, precludir ao julgador a valoração do suporte axiológico-normativo da culpa do arguido, como pressuposto da aplicação daquela pena acessória fixa.
2º – É incompatível com a norma constante do n.º 4 do artigo 30º da Constituição da República Portuguesa o estabelecimento no referido n.º 10 do artigo 31º da Lei n.º 30/86, como efeito automático, ‘ope legis’, da condenação por crimes de caça, da perda do direito de propriedade sobre veículo automóvel, pertencente ao arguido e por ele utilizado como instrumento de infracção, sem ponderação judicial das circunstâncias a que alude o artigo 109º do Código Penal vigente. Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, no que se refere ao segmento normativo em que se estatui a sanção acessória de inibição do exercício do direito de caçar de duração legalmente fixada. E confirmar-se a decisão recorrida no que se refere ao juízo de inconstitucionalidade da mesma norma, no segmento em que impõe, sempre e necessariamente, a perda dos instrumentos do crime, pertencentes ao arguido.' O recorrido não contra-alegou.
À data da entrada em vigor da Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, o presente processo encontrava-se em fase de 'vistos', tendo mudado de relator, por força de alteração na composição do Tribunal. Completados os vistos legais, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
A. Objecto do recurso
3. O artigo 31º da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça) pune os 'crimes de caça' (v. o artigo 109º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, que estabelece o regime jurídico do fomento, exploração e conservação dos recursos cinegéticos). O n.º 10 desse artigo 31º, que é a norma que vem posta em crise, dispõe assim:
'Artigo 31º
(Dos crimes e das contra-ordenações)
(...)
10 - A prática do exercício venatório em zonas de regime cinegético especiais, em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos, é punível com prisão de 30 dias a um ano, multa até 200 dias e acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos, bem como a perda dos instrumentos e produtos da infracção.' A decisão recorrida recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, do segmento deste preceito segundo o qual a comissão do acto ilícito nele tipificado acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos, bem como, por a considerar desproporcional, da parte daquela disposição nos termos da qual a prática do crime nela previsto tem sempre como consequência a perda dos instrumentos e produtos da infracção, por isso considerando antes que a condenação poderá implicar ainda a interdição do direito de caçar e a perda dos instrumentos e produtos da infracção a favor do Estado, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 32º do citado diploma. A Lei n.º 30/86 rege no seu artigo 32º sobre a aplicação e agravamento das penas e sanções acessórias, dispondo nos seus n.ºs 3 a 5, que aqui importa referir, do modo seguinte:
'Artigo 32º
(Aplicação e agravamento das penas e sanções acessórias)
(...)
3 - A condenação por qualquer das infracções criminais previstas nesta lei poderá implicar ainda a interdição do direito de caçar e a perda dos instrumentos e produtos da infracção a favor do Estado.
4 - A interdição do direito de caçar pode vigorar por três a cinco anos.
5 - A perda dos instrumentos da infracção envolve a perda de armas e dos veículos que serviram à prática daquela.' Só que, por força da imposição contida na norma do n.º 10 do artigo 30º, a prática do exercício venatório nas condições ali tipificadas, acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de 5 anos e a perda dos instrumentos e produtos da infracção a favor do Estado, tendo sido aquele n.º
10, na referida parte, a norma cuja aplicação foi recusada. O objecto do presente recurso é, pois, a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto: a. por um lado, na parte em nela se estabelece que a comissão do acto ilícito nele tipificado (a prática do exercício venatório em zonas de regime cinegético especiais, em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos) acarreta sempre a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos; e b. por outro lado, no segmento em que nessa norma se prevê que a prática desse ilícito tem sempre como consequência a perda dos instrumentos e produtos da infracção. Importa considerar cada uma destas questões isoladamente, pois que pode ser diverso o respectivo enquadramento jurídico-constitucional. Vejamos então. B) A interdição necessária do direito de caçar por um período de cinco anos
4. A decisão recorrida, suportando-se no artigo 32º, n.º 4, da Lei n.º 30/86, impôs ao arguido a inibição do direito de caçar por um período de 3 anos, apenas rejeitando, em bom rigor, a parte da norma do artigo 31º, n.º 10 que faz sempre decorrer da condenação a imposição obrigatória da interdição do exercício cinegético com duração temporal fixa de cinco anos, automaticamente decorrente da lei. Cabe perguntar se o segmento normativo do artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, ora em apreço, ao prescrever a necessária interdição do direito de caçar por um período fixo de cinco anos, à revelia de uma concreta avaliação jurisdicional das circunstâncias do caso, colide com algum preceito constitucional, nomeadamente com a regra contida no artigo 30º, n.º 4 e com os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Existirá aqui, efectivamente, violação de norma ou princípio constitucional? Designadamente, será violada a norma que proíbe que a lei ligue como efeito necessário a uma pena a perda de direitos civis, políticos ou profissionais
(artigo 30º, n.º 4, da Constituição)?
5. A sanção prevista no segmento em causa do artigo 31º, n.º 10 da Lei da Caça
é, literalmente, a interdição de um direito, que é imposta obrigatoriamente e com uma duração fixa, como consequência da prática do ilícito previsto nesse artigo. Tratar-se-á aqui de um efeito da pena ou de uma pena acessória? As sanções penais acessórias são aquelas que só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal. De um ponto de vista puramente teorético distinguem-se, pois, tais sanções dos chamados efeitos das penas, que são consequências determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória; e, em particular, distinguem-se das penas acessórias por não assumirem a natureza de verdadeiras penas, por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas. A qualificação precisa como pena acessória ou efeito da pena depara-se, porém, com as dificuldades resultantes da verificação, a este propósito, na evolução legislativa e na tradição doutrinal tanto portuguesa, como estrangeira, da existência de 'uma insegurança e uma confusão – não meramente terminológicas! – quase inextricáveis' – assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito penal português. As consequências jurídicas do crime, Lisboa, 1993, § 86, referindo que
'existe quem, pondo na sombra o conceito de «efeito das penas», considere que são penas acessórias todas as que de direito se seguem à condenação, como efeitos penais desta. Outros contrapõem as penas acessórias, que se acrescentam automaticamente (ope legis) à pena principal, às penas complementares, as quais, mesmo quando obrigatórias, têm de figurar expressamente na condenação. A orientação mais difundida é, porém, ainda, aquela que contrapõe o caracter automático ou ope legis da produção dos efeitos da pena à exigência de que a pena acessória – ainda quando obrigatória – seja pronunciada na sentença condenatória; e neste sentido se formou largo consenso na doutrina portuguesa, dado para mais o disposto no art. 83.° do CP de 1886. O CP de 1982 parece ter querido considerar como penas acessórias os efeitos das penas, a cuja produção retirou, de resto, automaticidade e mesmo carácter necessário; ao lado daqueles prevê, porém, a possibilidade de se produzirem, por força da lei, efeitos de certos crimes (art. 69.°-2).' As penas acessórias e os efeitos das penas encontram-se historicamente ligadas à infamia da legislação medieval e às suas penas da honra, com incapacidades, inabilitações e restrições de outra e diversa natureza que em regra atingiam o delinquente mesmo após o cumprimento da pena principal (v., em perspectiva histórica, J. Figueiredo Dias, ob. cit., §90, António Manuel Almeida Costa, O registo criminal, Coimbra, 1985, pág. 7, nota 6, págs. 40 e segs.), pensando-se com elas conseguir uma intimidação eficaz da generalidade das pessoas. Considerando-se, hoje, porém, de forma generalizada, que importa retirar aos instrumentos de reacção jurídico-penal todo o efeito jurídico infamante ou estigmatizante – dessocializador e, portanto, criminógeno – que acresça ao efeito de desqualificação social que já por sua mera existência lhes cabe, nem por isso as penas e efeitos acessórios têm desaparecido das legislações, mesmo das mais modernas. Proíbe-se, porém, que tais efeitos acessórios decorram por necessidade da aplicação de penas de certa natureza, e considera-se que tais efeitos desempenham uma função preventiva adjuvante da pena principal, que também é dirigida à consideração da perigosidade do agente. O nosso legislador de 1982, como se disse – v. o capítulo III ('Penas acessórias e efeitos das penas') do título III ('Das consequências jurídicas do facto') da Parte Geral do Código Penal, designadamente, o artigo 65º, n.º 1 –, parece ter considerado como penas acessórias alguns dos tradicionalmente chamados efeitos das penas (ou «efeitos penais da condenação»), como a demissão e a suspensão temporária da função pública e a interdição (incapacidade) de exercício de certas profissões (após a reforma de 1995, a proibição e a suspensão do exercício de função, autonomizando-se a proibição de conduzir veículos automóveis; v. sobre a qualificação desta como medida de segurança ou pena acessória, anteriormente a 1995, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 1992, Diário da República, 1ª série-A, n.º 157, de 10 de Julho de
1992, e, em anotação, Pedro Caeiro, 'Qualificação da sanção de inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo 61º, n.º 2, alínea d), do Código da Estrada', Revista portuguesa de ciência criminal, 1993, págs. 553-72). Como se disse, as penas acessórias distinguem-se das penas principais uma vez que a condenação nestas é condição necessária (embora não suficiente) da sua aplicação, sendo, porém, ainda necessário que o juiz comprove, perante o facto, a existência de uma justificação material para a sua aplicação. Dentro das sanções acessórias, parece, porém, poderem distinguir-se ainda dois tipos: as penas acessórias e as medidas de segurança acessórias, consoante visem censurar especialmente o arguido pelo circunstancialismo que envolve o crime cometido, por forma a justificar a privação de certo direito, faculdade ou posição relacionados com a sua prática, ou reagir contra a perigosidade manifestada pelo agente (assim, P. Caeiro, anotação cit., págs. 566-7).
6. Na norma em crise no presente processo não se encontra qualquer qualificação para a sanção ora em causa – a necessária interdição de caçar por um período de cinco anos –, efectuada pelo próprio legislador. Tal falta não impede, todavia, que se devam considerar para efeitos de qualificação os pressupostos de aplicação da sanção e as suas finalidades. Não se encontra qualquer elemento que permita a qualificação da sanção em questão como uma medida de segurança. Na verdade, a imposição da sanção de interdição de caçar não aparece ligada, pelo preceito legal, a qualquer pressuposto de prevenção especial do agente, e, designadamente, a qualquer qualidade de perigosidade deste. Aliás, a duração da interdição é fixa, não variando de acordo com os pressupostos e finalidades de prevenção especial caracterizadores da medida de segurança, e, nos termos da lei, a sua imposição tem lugar 'sempre'. A caracterização como medida de segurança suporia, pois, que se pudesse aceitar que a prática dos ilícitos previstos no artigo 31º, n.º 10 da Lei da Caça pode legitimamente fundar uma presunção iuris et de iure de perigosidade do agente, e pela duração legalmente prevista. A imposição obrigatória – nos termos da letra do artigo 31º, n.º 10, em causa – da interdição do direito de caçar também não aparece, aliás, ligada a quaisquer pressupostos ou finalidades específicos das penas. Acresce que tal pena acessória seria, não só de imposição obrigatória, mas fixa, sem variar em conformidade com os pressupostos e fins típicos da pena (designadamente, de acordo com a culpa do agente e as necessidades de afirmação contrafáctica dos bens lesados pelo crime – de prevenção geral 'de integração'). Sendo a imposição da sanção em causa obrigatória, e o seu montante fixo, independentemente da consideração das finalidades específicas das penas e das medidas de segurança, há, pois, que considerar a possibilidade da sua qualificação como efeito da pena – aliás, literalmente, a interdição de caçar aparece cominada como um efeito necessário do crime (e não da pena principal imposta). Independentemente da concreta qualificação da interdição de caçar prevista no artigo 31º, n.º 10, da Lei da Caça como efeito da pena ou efeito do crime (ou, até, medida de segurança fundada numa presunção de perigosidade), há que confrontá-la com a proibição contida no artigo 30º, n.º 4, da Constituição.
7. Dispondo sobre os limites das penas e das medidas de segurança, essa norma da Constituição da República prescreve que 'nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos'. Esta proibição, introduzida pela revisão de 1982, veio a ser reproduzida no artigo 65º do Código Penal de 1982 – artigo 65º, n.º 1, do Código actual –, e já constava do Projecto do Código Penal de 1963 da autoria do Prof. Eduardo Correia onde, no artigo 76º (artigo 77º após a revisão ministerial), se prescrevia que
'nenhuma pena implica automaticamente a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos'. Através dela deu-se guarida, ao nível da própria lei fundamental, às vozes dos mais reputados penalistas que, em consonância com a doutrina jurídico-criminal mais evoluída, vinham pugnando pela eliminação total dos chamados 'efeitos necessários das penas'. A favor desta eliminação argumentava-se com o facto de esses efeitos representarem um obstáculo à realização de um fim essencial das penas - o da ressocialização do delinquente (cfr. as tomadas de posição do autor do Projecto, e também do Prof. Ferrer Correia na 25º sessão da Comissão Revisora, de 2 de Abril de 1965), mas também, e sobretudo, com o carácter infamante e estigmatizante que tais efeitos inelutavelmente implicam (cfr. Eduardo Correia, 'As grandes linhas da reforma penal', Jornadas de Direito Criminal, p. 29 e Figueiredo Dias, 'Os novos rumos da política criminal e o direito penal do futuro', separata da Revista da Ordem dos Advogados, 1983, págs. 31 e 34). Aquando da aprovação, pela Assembleia da República, da norma do n.º 4 do artigo
30º da Constituição, idêntico pensamento esteve por certo presente no espírito dos seus autores como bem se deduz, além do mais, das palavras então proferidas pelo Deputado Nunes de Almeida: 'a aprovação do n.º 4 vem obviar algumas disposições, ainda hoje vigentes na nossa lei penal, de extraordinária violência, como eram as que envolviam, como efeito necessário de certas penas, a perda de alguns direitos. Designadamente, e como exemplo, lembro o caso de certas infracções criminais cometidas por funcionários públicos [...] que envolviam necessariamente e como efeito acessório a demissão' (cfr. Diário da Assembleia da República, 1ª série, de 11 de Junho de 1982, págs. 4176 e segs.). Aliás, tudo o que vem de dizer-se tem sido referido em diversos arestos deste Tribunal (cfr. por todos, os acórdãos n.ºs 16/84, 165/86 e 353/86, Diário da República, respectivamente, II série, de 12 de Maio de 1984, I série, de 3 de Junho de 1986 e II série, de 9 de Abril de 1987), sublinhando-se aí, designadamente, que 'no fundo, o n.º 4 do artigo 30º da Constituição deriva, em linha recta, dos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de direito democrático que estruturaram a nossa lei fundamental, ou sejam: os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1º); e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2º)'. E a seguir ajuntou-se que 'daí decorrem os grandes princípios constitucionais de política criminal: o princípio da culpa; o princípio da necessidade da pena ou das medidas de segurança; o princípio da legalidade e o da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal; o princípio da humanidade; e o princípio da igualdade', para se concluir assim:
'Ora, se da aplicação da pena resultasse, como efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, far-se-ia tábua rasa daqueles princípios, figurando o condenado como um proscrito, o que constituiria um flagrante atentado contra o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana'. A perda de direitos civis, profissionais e políticos deixou, assim, por imperativo constitucional, de poder ter lugar como efeito automático de determinadas penas, e, – pelo menos para uma certa perspectiva – devem entender-se compreendidas no âmbito desta proibição constitucional não só a perda desses direitos como efeito necessário de certas penas, mas também a sua perda automática por via da condenação por determinados crimes (cfr. sobre este específico ponto, Mário Torres, Suspensão e Demissão de Funcionários ou Agentes como efeito de Pronúncia ou Condenação Criminais, Revista do Ministério Público, ano 79, n.ºs 25 e 26, pp. 111 e 126, respectivamente e Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 284/89 e 359/93, o primeiro publicado no Diário da República, II série, de 12 de Junho de 1989, e o segundo inédito). Segundo tal perspectiva, portanto, não pode considerar-se relevante a distinção, que por vezes parece resultar da formulação legal, entre efeitos da pena e efeitos do crime, pois tais efeitos automaticamente ligados por lei a certos crimes 'supõem naturalmente a condenação – são inevitavelmente «efeitos da condenação» – e a consequente aplicação de uma pena', e 'por esta via (...) tornam-se efeitos da pena', não só sendo abrangidos pelo teor literal da proibição, como, sobretudo, poderiam implicar que se ligassem automaticamente à condenação – e ainda que não por força da pena, mas do crime – 'efeitos penais tão estigmatizantes, dessocializadores e criminógenos como os efeitos das penas verdadeiros e próprios'. A justificação constitucional do artigo 30º, n.º 4 seria, caso contrário, posta em causa pelo simples uso pelo legislador de fórmulas como as de que «quem praticar o crime x é punível em y e incorre
(automaticamente) no efeito y» (assim, J. Figueiredo Dias, ob. cit., § 200 – pese embora negue, no § 198, que a proibição do artigo 30º, n.º 4, da Constituição da República derive do princípio do Estado de Direito democrático). E o mesmo se deveria dizer para a hipótese de uma eventual qualificação da interdição de caçar em questão como uma medida fundada numa 'presunção de perigosidade' iuris et de iure, que prescindiria da sua averiguação concreta por parte do tribunal – estaríamos, então, perante uma interdição necessária cuja produção terá de ser enquadrada – senão directamente na letra, certamente no espírito – na proibição constitucional, sem que seja decisivo também aqui, se a este efeito cabe a designação formal de 'efeito da pena' ou 'medida de segurança acessória' (assim, para a medida de inibição da faculdade de conduzir, P. Caeiro, ob. cit., pág. 569). Ainda nessa perspectiva, e como se salienta na doutrina, o sentido do artigo
30º, n.º 4, da Constituição, em conformidade com a respectiva justificação, seria, pois, o de 'negar ao legislador ordinário a possibilidade de criar um sistema de punição complexa (...), no seio do qual a lei pode fazer corresponder automaticamente à prática de determinado crime (ou à condenação em certa pena) outras sanções penais para além da pena principal; ao invés, fixou-se o princípio de que a aplicação de qualquer sanção penal requer a mediação do juiz', mesmo que a lei preveja várias sanções para a prática de um só crime
(idem, págs. 565-6).
8. Posto isto, já se deixa ver que – para quem partilhar as conclusões que se enunciaram – a sanção de interdição de caçar por um período de cinco anos, que, nos termos da norma em causa, a prática do exercício venatório em zonas de regime cinegético especiais, em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos, acarreta sempre, não poderá ser considerada conforme com a norma da Constituição da República cujo sentido se vem de descrever. Será assim para quem entenda que tal fórmula implica a imposição ope legis da sanção de interdição de caçar. Para além disso também o será para quem entenda que, seja ou não a interdição de caçar um efeito automático – independente do seu decretamento na sentença condenatória – da pena ou da prática do crime, o que é certo é que é um efeito necessário, pois a imposição da interdição de caçar é obrigatória, sem estar dependente de uma mediação judicial ponderadora das circunstâncias do caso, nem quanto à eventualidade da sua imposição (no seu an), nem na sua medida (no seu quantum). Ora, segundo a posição enunciada no ponto anterior, terá sido justamente esta possibilidade de fazer ligar à condenação por um crime – por mor deste ou da pena – necessariamente outras sanções penais para além da pena principal que o legislador constitucional pretendeu excluir com a proibição do artigo 30º, n.º
4, a qual, fundando-se já – segundo a posição que este Tribunal tem adoptado –
'nos primordiais princípios definidores da actuação do Estado de direito democrático que estruturaram a nossa lei fundamental, ou sejam: os princípios do respeito pela dignidade humana (artigo 1º); e os do respeito e garantia dos direitos fundamentais (artigo 2º)', representou igualmente a elevação à dignidade constitucional do princípio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante, e, por conseguinte, dessocializador e criminógeno, das sanções penais. A norma em causa não poderia, pois, fazer corresponder à prática do crime de caça em causa (ou à condenação em certa pena), ao lado da pena principal, a imposição necessária da sanção penal de interdição do direito de caçar, excluindo a possibilidade de o juiz comprovar, perante o facto, se existe ou não uma justificação material para a sua aplicação.
9. Mesmo, porém, quem não partilhe a posição enunciada quanto ao alcance do disposto no artigo 30º, n.º 4, da Constituição, não é por tal facto conduzido a afirmar a conformidade constitucional da norma em apreço. Pode, é certo, perguntar-se se tal norma não é susceptível de ser interpretada no sentido de permitir que o juiz pondere se deve ou não aplicar a pena de interdição de caçar (ponderação, obviamente, dirigida especificamente à produção deste efeito acessório, e que não se satisfaz com a ponderação que funda a aplicação da pena principal, uma vez que o que está em causa é justamente a legitimidade de, condenado o arguido por esta, aquele efeito ser de imposição necessária). Para mais, considerando que a decisão recorrida concluiu pela efectiva aplicação ao arguido de uma sanção de interdição de caçar, apenas não a fixando em cinco anos (e antes em três). Estaria, assim, em causa, na norma desaplicada, apenas a fixidez da sanção de interdição do direito de caçar legalmente cominada, e não a sua necessária imposição. Nem por esta via, porém, se conseguiria salvar a conformidade constitucional do segmento normativo em questão. Na verdade, mesmo quem não partilhar a interpretação do artigo 30º, n.º 4, da Constituição que se enunciou nos pontos anteriores concluirá pela inconstitucionalidade da norma em questão devido à fixidez da sanção de interdição de caçar que ela comina. A Constituição define no artigo 29º os princípios básicos em matéria de punição criminal e de aplicação de medidas de segurança, princípios esses que, segundo o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 192), são os seguintes:
'(a) só a lei é competente para definir crimes (bem como os pressupostos das medidas de segurança) e respectivas penas (bem como as medidas de segurança) - princípio da legalidade; (b) a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança) - princípio da tipicidade; (c) a lei não pode criminalizar factos passados (nem dar-lhes relevância para efeitos de medida de segurança) nem punir mais severamente crimes anteriormente praticados (ou aplicar medidas de segurança mais gravosas a pressupostos anteriormente verificados) - princípio da não retroactividade'. E, especificamente, no que respeita aos princípios constitucionais de política criminal, deverão ser observados os princípios da culpa, da necessidade da pena e das medidas de segurança, da legalidade e da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal, da humanidade e da igualdade (cfr. José Sousa e Brito, 'A lei penal na Constituição', Estudos sobre a Constituição, Lisboa, 1978, págs. 199 e segs.). Este mesmo autor (ob. cit., pág. 247), a propósito da reserva de lei, assinala que a diferenciação nos critérios de determinação dos tipos criminais e das reacções criminais tem de ser feita por aplicação do princípio da proporcionalidade, nomeadamente entre a gravidade da sanção penal e o grau de garantia, princípio que implica, combinado com outros princípios relevantes, que o limite máximo da sanção penal aplicável tenha de constar de lei formal. Ora, ainda que a norma em questão pudesse ser interpretada no sentido de permitir uma ponderação concreta sobre a imposição da sanção de interdição de caçar (sobre o seu 'se'), sempre teria de confrontar-se a invariabilidade do seu quantum com a exigência constitucional de proporcionalidade das sanções penais.
10. Que o princípio da legalidade criminal não implica a determinação ex lege da pena concreta a aplicar, é ponto que não oferece hoje dúvidas – hoje todos os sistemas penais da nossa área cultural estabelecem em geral um sistema de penas variáveis, entre um mínimo e um máximo mais ou menos amplo (v. Anabela Miranda Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, Coimbra,
1995, esp. págs. 54 e segs.). O problema com que estamos agora confrontados é antes de certa forma o inverso – o de saber se a imposição de uma pena fixa, determinada ne varietur pela lei, se conforma com o princípio da igualdade e com o princípio da proporcionalidade a que deve obedecer a imposição de sanções penais. Este Tribunal reconheceu, no Acórdão n.º 83/91 (publicado no Diário da República, II série, de 30 de Agosto de 1991), que, em tese geral, os princípios da igualdade e da proporcionalidade podem implicar o juízo de que a cominação de penas fixas para certo crime por uma concreta norma jurídica seja tida como materialmente inconstitucional. A impossibilidade de individualização da sanção penal em conformidade com o caso concreto – para além, aliás, de ser duvidoso que represente uma medida verdadeiramente 'redutora da complexidade' (v. José de Faria Costa, O perigo em direito penal, Coimbra, 1992, pág. 113, nota 72, salientando que 'a individualização da pena, com tudo o que congrega em seu redor, é ela própria expressão de individualidade, outros dos vectores fundamentais das sociedades modernas, cujo não reconhecimento redundaria em potenciação do conflito') – afigura-se, pois, em princípio, conflituante com os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade. A inconstitucionalidade, em princípio, das penas fixas, por violação da exigência de que a reacção penal seja objecto de uma adequação ou individualização proporcional é igualmente afirmada, por exemplo, na jurisprudência constitucional italiana, salientando-se, na sentença da Corte Costituzionale de 14 de Abril de 1980 (in Giurisprudenza Costituzionale, I,
1980, pág. 352), porém, que se 'em linha de princípio, previsões sancionatórias rígidas não estão em harmonia com o ‘desenho constitucional’ do sistema penal', tal inconstitucionalidade pode, caso a caso, ser superada 'na condição de que, pela natureza do ilícito sancionado e pela medida da sanção prevista, esta
última apareça razoavelmente ‘proporcionada’ relativamente à toda a gama de comportamentos recondutíveis ao específico tipo de crime'. E a acusação de inconstitucionalidade é igualmente estendida na doutrina às penas acessórias – assim, Adelmo Manna, 'Sulla illegitimtà delle pene accessorie fisse', in Giurisprudenza..., cit., I, 1980, págs. 910 e segs.
11. No citado Acórdão n.º 83/91, o Tribunal Constitucional considerou, porém, que não se poderia extrair a conclusão de que todas as chamadas 'penas fixas' sejam, necessariamente, desprovidas de legitimidade constitucional, importando determinar, antes de tudo, qual o exacto sentido que deve ser atribuído àquela locução. Disse-se então que:
'o estudo do direito penal comparado mostra que a expressão pena fixa é utilizada com sentidos diversos: num sentido mais forte, a expressão pena fixa é utilizada para caracterizar uma pena prevista na lei quanto a certo crime, a qual tem de ser aplicada pelo juiz rigidamente desde que se venha a provar que o arguido agiu ilícita e culposamente, isto é, que é imputável e que não se verifica nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou culpabilidade. Neste sentido o poder do juiz limita-se a condenar ou a não condenar o arguido. Devendo condená-lo, terá de lhe aplicar a pena prevista na lei, sem possibilidade de qualquer graduação. Num sentido mais fraco da expressão, pode falar-se ainda de pena fixa quando a norma estatuidora da sanção estabelece uma pena determinada, não graduável, em princípio, pelo juiz, mas não exclui que este último possa recorrer a institutos de natureza geral, como os da atenuação especial da pena ou da dispensa da pena, para adequar a sanção à personalidade do agente e às circunstâncias apuradas quanto à prática da infracção. Neste último sentido mais fraco, a pena só tendencialmente se pode dizer que é fixa. O juízo de legitimidade constitucional relativamente a cada um destes casos não tem necessariamente de ser o mesmo'. E, considerando depois o direito criminal de um ponto de vista sistemático, geral ou global, recordou que:
'historicamente, certas concepções ideológicas sustentaram que o princípio da legalidade e as finalidades de prevenção geral do legislador deveriam conduzir a um sistema de penas fixas para certos tipos de crimes, que não levaria em conta nunca a culpabilidade do agente (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, Coimbra, 1963, com colaboração de Figueiredo Dias, I, págs. 48 e segs. e II, págs. 315 e segs.). A evolução histórica posterior, em especial a partir do Código Penal francês de 1810, levou a que as legislações admitissem, com maior ou menor extensão, sistemas de individualização judiciária da pena, de forma que o juiz pudesse atender ao diferente grau de culpabilidade do agente dentro da moldura legal que estabelecia o máximo e o mínimo da pena para cada um dos tipos criminais (nesta medida, tais soluções distinguiam-se claramente das acolhidas nos regimes anteriores às revoluções liberais, nomeadamente na França anterior à Revolução de 1789, de completa discricionariedade judicial na aplicação de penas). Neste quadro global ou geral do direito criminal, pode admitir-se sem esforço que, como refere Figueiredo Dias, uma ‘responsabilização total do legislador pelas tarefas de determinação da pena conduziria à existência de penas fixas e, consequentemente, à violação do princípio de culpa e (eventualmente também) do princípio da igualdade’ (Direito Penal 2 - Parte Geral. As Consequências Jurídicas do Crime, policop., Coimbra, 1988, p. 222; cfr., no mesmo sentido, Eduardo Correia, Anabela Miranda Rodrigues e A. M. Almeida Costa, Direito Criminal III - (1), policop., Coimbra, 1980, pp. e ss.). Pode ser, eventualmente, menos adequado transpor a aplicação destes princípios gerais de um plano legislativo global ou geral (do Código Penal ou de uma lei quadro do direito penal económico, por exemplo) para o de uma concreta legislação avulsa, nomeadamente no campo do direito penal económico, em que podem avultar certas finalidades conformadoras no domínio da intimidação especial, justificando, por exemplo, que só uma ‘particular quantidade de pena permitida pela culpa’ possa contribuir ‘para a transformação necessária das representações e da consciência comunitária, face a actividades económicas’
(formulações de Figueiredo Dias, ‘Breves considerações sobre o fundamento, o sentido e a aplicação das penas em direito penal económico’, in Direito Penal Económico, CEJ, Coimbra, 1985, p. 40). No domínio do direito penal económico ou do direito penal de defesa do meio ambiente e da ecologia, pode aceitar-se, em casos pontuais e para certo tipo de infracções a cominação de penas fixas, ainda que o juiz possa sempre recorrer aos meios gerais de suspensão da pena ou mesmo de dispensa da pena. Nessa medida, só tendencialmente as penas serão fixas.' Especificamente no que toca ao confronto das penas fixas com o princípio da culpa, pode ler-se no mesmo aresto:
'Por último, também para aqueles que sustentam que está constitucionalmente consagrado o princípio da culpa em matéria penal, tão-pouco se pode dizer que a cominação de penas fixas, com o sentido de tendencial fixidez atrás exposto, possa conduzir a uma «irremissível violação do princípio da culpa», de novo se utilizando uma expressão de Figueiredo Dias atrás transcrita. É que, já se viu, continua a reconhecer-se ao juiz uma apreciável intervenção na adequação em concreto da sanção ao agente, em função dos resultados apurados no julgamento, admitindo-se que seja determinada a atenuação especial da pena ou até a dispensa da pena. No caso de ser de condenar, não tem necessariamente de lhe aplicar uma sanção rigidamente fixa, como mero efeito da lei (remete-se para a jurisprudência do Tribunal sobre efeitos necessários das penas, em conexão com o n.º 4 do artigo 30º da Constituição, nomeadamente para os Acórdãos n.ºs 16/84,
127/84, 165/86, 282/86, 353/86, 255/87, 284/89 e 224/90, achando-se publicados os dois primeiros em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., pp. 367 e segs., e 4º vol., pp. 403 e segs., o terceiro no Diário da República, 1ª série, n.º 126, de 3 de Junho de 1986, o quarto na 1ª série, n.º 260, de 11 de Novembro de 1986, o quinto na 2ª série, n.º 83, de 9 de Abril de 1987, o sexto na 2ª série, n.º 183, de 10 de Agosto de 1987, o sétimo na 2ª série, n.º 133, de 12 de Junho de 1989, e o oitavo na 1ª série, n.º 182, de 8 de Agosto de 1990). Se é verdade que, em linha de princípio, se deve preferir um sistema de mobilidade das penas cominadas para cada tipo criminal, entre um mínimo e um máximo fixados na lei, de forma que o juiz possa graduar a pena à gravidade da infracção e à culpabilidade do agente, não se pode dizer que o estabelecimento de uma pena tendencialmente fixa prive de todo em todo o juiz de levar em conta a individualidade concreta do agente e as específicas circunstâncias de cada caso, como atrás se viu. Também se pode dizer que não é violado o princípio da culpa, dando por suposto que o mesmo tem consagração constitucional.'
12. Ora, na situação em apreço, poderá reconhecer-se que a imposição da interdição do direito de caçar por um período de 5 anos se acha associada à comissão de um crime que pressuporá um elevado grau de censura ético-jurídica – prática do exercício venatório em zona de regime cinegético especial com o emprego de meios não permitidos (de noite e com a utilização dos faróis de um veículo automóvel). E não é de excluir, ainda, que a prática deste crime ocasione perigos e mesmo danos assinaláveis, para bens jurídicos ambientais e mesmo pessoais – sendo, porém, que uma análise da personalidade do autor poderá ou não confirmar a perigosidade do agente no caso concreto. Porém, não pode aceitar-se o argumento de que, interpretando a norma em causa como prevendo uma pena apenas 'tendencialmente fixa', ela não viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, do qual decorre que a gravidade das penas
(e das medidas de segurança) há-de ser proporcional à gravidade das infracções, encaradas sob o ponto de vista, respectivamente, da culpa e das necessidades de prevenção geral (e, para aquelas medidas, da prevenção especial, perante a perigosidade do agente). Antes do mais, não se vê como se possa – para o enquadrar na linha de orientação jurisprudencial do citado Acórdão n.º 83/91 – interpretar o segmento normativo do artigo 31º, n.º 10, da Lei n. 30/86, que impõe como 'sanção acessória' do crime ali previsto a interdição do direito de caçar por um período de cinco anos, no sentido de permitir que o juiz recorra a institutos de natureza geral, como o da atenuação especial da pena, para adequar a sanção ao agente e às circunstâncias apuradas quanto à prática da infracção.
É que tal possibilidade de atenuação especial, além de não estar prevista nessa norma para a interdição do direito de caçar (que prevê antes a imposição
'sempre' de uma interdição de cinco anos), não parece sequer adequar-se, nos termos em que se encontra prevista em geral, à sanção da interdição de caçar – assim, no artigo 73º do Código Penal (na redacção posterior à Lei n.º 65/98, de
2 de Setembro – na versão originária era o artigo 74º) referem-se os termos de atenuação especial das penas de prisão e de multa, antes do mais, referidos aos limites máximo e mínimo da respectiva moldura. E nem se diga que o julgador pode valorar a culpa do agente na decisão sobre a aplicação da pena de interdição do direito de caçar, pois o que está agora em causa é antes a lei não possibilitar que essa pena seja em concreto graduada, dentro de limites mínimo e máximo, de acordo com uma específica culpa do agente. O mecanismo afigura-se, pois, inapto a dar conta da necessária adequação da pena em concreto às circunstâncias a considerar – à culpa do agente e às necessidades de prevenção (v. o artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, na redacção posterior a
1995) –, não podendo recorrer-se a ele como sucedâneo da previsão de uma moldura penal. Trata-se de uma atenuação especial que apenas pode ter lugar – para além das hipóteses expressamente previstas na lei, que não é o caso, como vimos – quando, nos termos do artigo 72º, n.º 1 do Código Penal, 'existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena' (itálico aditado – v., sobre os pressupostos da atenuação especial, J. Figueiredo Dias, Direito penal português, cit., §§ 449 e segs.). Acresce que não se dispensa na lei a determinação de uma moldura penal de atenuação especial (ob. cit., § 458), e que, como se disse, os termos em que esta atenuação especial tem lugar se acham previstos na lei apenas para as penas de prisão e multa. A mesma inadequação se patenteia, aliás, no recurso ao instituto da dispensa de pena, o qual (a ser aplicável à pena em questão), além de, nos termos previstos na lei geral (artigo 74º do Código Penal, na redacção actual), se ligar a uma determinada pena máxima de prisão ou de multa, e de apenas permitir dispensar o agente de pena (e não propriamente graduar esta de acordo com as circunstâncias do caso), se afigura, em todo o caso, inadequado a, ultrapassando a fixidez da pena em abstracto cominada na lei, permitir a adequação da pena de interdição de caçar à culpa e às exigências de prevenção no caso concreto. A admissão de que o recurso a estas possibilidades, previstas na lei geral – de atenuação especial e de dispensa de pena –, bastaria para permitir a graduação, no caso concreto, de uma pena prevista na lei como de duração fixa, assim a tornando proporcional às circunstâncias deste, se coerentemente seguida, conduziria, aliás, à conclusão da desnecessidade de previsão de quaisquer molduras penais abstractas, satisfazendo-se as exigências dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade através daqueles institutos gerais. Tal conclusão tem, porém, de ser rejeitada, afigurando-se evidente a inadequação destes institutos como sucedâneos da possibilidade de determinação concreta da pena, proporcionalmente às circunstâncias do caso, dentro dos limites mínimo e máximo de uma moldura penal.
13. Deve, pois, reconhecer-se que a cominação, pela norma em análise, de uma pena fixa, de quantum legalmente determinado sem possibilidade de individualização de acordo com as circunstâncias do caso concreto, não se acha em conformidade com a exigência de que à desigualdade da situação concreta (do facto cometido e das suas 'circunstâncias') corresponda também uma individualização da sanção penal que lhe é aplicada, e que esta seja proporcional às circunstâncias relevantes de tal situação concreta. Os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade implicam, na verdade, o juízo de que a cominação de uma pena de interdição do direito de caçar invariável de cinco anos para o 'crime de caça' do artigo 31º, n.º 10 da Lei n.º 30/86 é materialmente inconstitucional. Aliás – repete-se –, não pode deixar-se influenciar tal conclusão pela circunstância de estarmos, no caso concreto, perante uma sanção acessória, cuja imposição depende da de outra, principal, pois também as penas acessórias devem ser consideradas penas, partilhando o seu sentido, finalidades e limites.
É justamente para possibilitar a individualização da pena em conformidade com os princípios constitucionais referidos, aliás, que o Código Penal prevê uma
'moldura', entre um mínimo e um máximo, para as penas acessórias de proibição de exercício da função e de proibição de conduzir veículos motorizados, e que idêntica previsão se contém na própria Lei da Caça, no artigo que, para se poder levar a cabo tal individualização, acabou por ser aplicado ao caso concreto pelo tribunal a quo – o artigo 32º, n.º 4. Nem sequer a consideração – como se viu, efectuada pela jurisprudência constitucional italiana – de toda a gama de comportamentos susceptíveis de serem reconduzidos ao artigo 31º, n.º 10, da Lei da Caça permitiria, aliás, considerar que a sanção acessória de interdição de caçar por um período de cinco anos respeita as exigências de proporcionalidade. Pode, desde logo, duvidar-se da legitimidade do reconhecimento em abstracto da proporcionalidade entre tal sanção e todo o tipo de comportamentos e circunstâncias que podem ser enquadradas na norma em causa. Mesmo que tal reconhecimento fosse possível, porém, ele não seria de perfilhar no caso concreto, considerando que na norma em causa se enquadra sempre, por exemplo, a caça em zonas de regime cinegético especial ou com meios não permitidos, para as quais, dadas as circunstâncias do caso concreto, pode não se justificar a imposição ao agente sempre de uma sanção de interdição com a mesma duração de cinco anos (mas sim de menor ou maior duração).
14. Refira-se, ainda, que a conclusão de inconstitucionalidade a que se chegou não é também contrariada por uma eventual qualificação da interdição de caçar como 'medida de segurança', e mesmo que se entendesse que a sua imposição está dependente da verificação da perigosidade do agente em concreto. Na verdade, tratando-se de uma medida cuja duração é abstractamente fixada de forma invariável, mesmo que a existência de perigosidade pudesse ser considerada em concreto como pressuposto para a sua aplicação (o que – diga-se – não parece ser consentido pela letra da disposição em causa, que preceitua que a prática dos factos nela previstos acarreta 'sempre' a interdição do direito de caçar), o certo é que logo a fixação de uma duração invariável (cinco anos) contrariaria a exigência de que a medida de segurança seja proporcional às razões de prevenção especial (perigosidade do agente) que a determinam. Sabe-se, com efeito, que também a aplicação de medidas de segurança – e ainda que acessórias – deve subordinar-se ao princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade em sentido amplo, incluindo um princípio de necessidade ou exigibilidade, um princípio de conformidade ou adequação da medida aos fins, e um princípio da proporcionalidade em sentido estrito (assim J. Figueiredo Dias, Direito penal português, cit., §§ 705 e segs.). Essa exigência de proporcionalidade seria, porém, contrariada pela fixação ex lege da duração de tal medida, sem que, aliás, tal duração mínima possa ser considerada em concreto justificada pela verificação da existência de razões de prevenção que a legitimem (cfr., diversamente, a excepção prevista, para o internamento de inimiputáveis, no artigo 91º, n.º 2, in fine, do Código Penal).
15. Conclui-se, pois, que o artigo 31º, n.º 10, da Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto, na parte em nele se prevê que a prática do exercício venatório em zona de regime cinegético especial, em épocas de defeso ou com o emprego de meios não permitidos, acarreta sempre a interdição do direito de caçar, e por um período de cinco anos, é inconstitucional, se não por violação do artigo 30º, n.º 4, da Constituição, pelo menos por ofensa aos princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade. C) A perda necessária dos instrumentos da infracção
16. A decisão recorrida absteve-se também de declarar perdido a favor do Estado o veículo automóvel utilizado pelo arguido como instrumento do crime, recusando assim, implicitamente, a aplicação do segmento final da norma do artigo 31º, n.º
10, segundo a qual a prática do exercício venatório ali previsto acarreta sempre
'a perda dos instrumentos e produtos da infracção'. Socorrendo-se dos padrões normativos que constam do artigo 109º do Código Penal em vigor, a decisão recorrida sopesou as 'circunstâncias do caso' e concluiu em termos de não dever ser imposta tal medida – enquadrando, pois, o caso no artigo
32º, n.º 3, da Lei da Caça, segundo o qual a condenação por qualquer das infracções criminais previstas nessa lei 'poderá implicar ainda (...) a perda dos instrumentos e produtos da infracção a favor do Estado'. Ora, será que a norma do artigo 31º, n.º 10 da Lei da Caça é inconstitucional, na parte em que prevê que a prática do ilícito nele previsto tem sempre como consequência a perda dos instrumenta sceleris?
17. Aquando da aprovação da Lei da Caça vigorava ainda o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, o qual, como se sabe, veio a ser revisto e substituído pelo código actual na sequência da edição do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março. O artigo 109º do Código Penal em vigor, subordinado à epígrafe 'Perda de instrumentos e produtos' dispõe no seu n.º l:
'São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tivessem sido produzidos, quando pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos'. Em anotação a esta disposição, Maia Gonçalves (Código Penal Português Anotado e Comentado, 9ª ed., Coimbra, 1996, pp. 474 e 475) escreveu:
'Como o texto originário não primava pela clareza e deu origem a alguma corrente jurisprudencial que decretava a perda de coisas ou direitos sem qualquer relação relevante com o crime e sem risco de perigosidade, a revisão orientou-se no sentido de ficar clarificado que a perda é uma espécie de medida de segurança, operando somente naqueles casos em que existe o perigo de repetição de cometimento de novos factos ilícitos através do mesmo instrumento. Já assim devia ser entendido no domínio da versão originária, por ser o que resultava do pensamento legislativo e da expressão do texto legal. Note-se no entanto que a clarificação operada pela revisão resulta aqui mais da discussão no seio da CRP do que de alterações introduzidas no texto legal que já anteriormente, repete-se, se não prestava a dúvidas. Já perante a versão originária se devia entender que foi afastada uma ideia anterior dominante, de sacralização de todos os instrumentos do crime. O fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso. Assim, uma vulgar enxada que serviu para a prática de um homicídio ou uma caneta que serviu para forjar um documento falso não devem em regra ser declaradas perdidas. O mesmo não sucede relativamente, v.g., a armas de fogo, a mocas com aplicações de metal cortantes ou perfurantes e até a enxadas, desde que preparadas especialmente para ferir. Deve ainda aqui atentar-se em que sendo este o regime geral, portanto aplicável quando não houver lei especial, há numerosa e inabarcável legislação extravagante sobre a perda de instrumentos que serviram para a prática de crimes e de objectos por estes produzidos em que são afastadas as regras gerais aqui explanadas, v.g. quanto a veículos, armas, caça, estupefacientes e actividades económicas. E sucede ainda que com frequência é necessário atender a preceitos de natureza administrativa antes de uma eventual restituição, como é o caso do registo de armas e veículos'. A perda de instrumentos do crime surgiu como providência que visava objectivos de índole diversa, nos quais desde cedo avultaram, porém, as finalidades de prevenção especial, para obviar ao perigo de repetição criminosa, caso os instrumentos fossem aptos para isso ou ficassem em mãos de elementos que já haviam demonstrado a sua utilização para fins criminosos. Apesar da indefinição dogmática que se nota a este respeito no direito comparado (v. J. Figueiredo Dias, Direito penal português, cit., § 977), pode, hoje, qualificar-se a perda dos instrumentos do crime prevista no Código Penal como uma sanção de natureza análoga à da medida de segurança, na medida em que se exige como seu pressuposto que tais instrumentos, pela sua natureza ou circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou que ofereçam
'sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos'. Ou seja, trata-se de um instituto que prossegue uma finalidade de prevenção da perigosidade (os termos em que este pressuposto é exigido e a perspectiva para sua avaliação são, porém, discutidos – v. idem, §§ 988-990). Não pode, porém, dizer-se o mesmo do segmento normativo cuja constitucionalidade cumpre apreciar no presente caso, na medida em que nele se prevê que a perda dos instrumentos do crime ocorrerá sempre – independentemente, portanto, de uma avaliação concreta do risco da sua utilização futura em novos crimes ou da sua perigosidade, quer considerando apenas os instrumentos em si (ponto de vista objectivo), quer quando postos nas mãos do agente (ponto de vista subjectivo). Trata-se, antes, de uma consequência que a lei prevê como efeito necessário do cometimento do crime previsto no artigo 31º, n.º 10, da Lei da Caça.
18. Nestes termos, pode suscitar-se o problema de saber se a situação em apreço, pese embora o tratamento autonomizado que o Código Penal vigente concede às
'penas acessórias e efeitos das penas' nos artigos 65º a 69º e à 'perda de instrumentos, produtos e vantagens' nos artigos 109º a 112º, deve ser directamente subsumida na norma do artigo 30º, n.º 4, da Constituição. Neste sentido poderia eventualmente agenciar-se um argumento de natureza histórica – na data da revisão constitucional de 1982, vigorava ainda o Código Penal de 1886, no qual se atribuía ao conceito de 'efeitos das penas' um sentido muito amplo, nele se compreendendo, designadamente, como resultava do seu artigo
75º, n.º 1, a própria perda dos instrumentos do crime, sendo de crer que o legislador constituinte tivesse acolhido o sentido e alcance então dado no ordenamento a tal conceito. Defender-se-ia, assim, que a privação de um direito de natureza civil como, no caso, o direito de propriedade sobre um veículo automóvel, enquanto decorrência automática do cometimento de um crime e independentemente da formulação de um concreto juízo jurisdicional de ponderação das circunstâncias do caso (por exemplo, quanto à utilização do bem no futuro cometimento de crimes) ou de perigosidade do objecto em causa, carece de suporte constitucional.
19. Não parece, porém, necessário, para chegar à conclusão da inconstitucionalidade, afirmar a subsunção da hipótese prevista na norma em análise sob o artigo 30º, n.º 4, da Constituição, considerando a perda dos instrumenta sceleris como um efeito necessário da pena (ou equiparado, nos termos referidos, para efeitos da proibição constitucional) que envolve perda de um 'direito civil' (que seria, nessa perspectiva, o direito de propriedade sobre esses instrumentos). Na verdade, seja como for, não parece sofrer dúvida a conclusão de que o efeito da perda dos instrumenta sceleris (seja ou não automático, mas, em todo o caso, obrigatório, como impõe a norma em questão) não pode, segundo a norma em causa, ser adequado às circunstâncias da situação concreta, considerando, designadamente (para além do tipo de instrumento em causa e sua participação no crime), a gravidade do ilícito-típico e a perigosidade do agente. Esta exigência de proporcionalidade resulta, aliás, logo do facto de
(independentemente da mais próxima qualificação do direito de propriedade constitucionalmente protegido) se reconhecer, como se tem feito na jurisprudência deste Tribunal, que a garantia de cada um de não ser privado da propriedade (salvo por razões de utilidade pública, e ainda assim só mediante pagamento de justa indemnização), resultante do artigo 62º (designadamente, n.º
2) da Lei Fundamental, tem 'natureza análoga' aos direitos, liberdades e garantias (v., recentemente, os Acórdãos n.ºs 329/99 e 517/99, tirados em plenário e publicados no Diário da República, II série, respectivamente de 20 de Julho e de 11 de Novembro de 1999). À limitação a tal garantia resultante do facto de os bens serem utilizados como instrumento de um crime deve estar sujeita a uma regra de proporcionalidade. E tal exigência de proporcionalidade – a ser entendida em termos análogos aos que se impõem quanto às restantes reacções criminais (e, designadamente, às medidas de segurança) – é justamente posta em relevo pela doutrina, nacional e estrangeira, quanto à aplicação concreta da providência de perda dos instrumentos do crime, mesmo ali onde a lei a limita aos casos em que tais instrumenta sceleris sejam perigosos para a segurança das pessoas, para a moral ou a ordem públicas, ou em que ofereçam sério risco de utilização no cometimento de novas infracções (assim, com mais elementos, J. Figueiredo Dias, ob. cit., §
999; cf. Leal Henriques/Simas Santos, Código Penal anotado, 1º vol., Lisboa,
1995, pág. 749, que põem igualmente o problema da desproporção entre o valor dos bens apreendidos e a natureza ou gravidade do facto ilícito, ressalvando, porém, os casos de perigosidade e a legislação especial; na doutrina alemã, v. Hans H. Jescheck, Tratado de derecho penal. Parte general, vol. II, Barcelona, 1981,
§76, pág. 1103, referindo que a apreensão está submetida, não ao princípio da culpa, mas ao da proporcionalidade).
20. Ora, uma norma que prevê que os instrumentos da infracção devem em qualquer caso ser declarados perdidos a favor do Estado, independentemente da consideração em concreto, quer da gravidade do ilícito e da culpa do agente, quer da perigosidade e do risco dos instrumentos para futuros crimes, quer mesmo da própria natureza (e valor) do objecto em questão, não pode certamente, na indeterminação abstracta da reacção ablatória do direito de propriedade que impõe, ser considerada respeitadora das exigências constitucionais de proporcionalidade. Seja qual for a perigosidade dos instrumentos ou o risco de virem a ser utilizados na comissão de futuros crimes, seja qual for a culpa do agente ou as necessidades de prevenção geral, seja qual for o valor ou a natureza dos instrumentos em causa, a norma em crise impõe a sua perda a favor do Estado. A previsão abstracta pela lei de tal sanção acarreta, pois, necessariamente um obstáculo à ponderação concreta da proporcionalidade da imposição de tal providência sancionatória. E nem cabe argumentar com o disposto no artigo 32º, n.º 5, da Lei da Caça, já transcrito, nos termos do qual a 'perda dos instrumentos da infracção envolve a perda (...) dos veículos que serviram à prática daquela'. Tal norma, aliás, segue-se à previsão da perda dos instrumentos, no artigo 32º, n.º 3, como mera possibilidade, não sendo líquido que se refira igualmente aos casos em que a perda é obrigatoriamente cominada, em qualquer caso, como acontece na norma em apreço. De toda a forma, no caso concreto, a decisão recorrida, sopesando todas as circunstâncias da situação, entendeu não dever decretar a perda do veículo do recorrente, recusando assim, implicitamente, a aplicação do artigo 31º, n.º 10, da Lei da Caça, nesta parte. Ora, o que está justamente em causa é a conformidade constitucional desta norma, entendida como impondo a perda dos instrumentos do crime independentemente da possibilidade de uma avaliação em concreto da proporcionalidade de tal efeito, como a que foi levada a cabo pelo tribunal a quo . Pelo que, se tal norma do artigo 32º, n.º 5 (que, como se disse, não foi referida expressamente, na decisão recorrida, à norma que prevê a perda dos instrumentos como efeito necessário, e, por isso, não faz parte do objecto do presente recurso) cominasse sempre a perda do veículo, como instrumento do crime, também para os casos em que esta é prevista como efeito obrigatório, o problema de constitucionalidade não ficaria resolvido, e antes se poderia, pelo contrário, suscitar também em relação a ela.
21. Conclui-se, pois, que também o segmento normativo do artigo 31º, n.º 10, da Lei da Caça em que se prevê que a infracção nele prevista tem sempre como consequência a perda dos instrumentos da infracção, independentemente da avaliação da sua perigosidade ou do risco de utilização em futuros crimes e da ponderação de outras circunstâncias da situação concreta, é materialmente inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade. III. Decisão: Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, a norma do artigo 3lº, n.º 10 da Lei n.º
30/86, de 27 de Agosto, na parte em que, como consequência da prática do ilícito nela descrito, obriga à imposição de interdição do direito de caçar por um período fixo de cinco anos; b) Julgar inconstitucional, por ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade, conjugado com o artigo 62º, n.º 2 da Constituição da República, a norma do artigo 31º, n.º 10, do mesmo diploma legal, na parte em que prevê, como efeito necessário da prática do crime ali tipificado, e independentemente da ponderação das circunstâncias do caso, a perda dos instrumentos da infracção; c) Por conseguinte, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita. Lisboa, 4 de Abril de 2000 Paulo Mota Pinto Alberto Tavares da Costa Vítor Nunes de Almeida Maria Fernanda Palma Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida