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Processo n.º 390/96
2.ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. M... e marido instauraram contra MS... e mulher uma acção ordinária na qual pediram que os réus fossem condenados, para o que agora interessa, a reconhecer o seu direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e uma casa de habitação nele edificada pelos réus, ambas devidamente identificadas nos autos. Na contestação, também apenas no que aqui releva, os réus pediram, em reconvenção, que fossem eles, proprietários da referida casa, declarados igualmente proprietários do respectivo logradouro, adquirido por acessão. Por sentença do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, de 5 de Abril de 1994, de fls. 70, julgou-se improcedente a acção e procedente a reconvenção, sendo os autores 'condenados a reconhecer que os Réus são donos da parcela de terreno com a área de 105 m2, desanexada do prédio dos Autores e que nessa parcela os réus construiram um prédio urbano com logradouro, tendo aquele a área coberta de 90 m2e o logradouro 15 m2'. Determinou ainda a sentença que, como indemnização pela aquisição, por acessão, da parte indicada do prédio rústico dos autores, os réus lhes deviam pagar a quantia de 210 000$00, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil. Inconformados, os autores recorreram para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 4 de Maio de 1995, de fls. 104, confirmou a sentença recorrida. No mesmo sentido veio a julgar o Supremo Tribunal de Justiça, em recurso igualmente interposto pelos autores. No seu acórdão de 26 de Março de 1996, de fls. 163, pronunciando-se sobre a questão da inconstitucionalidade 'do artigo 1340.º do CC', por violação do direito de propriedade privada e do direito à justa indemnização, aliás já suscitada perante o Tribunal da Relação do Porto, o Supremo Tribunal de Justiça julgou-a improcedente. Em síntese, o Supremo Tribunal de Justiça, considerando embora como elemento essencial do direito de propriedade o direito a dela não ser privado, observou, em primeiro lugar, que constitucionalmente só é garantido o direito de essa privação não ser arbitrária e de lhe corresponder uma indemnização, o que, em seu entender, se verifica. Em segundo lugar, no que toca ao momento relevante para o cálculo da indemnização – 'não em função do valor actual do prédio, mas, antes, do valor, desactualizado, reportado ao momento da incorporação da obra'
–, considerou não conflituar com o princípio da justa indemnização porque, segundo a orientação que perfilhou, a aquisição por acessão opera automaticamente no momento dessa incorporação; assim, o adquirente não pode 'ser ainda responsabilizado, perante o primitivo dono, por uma quantia mais vultosa, correspondente a um aumento, verificado, já, no domínio do seu ius imperii', tanto mais que o anterior proprietário já lhe podia ter reclamado a indemnização desde a referida incorporação.
2. De novo inconformados, os autores recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a apreciação da inconstitucionalidade 'da aplicada norma do art. 1340.º do CC por violação dos arts. 62.º e 17.º e dos princípios da justa indemnização e da justiça do nosso sistema jurídico da CRP (art. 71.º da Lei 28/82)'. Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar. Quanto aos recorrentes, vieram sustentar 'a questão da dupla inconstitucionalidade do art. 1340.º do Código Civil: a) a privação de propriedade por razões de utilidade particular; b) cálculo injusto da indemnização a pagar', por violação do 'disposto no artigo 62.º da Constituição
(tendo em conta os arts. 17.º e 18.º) bem como o art. 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem', concluindo da seguinte forma:
'CONCLUSÕES
1.ª – O artigo 62.º da Constituição garante a todos o ‘direito à propriedade privada ... nos termos da Constituição’.
2.ª – Tal direito de propriedade privada constitui um dos ‘direitos fundamentais de natureza análoga’ a que se refere o artigo 17.º da CRP e com o âmbito e sentido estabelecidos no seu artigo 16.º.
3.ª – Como direito fundamental que é, por força do artigo 18.º da Constituição,
é directamente aplicável e vincula entidades públicas e privadas.
4.ª – Nos termos do n.º 2 do artigo 18.º, ‘A lei só pode restringir (o direito fundamental de propriedade privada) nos casos expressamente previstos na Constituição'.
5.ª – A Constituição apenas prevê a expropriação por utilidade pública e nenhum preceito constitucional restringe o direito de propriedade privada permitindo a expropriação por utilidade particular ou que o proprietário seja coactivamente privado da sua propriedade em favor de outro particular.
6.ª – A natureza jurídica da aquisição de propriedade por acessão industrial imobiliária é uma expropriação por utilidade particular porque o proprietário é coactivamente privado da sua propriedade, por interesses privados, transmitindo-se a mesma a um novo proprietário e pagando este o preço respectivo.
7.ª – O artigo 1340.º (...) constitui uma restrição ao direito constitucional fundamental de propriedade privada, restrição essa que não está expressamente prevista na Constituição como impõe o n.º 2 do artigo 18.º.
8.ª – Assim, tal artigo é inconstitucional na medida em que permite que um proprietário seja coactivamente privado da sua propriedade sem ser por razões de utilidade pública.
9.ª – O pagamento do valor justo e actual traduz-se num princípio geral, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, de indemnização pelos actos lesivos de direitos e pelos danos causados a outrem.
10.ª – O direito à justa indemnização, em casos de expropriação, traduz-se num direito de natureza análoga aos direitos fundamentais pelo que só pode sofrer as restrições previstas na Constituição.
11.ª – A acessão industrial imobiliária é um direito potestativo de adquirir e a aquisição só se dá depois de convencido o proprietário em acção contra este instaurada e sempre após o pagamento do valor que o terreno tinha.
12.ª – O artigo 1340.º do Código Civil, na medida em que permite que a indemnização ou valor seja (não em função do valor actual do prédio) mas antes um valor desactualizado retroagido à data da incorporação – viola o conceito de
‘justa indemnização’ e o princípio da justiça do nosso sistema jurídico.
(...)
15.ª – Foram violados, entre outros, os arts. 17.º, 18.º, 62.º e 207.º da nossa Constituição.'
Os recorridos contra-alegaram, defendendo a não inconstitucionalidade da norma impugnada e exprimindo total concordância com a decisão recorrida.
3. Corridos os vistos, e não havendo obstáculos ao conhecimento do recurso, cabe começar por fixar o respectivo objecto.
É o seguinte o texto da norma impugnada (apenas interessam, como é manifesto, os n.ºs 1e 4 do artigo 1340.º):
Artigo 1340.º
(...)
1. Se alguém de boa fé construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações.
(...)
4. Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno.
O sentido com que esta norma foi efectivamente aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça – e só esse pode ser considerado no presente recurso – foi o de que a aquisição da propriedade do solo por parte do autor da incorporação se verificou automaticamente, uma vez verificados os pressupostos legalmente definidos para esta modalidade de acessão (construção, com o consentimento do proprietário do solo, portanto de boa fé, de uma obra em terreno alheio que determine um aumento do valor global do prédio superior ao valor que ele tinha antes da incorporação). Com efeito, escreveu-se no acórdão recorrido: 'Dispondo a lei que o autor adquire a propriedade (art.º 1340.º n.º 1 do Código Civil), isso significa que ele adquiriu um direito automaticamente, ipso iure, desde o momento da incorporação (…). O direito do beneficiário da acessão não gera, portanto, nenhum conflito de direitos reais que seja necessário solucionar através de expropriação por utilidade particular'. Não se ignora, naturalmente, a controvérsia doutrinal existente sobre o modo de aquisição do direito de propriedade por força da acessão industrial imobiliária prevista no n.º 1 do citado artigo 1340.º. Em traços muito gerais, essa controvérsia consiste em saber se a aquisição é automática, uma vez verificada a incorporação da obra (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III,
2.ª ed., Coimbra, 1987, pág. 165), ou se apenas ocorre em virtude do exercício do direito potestativo de adquirir conferido ao titular da coisa de maior valor
(Oliveira Ascenção, Direitos Reais, 4.ª ed., Coimbra, 1983, pág. 401 e segs., Menezes Cordeiro, Direitos Reais, reimp., Lisboa, 1993, pág. 503, Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 3.ª ed., Lisboa, 1999, pág. 330). Não vem, todavia, a propósito tomar partido nesta querela, pois que ao Tribunal não cabe, em princípio, questionar a interpretação das normas de direito ordinário, mas, tão somente, apreciar a sua conformidade constitucional nos exactos termos em que elas foram interpretadas e aplicadas pela decisão recorrida. Assim, a norma cuja constitucionalidade se vai apreciar é a norma expressa nos seguintes termos: se alguém, autorizado pelo proprietário de um terreno, nele construir uma obra que lhe acrescente um valor superior ao que ele tinha antes, o autor da incorporação adquire automaticamente a propriedade do terreno, pagando o valor que este tinha antes da obra.
4. Contra a norma do artigo 1340.º, n.os 1 e 4, do Código Civil, com o sentido que acaba de ser descrito, alegam os recorrentes, em primeiro lugar, que o direito de propriedade, sendo um direito constitucionalmente garantido e análogo aos direitos, liberdades e garantias, vincula directamente entidades públicas e privadas e só pode ser restringido com respeito pelas exigências definidas no artigo 18.º da Constituição, nomeadamente a de que as restrições se limitem aos casos expressamente previstos na Constituição. Ora, a Constituição não permite a expropriação senão por utilidade pública, devendo entender-se que a acessão se traduz numa expropriação por utilidade particular. Assim, não existindo norma constitucional que admita a expropriação por utilidade particular, o artigo
1340.º do Código Civil 'constitui uma restrição ao direito constitucional fundamental de propriedade privada, restrição essa que não está expressamente prevista na Constituição como impõe o n.º 2 do artigo 18.º', sendo portanto inconstitucional. Em segundo lugar, segundo os recorrentes, a norma deve ser julgada inconstitucional por admitir uma expropriação por utilidade particular cuja contrapartida se reduz ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor que o terreno adquirido tinha à data da incorporação da obra, assim sendo violado o princípio da justa indemnização. O primeiro argumento dos recorrentes assenta, como se vê, numa dupla qualificação da figura da acessão: por um lado, como uma restrição de um direito fundamental, sujeita ao disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição; por outro lado, como uma modalidade de expropriação, subsumível enquanto tal no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição. Nenhuma destas qualificações, todavia, parece ser justificada. A acessão, como se sabe, é uma forma de aquisição do direito de propriedade, que comporta diversas modalidades e ocorre em situações também variadas. Interessa-nos agora, apenas, a hipótese de acessão industrial imobiliária, prevista no n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil. Considerada esta forma de aquisição no contexto do princípio da tipicidade dos direitos reais (artigo 1306.º do Código Civil) e da definição legal dos limites do direito de propriedade sobre imóveis – definição feita, no que agora interessa, pelo n.º 1 do artigo 1344.º do Código Civil, segundo o qual 'a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície
(...)' – a acessão constitui, antes de mais, um mecanismo de resolução de um conflito de direitos, gerado pela sobreposição vertical de duas propriedades, a do dono da obra e a do dono do solo onde ela foi incorporada. Na verdade, perante a ocorrência de uma sobreposição de duas propriedades distintas, não suportada por um direito de superfície validamente constituído
(nem em nenhuma outra situação legalmente admitida de sobreposição de propriedades), a lei vem arbitrar o possível conflito daí emergente, mediante a fixação abstracta de um critério de prevalência.
É inegável que a resolução do conflito de propriedades sobrepostas envolve a extinção de uma delas: no caso da norma em apreciação, a que incide sobre o solo. E não se põe, naturalmente, em causa que o direito de propriedade, pelo menos na sua dimensão essencial, seja um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias e que, nesse domínio, valham as condições constitucionalmente exigidas para as leis restritivas (cfr., a título de exemplo, o Acórdão n.º 329/99, Diário da República, II Série, de 20 de Julho de
1999). Mas isso não significa que estejamos perante uma restrição de direitos, no sentido do artigo 18.º da Constituição, ou perante um acto de expropriação, para os efeitos do artigo 62.º, e muito menos perante um acto de expropriação por utilidade privada. Note-se, a este último propósito, que a extinção do direito do proprietário do solo não pode considerar-se ditada apenas por razões de interesse particular. O fundamento ou motivo da acessão não reside tão só na utilidade privada do beneficiário da acessão, mas também no interesse público da resolução normativa de um conflito de direitos e no interesse, igualmente público, subjacente ao princípio da tipicidade dos direitos reais, que exige que não permaneçam duas propriedades sobrepostas fora dos casos, expressamente previstos na lei, em que as vantagens do fraccionamento vertical do direito de propriedade excedem os inconvenientes que podem surgir dos conflitos provocados pela sobreposição daí resultante. Este interesse público prevalece, naturalmente, sobre o interesse particular do adquirente, a quem – lembre-se – não é concedido, segundo a interpretação perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça, qualquer possibilidade de evitar, em concreto, a acessão, dado que esta opera automaticamente, uma vez verificada a incorporação da obra no solo.
5. A razão decisiva, porém, para que não possa ver-se na acessão uma expropriação por utilidade particular (o problema da restrição de direitos será analisado mais adiante) está em que ela não constitui, no sentido técnico do termo – e, sobretudo, no sentido do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição –, um acto de expropriação. A expropriação não é um conceito equivalente ao de desapropriação forçada ou de ablação de direitos sobre coisas, em todas as modalidades que estas figuras podem apresentar. Não são actos de expropriação, por exemplo (a não ser num sentido demasiado lato, desprovido de interesse prático), os mecanismos de desapossamento destinados a assegurar a execução coactiva das obrigações do devedor através da penhora e venda forçada de bens em processo civil, nem os actos de apreensão e confisco ditados por razões penais ou de segurança. A expropriação é um modo de aquisição de direitos sobre coisas que tem em vista proporcionar o aproveitamento directo dos bens pela entidade expropriante, sempre que a sua utilização se torna necessária para realizar determinados fins de interesse geral (obras públicas, reforma agrária, controlo da economia, protecção do património, entre os mais frequentes). É um acto, portanto, que assenta na prevalência da utilidade administrativa de um bem, para o Estado ou para outra entidade com atribuições de interesse público, em confronto com a utilidade que ele representa para o seu detentor particular. Nisso reside a justificação do sacrifício imposto ao direito do proprietário e, simultaneamente, a raiz do perfil histórico da expropriação como ponto de tensão especialmente sensível nas relações entre o poder público e os direitos individuais. Foi com esse sentido que a expropriação entrou nas declarações de direitos e no sistema das garantias constitucionais, subordinada à dupla condição da
'utilidade pública' e da 'justa indemnização'. A utilidade pública não deve, aqui, ser entendida apenas como um requisito de vinculação ao interesse público, pois o simples interesse particular nunca poderia justificar a apropriação forçada de bens para uso do Estado, a qual estaria sempre afastada num Estado de Direito, desde logo pelo princípio da legalidade. Enquanto sinónimo de interesse geral, por outras palavras, a utilidade pública não representa mais do que uma explicitação conceitual, um elemento qualificativo da figura da expropriação - um elemento, portanto, delimitador do âmbito da garantia constitucional e não do seu conteúdo. A formulação do artigo 62.º da Constituição traduz esta ideia, ao incluir a utilidade pública no próprio conceito de expropriação. Mas daí não se segue que, para a lei fundamental, a utilidade pública não constitua também um requisito de validade da expropriação, um verdadeiro pressuposto da sua legitimidade, em moldes semelhantes aos estabelecidos nas principais declarações de direitos e nas nossas antigas constituições de 1822 e de 1826 (que estabeleciam como condição da expropriação, respectivamente, a 'necessidade pública e urgente' e o
'bem público legalmente verificado'), assim como nos textos legais ou constitucionais de vários outros países. Só que, enquanto requisito de validade da expropriação, a utilidade pública assume um significado diferente. A exigência que nela se contém não é a da vinculação ao interesse público como categoria abstracta, mas sim a de uma ponderação feita entre uma determinada necessidade administrativa concreta e o interesse específico do titular do direito a expropriar. A prevalência do interesse público, enquanto fundamento da expropriação, depende das circunstâncias de cada caso e das soluções alternativas disponíveis, avaliadas através de um acto mais ou menos formalmente separado do processo expropriativo e sujeito a uma fiscalização autónoma de legalidade e de proporcionalidade. Só assim, como expressão individualizada de uma necessidade administrativa, e não apenas da sua preeminência genérica sobre os interesses privados, o interesse público pode adquirir força suficiente para justificar a expropriação.
6. Não se torna difícil concluir, em face das considerações anteriores, que a acessão, enquanto modo de desapropriação forçada de bens imóveis, é inteiramente estranha à figura da 'expropriação por utilidade pública' a que se refere o artigo 62.º, n.º 2, da Constituição. A acessão, à semelhança de outras formas imperativas de extinção ou restrição do direito de propriedade previstas na lei civil, não tem na sua base qualquer necessidade de aproveitamento de coisas determinadas por parte duma entidade pública, para satisfação de interesses específicos compreendidos nas suas atribuições. Não representa, portanto, nesse sentido (que é o sentido que caracteriza a expropriação), o sacrifício de um interesse particular em benefício de um interesse administrativo do Estado, razão por que não se pode considerar sujeita a um pressuposto de 'utilidade pública', como aquele que condiciona a expropriação. A acessão, da mesma maneira que a usucapião ou as servidões legais (para dar apenas os exemplos mais importantes), resulta de disposições genéricas do ordenamento, destinadas, como já se salientou, a conseguir a harmonização de direitos potencialmente conflituantes. A sua causa ou razão determinante não é o interesse do sujeito em favor do qual se verifica a aquisição do direito, o qual não é objecto de qualquer avaliação concreta, mas sim o interesse abstracto da ordem jurídica na prevenção ou resolução daquele conflito. A vantagem criada para o sujeito adquirente constitui uma simples consequência da arbitragem de interesses privados contrapostos, podendo mesmo não existir, dentro da interpretação do Acórdão recorrido, se ao autor da incorporação não convier a aquisição que a lei lhe impõe. Se a acessão não é determinada pela necessidade de proporcionar certa vantagem ao sujeito adquirente, mediante o aproveitamento dos bens em que incide a acessão, nenhum sentido faz a afirmação de que ela constitui uma expropriação por utilidade particular. A acessão e a expropriação são figuras colocadas em planos diferentes, sujeitas a pressupostos e condições totalmente distintos. O artigo 62.º, n.º 2, da Constituição não pode, portanto, ser visto como um obstáculo ao funcionamento do mecanismo da acessão, ainda que nele se verifique a extinção forçada do direito de propriedade.
7. Além de não consubstanciar um acto de expropriação, no sentido e para os efeitos do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, a acessão também não deve, a nenhum outro título, ser qualificada como uma restrição do direito de propriedade, subsumível ao n.º 2 do artigo 18.º e, portanto, aos requisitos de admissibilidade aí previstos, nomeadamente ao princípio da autorização constitucional expressa. A acessão, com se disse, constitui fundamentalmente um mecanismo de resolução de um conflito de direitos entre o dono da obra e o dono do solo. Este conflito, suscitado pela incompatibilidade entre o direito do proprietário do solo e o direito do autor da incorporação, é para o legislador um conflito inescapável, no sentido de que qualquer solução por ele adoptada, ainda que por simples omissão, irá traduzir-se no sacrifício de um dos direitos em confronto. Na verdade, sempre que se trate de direitos ou pretensões idênticas sobre um mesmo objecto, como sucede na acessão e noutras situações do direito civil, o conflito daí emergente não pode deixar de encontrar uma resposta na lei, seja por via de regras especiais acerca do modo de aquisição e extinção ou oneração de direitos, seja através da aplicação de normas gerais de que resulta a prevalência de um deles. A intervenção do legislador em situações como estas não deve ser confundida com a restrição de direitos. É certo que o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição configura as restrições como um modo de composição de direitos em conflito, ao determinar que elas se limitem 'ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos'. Mas os conflitos aqui presentes são de uma outra natureza. São conflitos entre direitos ou interesses distintos entre si, situados em diferentes esferas de valores e tutelados separadamente pela Constituição. A sua coexistência e harmonização não dependem necessariamente de arbitragens legislativas, nem implicam a primazia de um dos direitos sobre o outro. As situações de colisão só podem, portanto, surgir em casos concretos e é nesse plano que devem ser resolvidas, segundo critérios de concordância prática e de máxima preservação dos interesses em jogo (cfr. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, págs. 220-5). Uma solução legislativa do conflito, neste contexto, tenderá normalmente a ser mais do que uma simples norma de conciliação de direitos contrapostos, porque só se justifica se tiver por finalidade o alargamento da protecção de um dos direitos e a restrição do outro, em certas hipóteses abstractamente definidas. É justamente por tal motivo que essas leis - as leis restritivas - dependem de autorização constitucional. Não pode, portanto, avaliar-se a conformidade constitucional do n.º 1 do artigo
1340.º do Código Civil à luz do regime definido para as restrições aos direitos, liberdades e garantias pelo artigo 18.º da Constituição, como pretendem os recorrentes. Estão em jogo dois direitos de igual natureza, que não podem coexistir na mesma situação concreta, sem que a protecção de um deles importe a supressão ou oneração do outro. Não encontra, assim, dificuldade, contrariamente
à opinião de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 334), a justificação constitucional do instituto da acessão, em geral, ou da norma impugnada, em particular.
8. As considerações anteriores não significam, entretanto, que o regime do n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil, obrigando ao sacrifício do direito do proprietário do solo, não deva ser avaliado à luz dos princípios do Estado de Direito que impedem o legislador de restringir direitos individuais de modo arbitrário e desproporcionado, ainda que fora das hipóteses cobertas pelo artigo
18.º, n.º 2, da Constituição. Não parece, dentro deste ponto de vista, que o n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil, ao resolver o conflito entre o direito do proprietário do solo e o direito do construtor da obra, fazendo prevalecer este último, tenha utilizado um critério desrazoável e inadequado. O critério de prevalência – o do maior valor, associado à boa fé do proprietário da obra, nomeadamente por ter sido autorizado pelo proprietário do solo a edificá-la no seu terreno, como é o caso
– nada tem de arbitrário ou discriminatório, antes se revelando objectivo e adequado (cfr. o Acórdão n.º 4/96, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 33.º, págs. 109 e segs.). Aliás, estando o requisito da boa fé preenchido, no presente caso, pelo consentimento dos autores, a aquisição da propriedade do solo por parte do construtor da obra perde algo do seu carácter forçado, na medida em que a verificação de um dos pressupostos essenciais da acessão resulta de um acto de livre disposição do dono do solo. Daqui não se segue que a autorização para construir possa valer como renúncia à propriedade do solo, ou como qualquer outra forma de extinção voluntária deste direito. Mas a existência da autorização é decerto relevante para ajuizar a razoabilidade dos critérios legais que presidem à solução do artigo 1340.º do Código Civil. Já do ponto de vista do princípio da proporcionalidade se poderia sustentar, contra a solução legal, o argumento de que a protecção constitucional do direito de propriedade imporia uma forma de resolução do conflito que não sacrificasse totalmente o direito de uma das partes. Por exemplo, e sem perder de vista que nos movemos dentro de um quadro de tipicidade, impondo a constituição de um direito de superfície sobre o solo, a favor do proprietário da obra. Note-se, todavia, em primeiro lugar, que a constitucionalidade de tal solução alternativa ficaria sujeita às mesmas censuras que os recorrentes formulam contra a acessão, porque sempre o proprietário do solo estaria obrigado a aceitar, contra a sua vontade, a incidência de um direito que restringe ou onera a sua propriedade. Esta restrição, não estando expressamente prevista na Constituição, sofreria também ela do mesmo vício que os recorrentes imputam à acessão. E acrescente-se, em segundo lugar, no que mais interessa ao princípio da proporcionalidade, que só aparentemente seria menos onerosa essa solução. Desde logo, porque a superfície assim criada seria necessariamente perpétua. E, depois, porque está por demonstrar que, em abstracto, do ponto de vista do proprietário do solo, seja melhor solução ficar impedido de retirar dele as vantagens inerentes ao direito de propriedade a troco de uma indemnização apenas correspondente ao valor do direito de superfície – menor que o equivalente à propriedade, naturalmente – ou perdê-la e receber, em contrapartida, uma indemnização que reflecte o maior valor da propriedade plena. A constituição forçada do direito de superfície não poderia, pois, representar uma alternativa constitucionalmente válida ao mecanismo da acessão, se contra esta procedessem as razões invocadas pelos recorrentes. E nenhuma outra solução seria possível, repita-se, dentro dos quadros do princípio da tipicidade, cuja justificação radica no interesse público da melhor utilização dos bens e da redução ao mínimo das sobreposições de direitos, sempre geradoras de potenciais conflitos (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Direitos Reais, segundo as lições do Prof. Doutor C. A. da Mota Pinto ao 4.º ano jurídico de 1970-71, Coimbra, 1972, pág. 115 e segs.). Com efeito, a não constituir-se um direito de superfície, nenhuma outra modalidade de sobreposição de propriedades, de entre as hipóteses consentidas pela lei (propriedade horizontal, certos casos de propriedade de águas, propriedade de pedreiras – todas elas envolvendo direitos de propriedade plena) seria aplicável às situações reguladas pelo artigo 1340.º, n.º 1, do Código Civil
9. Pelas razões oportunamente apontadas, concluiu-se que o n.º 1 do artigo
1340.º não configura um acto de expropriação, para os efeitos do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição. Essa circunstância, todavia, não impede que a obrigação de indemnizar imposta ao beneficiário da acessão tenha de obedecer aos critérios da indemnização justa. Os recorrentes alegam que a norma constante do n.º 1 do artigo 1340.º do Código Civil é inconstitucional por prever como valor relevante para o cálculo da indemnização o que o terreno tinha no momento da incorporação, e não o 'valor justo e actual' (conclusão 9.ª das respectivas alegações). 'A acessão industrial imobiliária é um direito potestativo de adquirir e a aquisição só se dá depois de convencido o proprietário em acção contra este instaurada e sempre após o pagamento do valor que o terreno tinha', sustentam ainda os recorrentes na conclusão 11.ª das suas alegações. Não foi esse o sentido com que foi aplicada a norma objecto deste recurso, como já se acentuou. O Supremo Tribunal de Justiça manifestou expressamente o entendimento de que a aquisição operava automaticamente no momento da incorporação no solo e, portanto, que o cálculo da indemnização teria de ser referido ao mesmo momento. Note-se que não está aqui em causa saber, por exemplo, se o montante correspondente ao valor atribuído ao terreno adquirido por acessão há-de ou não ser actualizado em função do tempo decorrido até ao efectivo pagamento, mas, tão somente, saber se contraria o princípio da indemnização justa uma norma que considera relevante para o efeito do cálculo do valor do direito perdido o momento em que ocorreu a perda. Ora a verdade é que, operando a aquisição por acessão desde o momento da incorporação (cfr. a alínea d) do artigo 1317.º do Código Civil, preceito não impugnado pelos recorrentes), não se pode considerar lesiva desse direito uma norma que garante a neutralidade patrimonial, quer do ponto de vista do proprietário anterior, quer do ponto de vista do adquirente, no momento em que a perda e a aquisição ocorrem. A consideração de qualquer momento posterior introduziria, ela sim, um factor arbitrário no cálculo do valor da indemnização, com consequências, aliás, que poderiam redundar em desfavor do titular do direito sacrificado.
Assim, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que toca à questão da constitucionalidade.
Lisboa, 4 de Abril de 2000 Maria doa Prazeres Pizarro Beleza Guilherme da Fonseca Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida