Imprimir acórdão
Procº nº 356/97
1ª Secção Consº Vítor Nunes de Almeida
Acordam no Tribunal Constitucional:
1. - J... requereu, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, a declaração de inexistência de causa legítima de inexecução integral da sentença proferida pelo mesmo tribunal em 25 de Setembro de 1996.
Por sentença de 30 de Maio de 1997, o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra (TACC)'negou provimento' ao pedido formulado, tendo, para o efeito, recusado a aplicação da alínea b) do nº1 do artigo 128º do Código de Procedimento Administrativo, na redacção da Lei nº
6/96, de 31 de Janeiro, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Desta decisão interpôs o Ministério Público junto daquele tribunal o presente de constitucionalidade, tendo o requerente J... interposto recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo.
2. - Por despacho do TACC, de 30 de Setembro de 1997, foi recebido o recurso jurisdicional e, remetido o processo ao Supremo Tribunal Administrativo, este tribunal, por acórdão de 14 de Janeiro de 1998, declarou a sua incompetência para apreciar tal recurso, ordenado a remessa dos autos ao Tribunal Central Administrativo, entretanto criado.
No Tribunal Central Administrativo, foi elaborado um parecer no sentido de se remeter o processo a este Tribunal, para se conhecer prioritariamente do recurso de constitucionalidade, contra o entendimento do requerente mas que veio a ser confirmado por acórdão de 14 de Maio de 1998.
3. - Neste Tribunal, o Ministério Público apresentou as suas alegações que concluiu pela forma seguinte:
'1º - Nem toda a matéria atinente à definição do regime do acto administrativo e da tramitarão do procedimento administrativo se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, apenas relevando, para este efeito, as alterações legislativas, de carácter inovatório, que possam afectar os direitos e garantias dos administrados, essencialmente definidos pelo artigo
268º da Constituição da República Portuguesa.
2º - A reformulação do regime da eficácia dos actos administrativos. precisando ou esclarecendo que os actos renováveis - ainda que consequentes a uma decisão anulatória de anterior acto administrativo - não têm. em regra. eficácia retroactiva não contende com os direitos e garantias dos administrados. limitando-se a interpretar a norma constante do artigo 128º, nº1, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo em consonância com a regra fundamental da não retroactividade dos actos administrativos.
3º - Na verdade, a autónoma renovação do acto nulo não traduz mera e específica execução da sentença anulatória - que se esgota na verificação de certa nulidade procedimental e na reflexa anulação dos actos processuais subsequentes. dependentes do acto anulado - destinada a conferir-lhe plena eficácia. não havendo razões para impor uma eficácia retroactiva à prática do acto renovado. em termos desfavoráveis ao administrado.
4º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada.
O recorrido CONSELHO CIENTÍFICO DA ESCOLA SUPERIOR DE TECNOLOGIA E GESTÃO DO INSTITUTO POLITÉCNICO DE LEIRIA não alegou.
Corridos que foram os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - A questão que vem suscitada nos autos é a de saber se a autorização legislativa concedida pela Lei nº 34/95, de 18 de Agosto foi ou não excedida pelo Governo ao editar o Decreto-Lei nº9/96, de 31 de Janeiro, na parte em que deu nova redacção à alínea b) do nº1 do artigo 128º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).
Com efeito, a decisão recorrida recusou a aplicação da nova redacção do artigo 128º do CCPA, por entender que o Governo não dispunha de credencial constitucional para legislar como, de facto, o veio a fazer, em tal matéria, partindo do pressuposto de que só o podia fazer através de tal credencial, por integrar matéria da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
Vejamos.
O artigo 128º do CPA tinha a seguinte redacção antes do Decreto-Lei nº 9/96:
'Artigo 128º Eficácia retroactiva
1-Têm eficácia retroactiva os actos administrativos: a)…; b)Que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos: c)[ …] '.
Após a alteração do referido diploma, a redacção do preceito ficou a seguinte:'1-Têm eficácia retroactiva os actos administrativos:[
…] b) que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos, salvo tratando-se de actos renováveis'.
Este diploma - o Decreto-Lei nº 9/96 - foi editado ao abrigo da Lei de Autorização Legislativa nº 34/95, de 18 de Agosto, que autoriza o Governo a alterar o Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro.
De todas as alíneas do artigo 2º da Lei de autorização que precisam o sentido e a extensão da legislação a produzir, apenas a alínea m) poderia servir, de algum modo, de credencial para a alteração introduzida no artigo 128º do CPA, como aliás refere o Ministério Público nas sua alegações. Com efeito, nenhuma das outras alíneas tem qualquer conexão com tal modificação legislativa.
De acordo com a alínea m) referida, o Governo fica autorizado a rever o Código de Procedimento Administrativo por forma a 'precisar o objecto, conteúdo e elementos essenciais do acto administrativo'.
Ora, antes de apurar se esta alínea serve de credencial bastante para a legislação editada pelo Governo, importa averiguar se para editar a legislação aqui em causa era necessária a obtenção de autorização parlamentar. Isto é, torna-se indispensável saber se a reserva de competência legislativa da Assembleia da República abarca toda a matéria relativa ao regime do acto administrativo e do procedimento administrativo, designadamente, quanto
à normação agora questionada.
Esta questão é, logicamente, prévia à que se aprecia e resolve na decisão recorrida. Com efeito, caso se demonstre que a matéria em causa não integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, então o Governo podia legislar sobre ela sem necessidade de autorização legislativa.
Vejamos.
A norma questionada refere-se à eficácia retroactiva do acto administrativo que, em regra, apenas produz os seus efeitos desde a data em que foi praticado (artigo 127º, CPA).
De acordo com a alínea u), do nº1 do artigo 168º da Constituição (Revisão constitucional de 1989), é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre 'associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da Administração'.
Assim, a matéria relativa ao acto administrativo e ao procedimento administrativo integrará a reserva legislativa da Assembleia na parte em que estiverem em causa as 'garantias dos administrados' (alínea u) acima referida e actual alínea s), do artigo 165º, da Constituição).
A Constituição estabelece as seguintes garantias dos administrados: a garantia de participação no procedimento de formação do acto administrativo; o direito à informação sobre o andamento dos processos administrativos; o direito à fundamentação expressa dos actos administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos; e o direito a recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos que lesem direitos ou interesses legalmente protegidos - artigo
268º da Constituição.
Ora, no caso em apreço, a modificação introduzida pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro, no texto do artigo 128º do CPA, ao estabelecer que não têm eficácia retroactiva os actos administrativos que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos renováveis, em nada contende com as garantias dos administrados. Com efeito, a actual redacção do preceito, ao afastar a anterior redacção que levava demasiado longe a eficácia retroactiva dos actos administrativos que renovassem os que foram contenciosamente anulados, não interfere os direitos dos administrados.
Na verdade, em hipótese como a dos autos, em que se anulou contenciosamente um acto administrativo por vício de forma, por falta de audição do interessado, a atribuição de plena eficácia retroactiva ao acto que renova o acto anulado, depois de eliminado o vício, tem por consequência a eliminação dos efeitos úteis do provimento do recurso contencioso, uma vez que o novo acto, inteiramente retroactivo, projectava os seus efeitos a partir do momento da prática do primeiro acto que foi julgado inválido.
Ora, pela nova redacção do artigo 128º, nº1, alínea b) do CPA, os actos renováveis que executam sentenças anulatórias não têm eficácia retroactiva, produzindo apenas os respectivos efeitos para o futuro, permitindo reconstituir a situação que existiria se o acto ilegal não tivesse sido praticado.
A matéria deste normativo tem assim a ver com a eficácia do acto administrativo e não com as garantias dos administrados, com as quais apenas reflexa e indirectamente poderá correlacionar-se.
De qualquer modo, o certo é que a modificação introduzida no artigo 128º do CPA pelo Decreto-Lei nº 6/96, de 31 de Janeiro, em nada contende com os direitos dos administrados nem com qualquer direito, liberdade ou garantias dos cidadãos, pelo que o Governo podia legislar, quanto à normação em causa, da forma que o fez sem necessidade de autorização legislativa da Assembleia da República.
Obtida esta conclusão, desnecessário se torna averiguar se o diploma autorizado respeitou ou não a lei habilitante, dado que para produzir a normação questionada, o Governo tinha competência própria suficiente
(artigo 201º, nº1, alínea a), Revisão de 1989).
O presente recurso não pode, assim, deixar de proceder, devendo reformular-se a decisão recorrida em conformidade.
III - DECISÃO:
De acordo com o exposto, o Tribunal Constitucional decide conceder provimento ao recurso e, em consequência, determinar a reformulação da decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa,1999.03.09 Vítor Nunes de Almeida Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa