Imprimir acórdão
Processo n.º 1110/2006
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. Por sentença do 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal
Judicial de Viseu foram os arguidos A. e B. Lda. condenados, respectivamente,
como autor material de um crime de abuso de confiança em relação à segurança
social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º, n.º 1, com
referência ao artigo 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias
(RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Julho, e 30.º, n.º 2, e 79.º do
Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo
período de 3 anos, sob condição de, no prazo de 2 anos, pagar ao Instituto da
Solidariedade e Segurança Social o capital em dívida que se vier a liquidar em
execução de sentença, acrescido dos juros vencidos e vincendos que forem devidos
até integral liquidação ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea e
como autora de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na
forma continuada, previsto e punido pelos artigos 107.º, n.º 1, com referência
ao artigo 105.º, n.º 1, 12.º, n.º 3 e 7.º, n.º 1 do RGIT, e 30.º, n.º 2, e 79.º
do Código Penal, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 15 perfazendo o
montante global de € 3 000. Solidariamente foram os arguidos condenados no
pagamento ao referido Instituto do que a este for devido a liquidar em execução
de sentença.
Dessa decisão veio o arguido A. interpor recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra, tendo suscitado a questão de constitucionalidade da norma contida no
artigo 14.º do RGIT, que impõe de forma automática o condicionamento da
suspensão da execução da pena ao pagamento da totalidade dos montantes das
prestações tributárias em dívida, por violação dos princípios do Estado de
Direito democrático, da dignidade da pessoa humana, da igualdade, dos limites às
restrições, pela lei, dos direitos, liberdades e garantias constitucionais, da
separação de poderes, da reserva judicial da função jurisdicional e da
independência, consagrados, respectivamente, nos artigos 1.º, 2.º, 13.º n.ºs 1 e
2, 18.º, n.ºs 2 e 3, in fine, 111.º, n.º 1, 202.º, n.ºs 1 e 2, e 203.º da CRP.
O Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso.
Inconformado com o decidido, veio o arguido interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, solicitando a apreciação da inconstitucionalidade do n.º 1 do
artigo 14.º do RGIT, “[…] na acepção e juízo adoptados pelo Tribunal da Relação
de Coimbra que em face da decisão recorrida entende que esta norma, ao impor
obrigatoriamente a condição do pagamento à suspensão da pena, mesmo entendido no
sentido de que tal terá como efeito o não cumprimento da condição no prazo
estabelecido, não ofende o princípio da culpa que informa todo o sistema penal
como exigência incontornável do respeito pela dignidade da pessoa humana, nem
viola o princípio da igualdade quando se demonstre provado que o específico
condenado efectivamente não recebeu nem se apropriou das prestações tributárias
em causa”.
Notificado para o efeito, veio o recorrente apresentar as suas alegações, tendo
concluído que:
15. Vem o presente recurso interposto da decisão de 25 de Outubro de 2006 da 4ª
Secção do Tribunal da Relação de Coimbra – Processo n° 716/03.0 TAVIS.C1
(Recurso Penal) –, por se considerar inconstitucional a norma constante do no
n.° 1 do art.° 14 do RGIT, na acepção e Juízo adoptados pelo Tribunal da Relação
de Coimbra que em face da decisão recorrida entende que esta norma, ao impor
obrigatoriamente a condição do pagamento à suspensão da pena, mesmo entendido no
sentido de que tal terá como efeito o não cumprimento da condição no prazo
estabelecido, não ofende o princípio da culpa que informa todo o sistema penal
como exigência incontornável do respeito pela dignidade da pessoa humana, nem
viola o princípio da igualdade quando se demonstre provado que o específico
condenado efectivamente não recebeu nem se apropriou das prestações tributárias
em causa.
16. Tal interpretação, alicerçada pelo Tribunal da Relação de Coimbra no seu
Acórdão, viola os artigos 1°, 13º, 27° e 18°, n° 2, da nossa Lei Fundamental.
17. A restrição de direitos fundamentais, especialmente o da
liberdade –, art. 27° da C.R.P. – atingiu o nível do arbitrário, violando o
princípio da proibição do excesso, consagrado no art. 18°, n° 2, da C.R.P.
18. Violação que resulta das restrições decorrentes da opção legislativa
importarem, relativamente ao direito fundamental à liberdade, limitação ofensiva
dos princípios em que aquele da proibição do excesso se desdobra: da adequação
(porque se mostra inapropriada), da necessidade (por não ser exigível) e da
proporcionalidade em sentido restrito – princípio da justa medida – por virtude
de a lei adoptar «cargas coactivas» de direitos, liberdades e garantias
«desmedidas» «desajustadas», «excessivas» ou «desproporcionadas» em relação aos
resultados obtidos», à luz dos critérios com relevo constitucional.
19. Se é certo que existe o dever constitucional de pagar imposto, não é menos
certo que o arguido A. não é o devedor originário do imposto. Nem sequer o
substituto.
20. E ainda é seguro que não se deu como provado que o arguido A. tenha usado em
proveito próprio as quantias deduzidas nas retribuições.
21. Para além do mais o arguido A. demonstrou ser pessoa de humildes posses.
22. Assim, a imposição do condicionamento do pagamento, se entendida no sentido
de que teria como efeito que o não cumprimento da condição, no prazo
estabelecido, implica necessariamente, no caso concreto, a revogação da
suspensão, o que ofende o princípio da culpa que informa todo o sistema penal
como exigência incontornável do respeito pela dignidade da pessoa humana,
importando por isso inconstitucionalidade da norma (constante do art. 11°, n° 7
do RJIFNA, do art. 14°, n° 1, do RGIT e n° 1 do artigo 14° da Lei n° 15/2001 de
5 de Junho) que impõe se condicione obrigatoriamente a suspensão ao dever do
referido pagamento (cf. arts. 1º, 27° e 18°, n° 2, da C.R.P.).
23. Atente-se o teor do Acórdão do STJ, de 22.01.2003.
24. Se, por um lado, este Aresto nos diz que a norma que determina o
condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento das
quantias em falta não será inconstitucional na medida em que a revogação da
suspensão estará sempre condicionada ao princípio da culpa: “os efeitos legais
do incumprimento das condições da suspensão estão dependentes da verificação do
carácter culposo desse incumprimento.”
25. Por outro lado, a montante, diz-nos o mesmo Aresto que a norma não atingirá
o limite do arbitrário “desde que as respectivas finalidades e proposições se
compatibilizem séria e razoavelmente com os interesses, valores e princípios
fundamentais com expressão constitucional (6).
É o que resulta nomeadamente das circunstâncias seguintes:
– o já enfatizado relevo, a nível constitucional, das obrigações tributárias
como instrumento para o cumprimento pelo Estado de funções fundamentais;
– a frequência e a amplitude da violação dos deveres fiscais;
– estar‑se face a uma imposição legal aplicável a todo e qualquer arguido
condenado pelos referidos crimes fiscais;
– tratar-se de prestações tributárias que foram efectivamente recebidas e
apropriadas por cada um dos específicos condenados”.
26. Só nestas condições não será ofendido o princípio constitucional da
igualdade.
27. Como já supra foi referido, resultou provado que o arguido recorrente não
usou em seu proveito o dinheiro respeitante ao que deveria ter sido entregue à
segurança social.
28. Ou seja, o específico condenado ora recorrente não recebeu nem se apropriou
efectivamente do dinheiro que deveria ter sido entregue à segurança social.
Pelo exposto, deve ser julgada inconstitucional a norma constante do no n.° 1 do
art.° 14 do RGIT, na acepção e juízo adoptados pelo Tribunal da Relação de
Coimbra que em face da decisão recorrida entende que esta norma, ao impor
obrigatoriamente a condição do pagamento à suspensão da pena, mesmo entendido no
sentido de que tal terá como efeito o não cumprimento da condição no prazo
estabelecido, não ofende o princípio da culpa que informa todo o sistema penal
como exigência incontornável do respeito pela dignidade da pessoa humana, nem
viola o princípio da igualdade quando se demonstre provado que o específico
condenado efectivamente não recebeu nem se apropriou das prestações tributárias
em causa, (…)
O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional contra-alegou,
concluindo pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 14.º, n.º 1 do
RGIT, quando interpretada no sentido de impor, em qualquer circunstância, a
condição do pagamento do devido, para que possa ser decretada a suspensão de
execução da pena de prisão aplicada.
Por ter cessado funções neste Tribunal a Exma. Juíza Conselheira Relatora, os
autos foram redistribuídos.
Os arguidos vieram requerer o arquivamento dos autos, por extinção do
procedimento criminal, junto do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de
Viseu.
Tendo tal requerimento sido remetido ao Tribunal Constitucional, veio o Relator
ordenar a remessa dos autos para o Tribunal a quo que, por sua vez, os remeteu
ao tribunal de primeira instância para apreciação do requerimento e ulterior
processamento em conformidade com o que aí fosse decidido.
O 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu procedeu à notificação
prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, com as alterações
introduzidas pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro, para, em 30 dias, a
contar da data da notificação, os arguidos procederem ao pagamento dos montantes
em dívida.
Os arguidos vieram requerer, junto do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de
Viseu, que se julgasse extinto o procedimento criminal e contra‑ordenacional,
por despenalização da conduta.
O 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, apreciando os dois
requerimentos em simultâneo, indeferiu-os, tendo sustentado que a alínea b) do
n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, introduzido com a Lei n.º 53-A/2006, de 29 de
Dezembro, veio introduzir uma nova condição objectiva de punibilidade do crime e
não qualquer novo elemento do tipo, e, portanto, não se tratando de uma questão
de despenalização, mas apenas de aplicação do regime mais favorável, a questão
seria ultrapassada cumprindo-se a notificação a que alude esse preceito. Pelo
que ordenou a notificação do arguido nos termos e para os efeitos do disposto na
alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
Desse despacho veio o arguido A. interpor recurso para o Tribunal da Relação de
Coimbra que lhe negou provimento.
Depois de notificados os arguidos para proceder ao pagamento das custas e
efectuadas as comunicações ao registo criminal, o juiz do processo profere o
seguinte despacho:
Compulsados os autos, verifica-se efectivamente que os mesmos deveriam ter sido
remetidos ao Tribunal Constitucional para prolação de decisão sobre o recurso
interposto.
Assim, dá-se sem efeito as liquidações efectuadas, bem como as comunicações
efectuadas ao registo criminal.
Remeta os autos ao Venerando Tribunal Constitucional.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentação
2. O presente recurso foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
Através dele pretende o recorrente que seja apreciada a constitucionalidade da
norma constante do n.º 1 do artigo 14.º do RGIT, “[…] na acepção e juízo
adoptados pelo Tribunal da Relação de Coimbra que em face da decisão recorrida
entende que esta norma, ao impor obrigatoriamente a condição do pagamento à
suspensão da pena, mesmo entendido no sentido de que tal terá como efeito o não
cumprimento da condição no prazo estabelecido, não ofende o princípio da culpa
que informa todo o sistema penal como exigência incontornável do respeito pela
dignidade da pessoa humana, nem viola o princípio da igualdade quando se
demonstre provado que o específico condenado efectivamente não recebeu nem se
apropriou das prestações tributárias em causa”.
A questão de constitucionalidade, assim recortada, está longe de ser nova na
jurisprudência do Tribunal. Nos Acórdãos n.º 256/03, 335/03, 376/03, 500/05,
543/06, 29/07 e 61/07 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), por
exemplo, julga‑se não inconstitucional a norma constante do nº 1 do artigo 14º
do RGIT, em dimensão interpretativa aplicável ao presente caso. É esse juízo – e
a fundamentação que o sustenta, e que se dá aqui por integralmente reproduzida –
que agora se reitera.
III
Decisão
3. Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 14.º do
Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de
Julho, quando interpretada no sentido de impor, em qualquer circunstância, a
condição do pagamento do devido, para que possa ser decretada a suspensão de
execução da pena de prisão aplicada;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão
recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita;
c) condenar o recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e
cinco) unidades de conta.
Lisboa, 18 de Novembro de 2009
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão