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Processo n.º 242/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Na presente acção emergente de contrato individual de trabalho que A.
intentou, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, contra a B., S.A., em vista à
condenação da ré no pagamento de diversas prestações retributivas, veio a ser
declarada a incompetência, em razão da matéria, do foro laboral e, em
consequência, decretada a absolvição da instância, por decisão de primeira
instância depois confirmada, em recurso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por
se ter entendido que eram os tribunais administrativos os competentes para
conhecer do pedido.
Tendo o autor interposto o recurso previsto no artigo 107º, n.º 2, do Código de
Processo Civil para fixação do tribunal competente, o Tribunal de Conflitos, por
acórdão de 4 de Novembro de 2008, depois reformado pelo acórdão de 5 de
Fevereiro de 2009, veio declarar materialmente competentes os tribunais
administrativos, considerando, além do mais, não ocorrer a invocada
inconstitucionalidade, por pretensa violação dos artigos 61º, nº 1, e 86º, nº 2,
da Constituição da República, das normas dos artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94,
de 10 de Janeiro, e 25º dos Estatutos da B., SA, aprovados pelo mesmo diploma,
na parte em que determinam que os funcionários oriundos da antiga Emissora
Nacional continuam a ser funcionários públicos, em regime de provimento
definitivo.
O autor interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das seguintes normas:
a) artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94 de 10 de Janeiro, quando interpretado no
sentido de considerar que os trabalhadores da B., SA, oriundos da Emissora
Nacional continuam a ser funcionários públicos, em regime de provimento
definitivo;
b) n.°s 2 e 3 do artigo 25.° dos Estatutos da B., SA, publicados em anexo ao
Decreto-Lei n.° 2/94 de 10 de Janeiro, quando interpretados no sentido de
considerar que os trabalhadores da B., SA, oriundos da Emissora Nacional
continuam a ser funcionários públicos, em regime de provimento definitivo;
c) n.° 1 do artigo 19 e artigo 3.° dos Estatutos da B., SA, publicados em anexo
ao Decreto-Lei n.° 2/94, de 10 de Janeiro, quando interpretados no sentido de
que, sendo o Estado o único accionista da B., SA, não pode esta ser considerada
uma empresa privada;
d) artigos 19º, n.°s 1 e 2, e 5° do Código das Sociedades Comerciais quando
interpretados no sentido de que sendo o Estado o único accionista da B., SA, não
pode esta ser considerada uma empresa privada.
No mesmo requerimento, imputou às duas primeiras interpretações normativas a
violação do princípio da liberdade de gestão das empresas privadas face ao
Estado, consagrado no artigos 61°, n.° 1, e 86°, n.° 2, da Constituição, e às
duas últimas, a violação do princípio do Estado de direito democrático na
vertente de segurança e certeza jurídicas, decorrente dos artigos 2.° e artigo
3.°, n.° 1, da Constituição.
Por despacho do relator o processo prosseguiu para alegações com a indicação de
que, no seu parecer, não deveria conhecer-se do objecto do recurso quanto às
questões de inconstitucionalidade mencionadas nas alíneas c) e d) do
requerimento de interposição de recurso, por incumprimento do ónus de suscitação
e, também por não terem elas constituído a ratio decidendi da decisão recorrida.
Nas suas alegações, o recorrente veio desistir do recurso quanto às referidas
questões de constitucionalidade identificadas nas alíneas c) e d) do
requerimento de interposição de recurso, e, quanto ao mais, sustentou, em
resumo, o seguinte:
- os trabalhadores das empresas públicas não mantêm a sua qualidade de
funcionários públicos quando tenham transitado para uma nova entidade
empregadora, de natureza jurídica diversa, e, designadamente, quando passem a
integrar uma pessoa colectiva de direito privado, como é o caso da actual B.,
SA;
- não pode considerar-se como correspondendo ao “interesse geral”, para efeito
da conformação do direito de iniciativa económica privada, tal como previsto no
artigo 61º, n.º 1, da Constituição, o simples interesse de um pequeno grupo de
funcionários públicos, que pudessem beneficiar com manutenção do regime
estatutário a que estavam anteriormente afectos;
- considerando que uma das componentes da liberdade de gestão da empresa privada
respeita à gestão do seu pessoal (admissão, tarefas, horário de trabalho, local
de prestação de trabalho, poder disciplinar, etc.), a manutenção de um vínculo
de direito público para uma parte do seu pessoal implica que o Estado possa
interferir ou intervir na gestão da empresa, em violação do disposto no artigo
86.º, n.º 2, da Constituição.
- termos em que devem ser declaradas inconstitucionais as normas constantes do
artigo 7º do Decreto-Lei n.º 2/94, de 10 de Janeiro, e do artigo 25º dos
Estatutos da B., SA, aprovados pelo mesmo diploma, quando interpretadas no
sentido de que os funcionários oriundos da Emissora Nacional continuam a ser
funcionários públicos, em regime de provimento definitivo, por violação disposto
n.º 1 do artigo 61º e n.º 2 do artigo 86º da Constituição.
A recorrida B., S.A. contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
A) O Decreto-Lei nº. 2/94, de 10 de Janeiro, e os Estatutos da B., S.A., a ele
anexos, cujos arts., respectivamente, 7º. e 25º. o Recorrente pretende ver
declarados inconstitucionais, quando interpretados no sentido de os funcionários
oriundos da extinta Emissora Nacional continuarem a ser funcionários públicos,
em regime de provimento definitivo, foram revogados, com efeito reportados a 1
de Janeiro de 2007, pelo art. 13º. da Lei nº. 8/2007, de 14 de Fevereiro, o que
torna inútil ou desprovido de objecto o presente recurso; por outro lado,
B) O que o recorrente questiona não é o facto de os preceitos em apreço lhe
terem reconhecido, enquanto trabalhador proveniente da ex-Emissora Nacional, um
conjunto de direitos próprios do estatuto de funcionário público, mantendo-lhe
assim um regime especial, mas sim a conclusão que daí extraiu a decisão
recorrida em sede de fixação da competência material jurisdicional, atribuindo-a
ao foro administrativo e fiscal em detrimento do foro laboral, o mesmo é dizer
que a discordância do A. recai sobre a decisão, deixando incólume a conformidade
constitucional das normas materiais invocadas, e são estas, e só estas, as
susceptíveis de desencadear o pretendido juízo de inconstitucionalidade; aliás,
C) A manutenção do estatuto especial em apreço, consignado nos sucessivos
diplomas por que se regeu a B. desde a sua criação pelo DL nº. 674-C/75 até ao
presente, obedece à exigência constitucional da garantia da segurança no emprego
firmada no art. 53º. da CRP, a qual, enquanto integrante dos direitos,
liberdades e garantias dos trabalhadores, não só é limitativa da liberdade da
iniciativa económica privada (art. 61º. n.º1, da CRP), como não representa uma
forma de intervenção estadual directa na gestão de empresas privadas, tanto mais
que a B., enquanto empresa autónoma, sempre integrou o sector audiovisual,
qualidade que mantêm.
Notificado para se pronunciar, querendo, sobre as questões prévias suscitadas
pela recorrida, o recorrente veio dizer, em síntese, o seguinte:
- a Lei n.° 8/2007 não é aplicável ao caso sub juditio, visto que entrou em
vigor após a cessação da relação laboral que constitui objecto da acção,
ocorrida em 21 de Julho de 2003, mantendo por isso plena utilidade a apreciação
das normas que regulavam a essa data a situação jurídica do recorrente;
- o recurso foi interposto da decisão do Tribunal de Conflitos na parte em que
aplicou as normas dos artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94, de 10 de Janeiro, e
25.°, n.ºs 2 e 3, dos Estatutos da B., SA, que constituiram o fundamento da
declaração de competência dos tribunais administrativos para conhecer da acção.
O relator ordenou ainda a notificação do recorrente para se pronunciar quanto à
possibilidade de se não conhecer do recurso por falta de legitimidade para
recorrer, considerando que os princípios constitucionais invocados como
fundamento do recurso de constitucionalidade respeitam à esfera jurídica da
recorrida, enquanto entidade empregadora, e não integram uma posição jurídica
subjectiva de que o recorrente possa considerar-se titular.
O recorrente respondeu, dizendo que tem legitimidade para recorrer por ser parte
vencida no processo e que as questões de constitucionalidade suscitadas se
repercutem na relação material controvertida, pelo que não há motivo para não
conhecer do objecto do recurso.
Cabe apreciar e decidir.
II. Fundamentação
2. Face aos termos em que foi deduzido o requerimento de interposição de
recurso, este tinha por objecto quatro diferentes interpretações normativas
atinentes aos artigos 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94, de 10 de Janeiro, e 25.°,
n.ºs 2 e 3, dos Estatutos da B., SA, e, bem assim, aos artigos 19º, n.º 1, e 3.°
destes Estatutos, e 19º, n.°s 1 e 2, e 5° do Código das Sociedades Comerciais.
Nas suas alegações, no entanto, o recorrente desistiu do recurso no tocante às
duas últimas interpretações normativas, pelo que, sendo a desistência admissível
(artigo 681º, n.º 4, do Código de Processo Civil), haverá que circunscrever o
seu objecto àquelas que se reportam aos artigos 7.° do Decreto-Lei n.° 2/94 e
25.°, n.ºs 2 e 3, dos Estatutos da B., SA, com a consequência de apenas se
poderem considerar, na apreciação do fundo, os parâmetros constitucionais que o
recorrente invocou em relação a essas normas.
A recorrida sustenta, porém, a inutilidade superveniente da lide por considerar
que as normas cuja constitucionalidade constituem objecto do recurso foram
entretanto revogadas, por substituição, pela Lei nº. 8/2007, de 14 de Fevereiro,
cujos efeitos se reportam, nos termos do seu artigo 14º, a 1 de Janeiro de 2007.
Certo é que o referido diploma legal procedeu à reestruturação da concessionária
do serviço de rádio e televisão, atribuindo a prestação dos serviços públicos de
rádio e de televisão à C., S.A., para a qual se transmitiu a posição jurídica de
empregadora que era detida anteriormente pela B., S. A. (artigos 1º, n.º 1, e
9º, n.º 1).
Todavia, estando em consideração uma decisão judicial atributiva de competência
contenciosa aos tribunais administrativos para conhecimento do objecto da acção,
essa competência deve entender-se como fixada no momento da propositura da
causa, como determina o artigo 5º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais, sendo irrelevantes as modificações de facto e de
direito que ocorram posteriormente.
Assim, embora de não ignore que o n.º 3 do artigo 9º da referida Lei nº. 8/2007
manteve o regime de transição que era anteriormente aplicável, por força do
disposto nos artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94, de 10 de Janeiro, e 25º dos
Estatutos da B., SA, ao pessoal oriundo da antiga Emissora Nacional - o que
mantém intocados os pressupostos em que se moveu a decisão recorrida -, a
verdade é que a invocada modificação do regime legal em matéria de concessão de
serviço público de rádio não poderia ter qualquer efeito prático quanto ao
julgado relativo à competência contenciosa, sendo que a decisão sobre o mérito
da causa que a final venha a ser emitida sempre se repercutirá na esfera
jurídica da actual concessionária, que sucedeu na posição jurídica da B., S. A..
Não há, pois, motivo para considerar verificada a pretendida inutilidade
superveniente da lide.
Assim como não procede a alegação de que a discordância do recorrente se refere
unicamente à decisão recorrida, no ponto em que esta atribui competência aos
tribunais administrativos para conhecer do pedido, e não a qualquer
interpretação que o tribunal a quo tenha feito quanto às mencionadas normas dos
artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94 e 25º dos Estatutos da B., SA.
Resulta com evidência do requerimento de interposição de recurso que o
recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade desses mesmos preceitos
legais, tal como foram aplicados, na apreciação do caso concreto, pelo tribunal
recorrido.
O recorrente cumpriu, por isso, com rigor, o pressuposto processual do recurso
de constitucionalidade que decorre do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do
Tribunal Constitucional, pelo qual o recurso incide sobre decisões dos tribunais
que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo.
Também é claro que as normas dos artigos 7º do Decreto-Lei n.º 2/94 e 25º dos
Estatutos da B., SA, em causa, constituem a ratio decidendi da decisão
recorrida, mantendo-se, assim, a plena utilidade da apreciação do recurso de
constitucionalidade, em face do seu reconhecido carácter instrumental. Na
verdade, embora a decisão seja relativa à competência material para conhecer do
objecto do processo, ela tem como necessário pressuposto a interpretação
efectuada pelo Tribunal de Conflitos em relação às referidas disposições legais,
de tal modo que se vier a ser emitido um juízo de inconstitucionalidade, tal
como pretende o recorrente, o tribunal recorrido terá de reapreciar a questão à
luz de um outro critério legal.
3. Entende o recorrente que as normas constantes do artigo 7º do Decreto-Lei n.º
2/94, de 10 de Janeiro, e do artigo 25º dos Estatutos da B., SA, aprovados pelo
mesmo diploma, são inconstitucionais, por violação disposto n.º 1 do artigo 61º
e n.º 2 do artigo 86º da Constituição, quando interpretadas no sentido de que os
funcionários oriundos da antiga Emissora Nacional continuam a manter um vínculo
de direito público, apesar de essa entidade ter sido transformada entretanto em
empresa pública e, depois, em sociedade anónima de capitais exclusivamente
públicos.
Estatui o citado artigo 7º, n.º 1, do Decreto-Lei nº. 2/94 (diploma que operou a
transformação da Radiodifusão Portuguesa, EP, que sucedeu à Emissora Nacional,
em sociedade anónima denominada B., SA), que “[o]s trabalhadores e pensionistas
da B., E.P., mantêm perante a B., S.A., todos os direitos e obrigações, conforme
o estatuto que detiverem à data da entrada em vigor do presente diploma”. Por
seu lado, o artigo 25º. dos Estatutos da B., SA determina, no seu n.º 2, que “os
trabalhadores oriundos da extinta Emissora Nacional de Radiodifusão (…) mantêm a
natureza vitalícia do respectivo vínculo à função pública, naquilo que é
inerente à natureza do provimento”, acrescentando o n.º 3 que “[a]os
trabalhadores referidos no número anterior continuam a ser aplicáveis as normas
respeitantes aos funcionários da administração central, no que se refere à
extinção ou modificação do seu vínculo jurídico, ao regime disciplinar, ao
regime de férias, faltas e licenças, de doença, de acidentes de serviço, de
assistência a familiares doentes, da protecção da maternidade e da paternidade,
aos benefícios concedidos pela Direcção-Geral de Protecção Social aos
Funcionários e Agentes da Administração Pública (ADSE), à aposentação e pensão
de sobrevivência e ao abono de família e prestações complementares”.
Interpretando estas disposições no sentido de que caracterizam, para os
trabalhadores por elas abrangidos, uma relação de emprego público, o tribunal
recorrido veio a considerar que a competência material para conhecer do litígio
que opõe o recorrente à B., SA, emergente de uma decisão disciplinar de demissão
por esta aplicada, pertence aos tribunais administrativos por efeito do critério
de repartição da competência jurisdicional que resulta do próprio texto
constitucional (artigo 212º, n.º 3).
O recorrente sustenta, no entanto, que a referida interpretação normativa viola
a liberdade de iniciativa económica privada, decorrente do artigo 61º, n.º 1, da
Constituição, bem como a liberdade de gestão da empresa, que resulta do artigo
86º, n.º 2, isso porque a B., SA, sendo embora uma unidade económica privada,
fica limitada na sua liberdade de organização e de gestão por instrumentos
jurídicos de regulação da actividade laboral que são próprios das relações
jurídicas de direito público, e, especialmente, da relação jurídica de emprego
público.
O artigo 61º, n.º 1, da Constituição contempla, de facto, o direito de
iniciativa privada como um direito constitucional análogo aos direitos,
liberdades e garantias, que envolve um duplo sentido: a liberdade de iniciar uma
actividade económica (em que se inclui a liberdade de criação de empresa) e a
liberdade de organização, gestão e actividade da empresa (traduzida numa
liberdade empresarial). No primeiro sentido, trata-se de um direito pessoal (a
exercer individual ou colectivamente); no segundo sentido, é um direito
institucional, um direito da empresa em si mesma (Gomes Canotilho/Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, págs.
789-790).
Podendo a lei delimitar negativamente a liberdade de iniciativa económica, como
resulta da formulação verbal do próprio artigo 61º, n.º 1 (“[a] iniciativa
económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e
pela lei e tendo em conta o interesse geral”), uma das restrições que podem ser
estabelecidas respeita justamente à liberdade de actividade da empresa (uma das
dimensões em que se desdobra o direito de iniciativa privada) e resulta do
artigo 82º, n.º 6 - também invocado pelo recorrente -, que prevê a possibilidade
de interferência administrativa directa do Estado na vida das empresas (“[o]
Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos
casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão
judicial”).
Independentemente da validade, em tese geral, dos argumentos invocados pelo
recorrente – assentes, como vimos, na ideia de que a submissão dos trabalhadores
provenientes da antiga Emissora Nacional a um regime de direito público limita a
liberdade empresarial -, a questão que desde logo se coloca é que a posição
jurídica do recorrente (como a de qualquer trabalhador da empresa nas mesmas
condições) não se encontra coberta pelo âmbito de protecção da norma
constitucional. Ou seja, o direito de iniciativa económica privada, na vertente
de liberdade empresarial – que é a que está aqui especialmente em causa -,
enquanto direito fundamental reconhecido constitucionalmente, não se encontra na
titularidade do trabalhador da empresa, mas é antes um direito institucional, e,
portanto, um direito da própria empresa.
Certo é que os trabalhadores de qualquer empresa privada, enquanto sujeitos
individuais, poderão eles próprios exercer a liberdade de iniciar a actividade
económica; e, nesse ponto, estão igualmente abrangidos pelo âmbito de protecção
subjectiva da norma do artigo 61º, n.º 1. O recorrente não invoca, porém, no
caso, uma qualquer violação desse direito pessoal, mas antes a violação da
liberdade empresarial da própria entidade empregadora, e que resulta, em seu
entender, de lhe ser imposta, por determinação legal, a um regime laboral de
direito público para parte dos seus trabalhadores.
O que está em causa, assim, face aos termos em que a questão de
constitucionalidade vem colocada é a eventual violação da liberdade de
organização e de gestão da empresa por referência à entidade patronal do
recorrente. Ou seja, o recorrente, na acção de contrato de trabalho que o
contrapõe à entidade empregadora, que nela figura como ré, pretende reagir
contra uma decisão que lhe é desfavorável, invocando direitos constitucionais da
empresa que só esta poderia accionar, se fosse do seu interesse processual, em
defesa da sua própria posição jurídica subjectiva.
A legitimidade para recorrer, em tese geral, constitui uma modalidade de
interesse processual e não uma mera concretização, no âmbito dos recursos, da
legitimidade processual da parte. Nesse sentido, para interpôr recurso não basta
que o recorrente tenha interesse em contraditar a decisão recorrida por lhe ter
sido desfavorável, é ainda necessário que demonstre a necessidade da tutela
(cfr. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997,
págs. 487 e 493).
O recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, quando se trate de um recurso de
partes, pressupõe a defesa de interesses subjectivos, o que justifica que o
recurso só possa ser interposto pela parte que haja suscitado, no decurso do
processo, a questão de constitucionalidade, como determina o subsequente artigo
72º, n.º 2 (neste sentido, Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo
Civil, 8ª edição, Coimbra, pág. 382).
Ainda que os direitos fundamentais possam ter uma dimensão objectiva, e não
apenas uma dimensão subjectiva, é suposto que a questão de constitucionalidade
apenas possa ser invocada, no âmbito da relação processual, pela parte que fica
directamente afectada na sua esfera jurídica pela interpretação normativa que
tenha sido ou possa ser adoptada na decisão do caso concreto, por se tratar de
interpretação que, em primeira linha, vem restringir ou limitar direitos
constitucionais que integram a sua posição jurídica subjectiva.
No caso vertente, parece claro que o recorrente não tem interesse processual em
recorrer, dado que, em vista a reverter a decisão judicial do caso em seu favor,
vem invocar princípios constitucionais atinentes à actividade empresarial da
entidade empregadora, que figura no processo como contraparte, quando esses
princípios consagram direitos da empresa em si mesma e esta prescindiu de os
utilizar em favor da sua posição processual.
Entende-se, nestes termos que o recorrente não dispõe de legitimidade para
recorrer, pelo que é de não conhecer do recurso.
III. Decisão
Termos em que se decide não conhecer do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 18 de Novembro de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Maria Lúcia Amaral (com declaração em anexo)
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão de não conhecimento. Fi-lo, no entanto, pelas razões seguintes:
Neste Acórdão, o Tribunal acrescenta um elemento novo ao edifício
jurisprudencial que tem concretizado o sistema constitucional e legal dos
pressupostos processuais dos recursos de constitucionalidade, particularmente
dos interpostos de decisões de aplicação de normas (artigo 280.º, nº 1, alínea
b) da Constituição; artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional.)
De acordo com este elemento novo, não haverá interesse em agir, e, portanto, não
haverá legitimidade processual, sempre que o recorrente invoque a violação de
uma norma jus-fundamental cujo âmbito de protecção não “cubra” a sua posição
jurídica no caso concreto. E isto porque “é suposto que a questão de
constitucionalidade apenas possa ser invocada, no âmbito da relação processual,
pela parte que fica directamente afectada na sua esfera jurídica pela
interpretação que tenha sido ou possa ser adoptada na decisão do caso concreto,
por se tratar de interpretação que, em primeira linha, vem restringir ou limitar
direitos constitucionais que integram a sua posição jurídica subjectiva.”
Quer isto dizer que se entende que os recursos de constitucionalidade
(interpostos de decisões de aplicação de normas) servem apenas como meio de
tutela de direitos [fundamentais] próprios que tenham sido efectivamente lesados
pela interpretação normativa adoptada pela decisão de que se interpôs recurso.
Entendo que num sistema de controlo de constitucionalidade de normas e só de
normas, como é o nosso, este modo de pensar – que é característico dos recursos
de amparo, que pressupõem queixas contra actos dos poderes públicos que afectem
directamente direitos de que se é titular – só colhe por força da modelação
essencialmente subjectiva dos nossos recursos de constitucionalidade, quando
interpostos de decisões de aplicação de normas. Com efeito, estes recursos são
próximos dos recursos de amparo, tanto na sua estrutura processual quanto nos
seus efeitos: só valem, tal como o amparo, para o caso concreto; são
interpostos, tal como o amparo, pela “parte afectada”, uma vez esgotados os
recursos ordinários que caibam. Natural é, assim, que se impeça que um
instrumento processual de índole essencialmente subjectiva venha a ser usado
para outros fins que não aqueles para os quais foi pensado.
No entanto – e este é, a meu ver, um problema maior – nem por isso o nosso
“contencioso constitucional” deixa de ser um “contencioso” de normas, e,
portanto, de índole essencialmente objectiva. Decidir se uma norma é ou não
conforme à Constituição interessa, evidentemente, à comunidade toda, e não
apenas a quem, subsidiariamente (depois de esgotados os demais recursos que
caibam), pode colocar a questão ao Tribunal Constitucional. Tanto basta para que
entenda que este novo elemento, agora acrescentado pelo Tribunal ao edifício já
complexo dos pressupostos de admissibilidade dos recursos de decisões de
aplicação de normas, careça de particular atenção e cuidado, caso venha a ter
eventuais e futuras aplicações.
Maria Lúcia Amaral