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Proc. nº 43/98
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. A... (ora recorrida) intentou, ao abrigo do disposto nos artigos 47º do RAU e
1410º do Código Civil, acção de preferência contra M... e marido J..., MM..., L... e mulher B... e F... e mulher MS..., a fim de haver para si, substituindo-se aos réus LD... e mulher e F... e mulher (ora recorrentes), o prédio urbano identificado nos autos, do qual é arrendatária do 1º andar.
2. Alegou para tanto ser arrendatária do 1º andar do referido prédio, tendo as RR. MS... e marido e MM..., por escritura pública celebrada em 13 de Abril de
1992, vendido aos outros RR, por 13.000.000$00, o referido prédio, sem que lhe tenham dado prévio ou posterior conhecimento da venda e das respectivas condições, em violação do seu direito de preferência.
3. O Tribunal Judicial da Comarca de Sintra, por decisão de 12 de Setembro de
1996, veio a reconhecer à autora, nos termos do artigo 47º do RAU, o direito de preferência na venda do prédio.
4. Inconformados com o assim decidido apelaram os Réus para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 19 de Janeiro de 1997, considerou improcedente a apelação e, em consequência, confirmou a decisão recorrida.
5. Novamente inconformados os Réus recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações da seguinte forma:
'A) O presente recurso foi interposto do acórdão recorrido que confirmou a decisão que reconheceu à A. o direito de preferência e com o qual os recorrentes não se conformam. B) ora, a A. é apenas arrendatária do primeiro andar do prédio, que é uma moradia de rés-do-chão e primeiro andar, pelo que não lhe assiste o direito de preferência relativamente à venda – que foi feita – da totalidade do prédio. C) Na verdade, e em primeiro lugar, dispondo o nº 1 do art. 47º do RAU, sob a epígrafe «Direito de Preferência»`, que 'o arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano'. O direito de preferência só existe quando se vende o local arrendado e não quando se vende mais do que o local arrendado. D) Logo que o direito de preferência ultrapasse a unidade de habitação do preferente, perde a mínima justificação doutrinal, tornando-se condenável, o que o próprio teor literal da lei – como se viu – afasta. E)Enquanto se entenda que a norma do art. 47º do RAU consagra, no seu conteúdo, um direito de preferência do arrendatário mesmo para lá do local que lhe está arrendado e que ele habita, então tal norma – com tal conteúdo – deve ser havida como inconstitucional, por ofensa ao art. 62º da CRP, com todas as consequências neste caso concreto. F) Em segundo lugar, e se algum direito de preferência assistisse à A., o certo
é que o arrendatário só tem direito de preferência se estiver a habitar o imóvel; G) E era à A. que, como facto constitutivo desse direito invocado, cabia a alegação e prova de que habitava o andar, o que não aconteceu. H) Em face do RAU não há razões para alterar o entendimento anteriormente vigente quanto à necessidade de o inquilino habitar efectivamente o prédio para poder beneficiar da preferência. I) Em face das razões expostas, a decisão recorrida violou, além das disposições legais já acima referidas, o disposto no art. 47º do RAU e nos artigos 1410º e segs. do Código Civil, pelo que deverá ser revogada e a acção julgada improcedente'.
6. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10 de Dezembro de 1997, negou provimento ao recurso. Sobre a alegada inconstitucionalidade do art. 47º do RAU, ponderou aquele Tribunal:
' 5 – A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte (CRP – 62º, nº 1). A constitucionalidade de uma norma é apreciada objectivamente e, sob pena de tratamento desigual de situações diferentes, não é diferente consoante direcção subjectiva que se pretende tenha o caso a lea submetido. Concretamente. Inconstitucional a norma ao estabelecer que in casu o arrendatário prefere na venda da totalidade do prédio, mas não ofendendo a Lei Fundamental que comprador terceiro adquira essa mesma totalidade !!! Determinado in casu o exercício do direito de preferência uma substituição subjectiva, da pessoa do adquirente pelo preferente, não poderá ser conferido um tratamento desigual a uma situação idêntica. Perspectivando quanto ao proprietário, um tal reconhecimento do direito de preferência ao arrendatário habitacional não lhe exclui nem cerceia o direito de alienar, apenas lhe impõe a venda àquele (e esta limitação da liberdade de escolha do comprador não é inconstitucional, pois que se justifica pela situação em o exercício do direito de arrendamento coloca o arrendatário, situação de ocupante munido de título a que a lei reconhece valor não só jurídica mas socialmente relevante e básico) exactamente o mesmo objecto e nas mesmas condições, ou seja, naquilo que é abrangido na expressão tanto por tanto. Por outras palavras, quer o direito de propriedade, quer o direito a transmitir continuam garantidos ao proprietário'.
7. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art.
70º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade. Pretendem os recorrentes ver apreciada a constitucionalidade dos artigos 47º do RAU e 1410º do Código Civil, enquanto interpretados 'em termos de consagrarem um direito de preferência do arrendatário, mesmo para lá do local que lhe está arrendado e que ele habita'.
8. Já neste Tribunal foram os recorrente notificados para alegar, o que fizeram, tendo concluído nos seguintes termos:
'1. A Constituição da República consagra, no art. 62º, a garantia do «direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição'.
2. E decorre do nº 2 do mesmo artigo que a «requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização».
3. Há, assim, um reconhecimento constitucional da propriedade privada e a sua subordinação – com limitação de carácter excepcional – à utilidade pública e interesses sociais.
4. esta disposição constitucional, na qualidade de norma jurídica, tem eficácia jurídica directa e imediata, quer de modo supletivo, enquanto incorpore princípios gerais de direito.
5. ora, como decorre do acima exposto, a consagração de direitos de preferência constitui uma limitação ao direito de propriedade, com carácter excepcional.
6. Enquanto se entenda – como entendeu o acórdão recorrido, que com tal alcance a aplicou – que as normas do art. 47º do RAU e do art. 1410 do Código Civil consagram, no seu conteúdo, um direito de preferência do arrendatário mesmo para além do local que lhe está arrendado e que ele habita, então terá tal norma – com tal conteúdo – de ser havida como inconstitucional, por ofensa do art. 62º da CRP, com todas as consequências neste caso concreto.
7. Nestes termos, deve ser decretada a inconstitucionalidade material das normas jurídicas em causa, com os consequentes efeitos a nível do processo, mormente o da revogação do aresto em que foram aplicadas as normas jurídicas inconstitucionais, como é de justiça'.
9. Notificada para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, a recorrida veio aos autos para sustentar, em suma, a constitucionalidade material das normas objecto do recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
10. Delimitação do objecto do recurso. No requerimento de interposição do recurso os recorrentes começam por referir que pretendem ver apreciada a constitucionalidade das normas dos artigos 47º do RAU e 1410º do Código Civil. Porém, uma leitura mais atenta dessa peça processual bem como das alegações de recurso que se lhe seguiram evidencia que apenas está em causa o artigo 47º, nº 1, do RAU, que dispõe como segue:
Artigo 47º
(Direito de preferência)
1 – O arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
2 – (...).
Concretizando ainda mais verificamos que em causa está não todo o artigo 47º, nº
1, mas apenas uma sua interpretação normativa, precisamente a que foi utilizada, como ratio decidendi, na decisão recorrida, segundo a qual aquele preceito atribui ao arrendatário de parte de um prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência no caso de alienação da totalidade do prédio. Em causa nos presentes autos está a alienação de um prédio, composto por rés-do-chão e primeiro andar, não constituído em propriedade horizontal, tendo as instâncias e, designadamente, a decisão recorrida, reconhecido ao arrendatário do primeiro andar (a ora recorrida) o direito de preferência na alienação da totalidade do prédio aos ora recorrentes.
É esta dimensão normativa do artigo 47º, nº 1, do Regime do Arrendamento Urbano
(abreviadamente RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que agora vem questionada pelos recorrentes e que, dessa forma, constituí o objecto do recurso. Em suma: a questão de constitucionalidade que agora vem colocada à consideração do Tribunal pode enunciar-se nos seguintes termos: É inconstitucional, designadamente por violação do artigo 62º da Constituição, o artigo 47º do RAU, quando interpretado em termos de atribuir ao arrendatário de parte de um prédio urbano, que não está constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência na alienação da totalidade do prédio ? Vejamos, pois.
11. Recorrentes e recorrida dão-nos conta, designadamente nas alegações que apresentaram neste Tribunal, de uma discussão que se vem travando na doutrina portuguesa acerca da questão de saber se, em hipóteses como as dos autos, o artigo 47º do RAU confere ou não ao arrendatário de parte de um prédio urbano
(sem autonomia em relação à totalidade do prédio) o direito de preferência na alienação da coisa global. Importa, porém, começar por evidenciar que ao Tribunal Constitucional não compete tomar posição nessa querela doutrinária, optando pela melhor interpretação do disposto no artigo 47º do RAU. A este Tribunal não compete decidir qual é a boa interpretação do artigo 47º, nº 1, do RAU, mas apenas decidir se a interpretação por que efectivamente optou a decisão recorrida, e que supra já identificámos, viola ou não à Constituição.
É, pois, isso, e apenas isso, que faremos de seguida.
12. E, cremos efectivamente que aquela dimensão normativa do artigo 47º, nº 1, do RAU não viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente o artigo 62º da Constituição, que, no seu nº 1, refere que «a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição'. Em anotação ao artigo 62º da Constituição referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição revista e ampliada, 1º vol., Coimbra: Coimbra Editora, 1984, p. 334) 'Teoricamente, o direito de propriedade abrange pelo menos quatro componentes: a) o direito a adquirir; b) o direito a usar e fruir dos bens de que se é proprietário; c) o direito de a transmitir; d) o direito de não ser privado dela'. Mais à frente
(p. 335) e especificamente sobre o direito de transmissão da propriedade
(dimensão que agora poderia estar em causa) referem aqueles autores: 'Um dos aspectos explicitamente garantidos é a liberdade de transmissão, inter vivos ou mortis causa (nº 1, in fine), não podendo haver bens vinculados ou sujeitos a interdição de alienação. Este direito deve ser entendido no sentido restrito de direito de não ser impedido de a transmitir, mas não no sentido genérico de liberdade de transmissão, a qual pode ser mais ou menos profundamente limitada por via legal, quer quanto à transmissão inter vivos (obrigações de venda, direito de preferência, etc.) quer quanto à transmissão mortis causa...'. Do que antecede resulta que o estabelecimento na lei de direitos de preferência não afecta, só por si, o conteúdo constitucionalmente reconhecido ao direito de propriedade em qualquer das suas dimensões. Designadamente o direito a transmitir a propriedade não se vê afectado no seu conteúdo essencial. É que o estabelecimento de um direito de preferência no caso de alienação do prédio não obriga o proprietário a vender, nem o impede de vender, mas apenas o obriga a, caso decida vender, atribuir preferência nessa alienação, em igualdade de circunstâncias, no caso ao arrendatário do prédio. Em causa não está a liberdade de alienação, mas apenas a liberdade de escolha da outra parte no negócio, que pode efectivamente ver-se limitada pela lei ordinária, através da atribuição de um direito de preferência, em atenção à necessidade de protecção de outro tipo de interesses, sem que com isso se viole o disposto no artigo 62º da Constituição. Nesse sentido refere Jorge Alberto Aragão Seia, em anotação ao artigo 47º do RAU
(Arrendamento Urbano, Anotado e Comentado, 3ª edição Revista e Actualizada, Coimbra: Almedina, 1997, pp. 243 e 244) 'Por outro lado, também não se pode dizer que o proprietário vê limitado o seu direito na alienação do prédio, quando se confere o direito ao arrendatário de preferir na venda de parte ou da sua totalidade, se o local arrendado é vendido globalmente com outras partes ou a totalidade do prédio.
É que, não lhe é retirado o direito de alienar parte do prédio ou a sua totalidade, mas apenas se lhe impõe que, tanto por tanto, venda ao arrendatário. Não existe qualquer inconstitucionalidade.' Acresce que a limitação à liberdade de escolha da outra parte do negócio, traduzida na consagração do direito de preferência, não constitui uma limitação arbitrária ou materialmente infundada. A justificação para essa limitação encontramo-la na breve exposição de motivos que acompanha a Lei 63/77, de 25 de Agosto, fonte histórica do actual artigo 47º, nº 1 do RAU. Ai se refere: 'No domínio dos direitos e deveres sociais, dispõe a Constituição da República que ao Estado compete, além do mais, adoptar uma política de acesso à habitação própria (artigo 65º, nº 2 da Constituição). Poderá contribuir para a referida política, ainda que em grau reduzido, conferir aos arrendatários habitacionais direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento dos imóveis respectivos'. Ora, se não estiver constituída a propriedade horizontal, o direito de preferência, a existir, só pode exercer-se sobre a totalidade do prédio. Assim, e por tudo o exposto, consideramos que o artigo 47º, nº 1 do RAU não é inconstitucional, designadamente não viola o disposto no art. 62º da Constituição, quando interpretado em termos de atribuir ao arrendatário de parte de um prédio urbano, que não está constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência na alienação da totalidade do prédio.
III – Decisão. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o artigo 47º, nº 1 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), quando interpretado em termos de atribuir ao arrendatário de parte de um prédio urbano, que não está constituído em propriedade horizontal, o direito de preferência na alienação da totalidade do prédio; b) Em consequência, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta para cada um deles. Lisboa, 5 de Abril de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida