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Processo n.º 180/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com vista à apreciação da
inconstitucionalidade da norma do artigo 410.°, n.º 2, do Código de Processo
Penal, quando «restritivamente interpretada no sentido de o vício decorrente da
inconsideração de sentença proferida, pelo mesmo Magistrado, em outro processo
embora, em que foi fixada versão diversa dos mesmos factos, não poder ser
invocado apelando às regras da experiência comum, de que fala esse preceito»,
por ofensa do direito ao processo equitativo consagrado no n.° 4 do art. 20.º da
Lei Fundamental,
2. O recorrente concluiu as respectivas alegações da forma seguinte:
«a) O recurso interposto para a 2.ª instância, quanto à infracção que se mantém
em causa nos presentes autos, tem a sua admissibilidade balizada pelas regras do
art. 75.° do Dec.-Lei n.° 433/82 e do art. 410/2 do Cód. de Proc. Penal;
b) Para a sua interposição invocou-se erro na fixação da matéria de facto, dado
essa fixação se ter exclusivamente baseado em depoimento, de agente autuante,
contraditório com o prestado pelo mesmo agente, sobre os mesmos factos -
conforme fixado, este, em sentença já transitada entretanto proferida em
processo conexo;
c) Entendeu-se pois que era admissível a arguição de vício na fixação da matéria
de facto, face às regras da experiência comum, dada a disparidade entre as duas
sentenças — com a inelutável consequência de que uma delas tinha errado;
d) O acórdão recorrido, nos termos, que acolheu, da decisão sumária inicialmente
proferida, rejeitou essa admissibilidade — em sede geral, não analisando os
concretos termos das duas sentenças em confronto;
e) Interpretou assim restritivamente a indicada norma do art. 410.°/2 do Cód. de
Proc. Penal, excluindo das regras da experiência comum referidas nesse preceito
a de que o erro na apreciação da prova é provável se existir outra versão dos
mesmos factos fixada em anterior sentença já transitada;
f) Substancialmente, este entendimento veda, sem qualquer justificação material,
que a segunda decisão judicial, se for ela a errónea, possa ser corrigida;
g) E dessa forma é ofendido o direito a um processo equitativo, consagrado na
segunda parte do n.° 4 do art. 20.º da Constituição, ao traduzir a exigência de
“um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos
vários momentos processuais”.
Deve assim ser declarada a inconstitucionalidade dessa indicada
interpretação restritiva do art. 410.º/2 do Cód. de Proc. Penal, com a
consequente admissão do recurso interposto e a baixa dos autos ao Tribunal
recorrido para a sua apreciação.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
apresentou contra-alegações, onde conclui o seguinte:
«1° A dimensão normativa que se pretende ver apreciada pelo Tribunal
Constitucional não corresponde aquela que foi adiantada quando, perante o
tribunal a quo, se suscitou a questão de inconstitucionalidade.
2° Atendendo a relevantes circunstâncias do caso concreto, a norma, em qualquer
daquelas dimensões, não foi a efectivamente aplicada na decisão recorrida.
3° Pelas razões referidas anteriormente (n.°s 1 e 2) não deve conhecer-se do
recurso.
4° Quando aplicável em matéria contra-ordenacional aos recursos interpostos para
a Relação, a norma do n.° 2 do artigo 410.º do Código do Processo Penal, na
medida em que limita os fundamentos do recurso a que o vício resulte do texto da
decisão recorrida por si, ou conjugada com as regras de experiência comum, não
viola o artigo 20.º, n.° 1 da Constituição, não sendo, por isso,
inconstitucional.
5° Termos em que deverá improceder o presente recurso.»
4. Notificado o recorrente para se pronunciar sobre a questão da
inadmissibilidade do recurso, suscitada pelo Ministério Público, veio apresentar
a seguinte resposta:
«1. A questão prévia suscitada é a da inadmissibilidade do recurso para esse
Tribunal Constitucional, alegadamente decorrente de um motivo principal e de
três acessórios.
2. Antes de os tentar analisar, seja apenas permitido afastar uma censura,
formulada nessas contra-alegações por falta de atenção do seu ilustre autor:
contra o que se diz no início do seu ponto 1.2, foi identificada no requerimento
de interposição a peça processual em que fora suscitada a questão da
inconstitucionalidade.
E, bem assim, afastar ainda uma outra subliminar censura constante desse trecho,
a de que a reclamação em causa tinha sido a “única” peça em tal ocorrera: é que,
antes, não se tinha verificado a violação de preceitos constitucionais —
justamente só ocorrida, no entender do recorrente, com a decisão sumária
proferida na Relação.
3. O motivo principal invocado para a inadmissibilidade do presente recurso é o
da “incoincidência normativa” da questão suscitada na reclamação para a
conferência e do seu enunciado ao requerimento de interposição e nas alegações
do presente recurso.
Salvo o devido respeito, trata-se de uma posição marcadamente formalista, pois o
cotejo dos textos não permite falar em qualquer dúvida sobre os contornos dessa
questão:
a) Na reclamação,
refere-se “uma sentença judicial transitada em julgado na qual foi fixada uma
determinada matéria de facto”, e que, “em processo pouco depois julgado, o mesmo
Tribunal, aceitando depoimento nele prestado pelo mesmo agente policial fixa
outra versão dos mesmos factos” (ponto 9),
e é face a este circunstancialismo que se defende estar contida na previsão do
art.º 410.º/2 do C.P.P. a “possibilidade de cotejo” dos dois depoimentos, e de a
recusa em o admitir envolver inconstitucionalidade (ponto 12),
tendo sido portanto feitas as referências expressas que o Ministério Público
considerou em falta;
b) Nas alegações [conclusões b) e e)],
por certo que se falou em possível erro na fixação da matéria de facto ou, o que
é o mesmo, em erro na apreciação da prova, pois o que estava em causa era um
recurso para a Relação em que se visava a reapreciação dessa matéria,
mas fundando-se o pedido dessa reapreciação numa interpretação não redutora
desse art. 410.°/2 — interpretação que uma sua leitura constitucionalmente
conforme se afigura impor.
4. A questão submetida a esse Tribunal Constitucional, por último condensada na
referida al. e) das conclusões, é pois rigorosamente a mesma que se suscitara na
reclamação.
O que seguramente se não submeteu à apreciação do Tribunal é ao questão pelo
Ministério Público no ponto 2 das suas alegações (onde diz ir apreciar o mérito
do recurso), pois não foi posto em causa que a Constituição não exclui
limitações, e fortes, ao direito de recurso (por muito que esta posição, de jure
condendo, e nomeadamente em relação ao universo, em expansão, dos ilícitos
contra-ordenacionais, seja criticável) — ponto é antes o de saber se tolera ou
não a concreta limitação que se discute.
5. Quanto aos motivos acessórios para a inadmissibilidade, correspondentes a
Outros tantos “equívocos” do ora recorrente, afigura-se não ser caso de tal
apreciação.
De facto, relativamente aos dois primeiros, entre si imbricados, por certo que
se não quis pôr em causa o princípio da livre apreciação da prova — por sinal
tão desfocadamente “defendido” pela Relação.
Pois, como se consignou já na reclamação para a conferência (ponto 10), a livre
apreciação seria plena e devidamente exercitada “se, na sua segunda decisão, o
Tribunal em causa, fazendo face à contradição, reapreciasse aprofundadamente a
questão, em termos de eventualmente considerar errónea a primeira decisão que
proferira”; não podia era transmudar-se em não apreciação, “com o simples
expediente de esquecer a primeira sentença”.
6. Relativamente ao terceiro motivo invocado, alguma perplexidade se suscita:
não se antolha o argumento que se pretende extrair da afirmação de que o
Tribunal da Relação iria apreciar a questão pela primeira vez — é O que inúmeras
vezes acontece nos recursos;
e a questão em aberto é justamente a de saber se o recurso é admissível, o que
igualmente torna incompreensível a referência a que, eventualmente, “nem sequer
fosse aplicável o art. 410.° do Código de Processo Penal” — aplicável é, por
certo, faltando definir em que sentido.
7. Pelos motivos indicados, afigura-se não poderem proceder as contra-alegações
do Ilustre Magistrado do Ministério Público, devendo em consequência os
presentes autos prosseguir a sua tramitação.»
5. O presente recurso emerge de impugnação judicial, interposta por A., da
decisão contra-ordenacional que o havia condenado no pagamento de coima no valor
de €2.500 pela autoria de três contra-ordenações, aí identificadas, previstas no
Regulamento da Náutica de Recreio, referentes a navegação de uma “mota de água”
entre São Roque do Pico e o porto da Calheta (Ilha de São Jorge).
Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Velas o recurso foi julgado
parcialmente procedente e, em consequência, o arguido condenado na coima única
de €1.000, pela prática de duas das referidas contra-ordenações.
Inconformado, o arguido interpôs recurso desta sentença para o Tribunal da
Relação de Lisboa.
Nesta Relação, o relator proferiu decisão sumária, rejeitando «em substância o
recurso por manifesta improcedência», assim confirmando a decisão recorrida.
Novamente inconformado, o arguido reclamou desta decisão para a conferência do
Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão, ora recorrido, confirmou na
íntegra a decisão sumária reclamada.
Ainda inconformado, o recorrente veio suscitar e requerer a correcção de
diversas omissões/nulidades, que foram desatendidas por novo acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa.
O presente recurso vem interposto destes dois últimos acórdãos.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II − Fundamentação
6. Importa começar por decidir a questão da (in) admissibilidade do recurso.
O Ministério Público suscitou o não conhecimento do objecto do recurso, com
fundamento em duas razões: primeiro, porque entende que a dimensão normativa que
se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional não corresponde aquela
que foi adiantada quando, perante o tribunal recorrido, se suscitou a questão de
constitucionalidade; segundo, porque entende que a norma, em qualquer daquelas
dimensões, não foi a efectivamente aplicada na decisão recorrida.
O recorrente pugna pela improcedência da questão prévia, que entende estar
fundamentada num “motivo principal” e em “três acessórios”, e defende, quanto ao
primeiro, que é uma “posição marcadamente formalista”, pois não restam dúvidas
quanto aos “contornos da questão”, que foi sempre a mesma.
6. O recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade na reclamação para a
conferência da decisão sumária proferida na Relação, da seguinte forma:
«(…) afigura-se inquestionável que não respeitaria essa exigência [do processo
equitativo, consagrado na segunda parte do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição]
uma interpretação que excluísse da referência às regras da experiência comum,
contida no referido artigo 410.º/2, a possibilidade de cotejo com diverso
depoimento da mesma testemunha, fixado em anterior sentença, sobre os mesmos
factos».
No requerimento de interposição do recurso, o recorrente enuncia a questão de
inconstitucionalidade da seguinte forma:
«inconstitucionalidade da norma do artigo 410.°, n.º 2, do Código de Processo
Penal, restritivamente interpretada no sentido de o vício decorrente da
inconsideração de sentença proferida, pelo mesmo Magistrado, em outro processo
embora, em que foi fixada versão diversa dos mesmos factos, não poder ser
invocado apelando às regras da experiência comum, de que fala esse preceito, por
ofensa do direito ao processo equitativo consagrado no n.° 4 do artigo 20.º da
Constituição.»
No entender do Ministério Público esta diferente formulação não corresponde a
uma divergência meramente formal, na medida em que não é indiferente falar-se,
como se fala na primeira formulação, em “depoimento da mesma testemunha”; e
falar-se, como acontece na segunda, em “sentença proferida pelo mesmo
magistrado”.
Não podemos deixar de concordar.
Ambas as formulações questionam a constitucionalidade da norma do artigo 410.º,
n.º 2, do CPP, no segmento respeitante às “regras da experiência comum”. Mas
enquanto que a questão, enunciada perante o tribunal recorrido, respeita à
possibilidade de cotejo com diverso depoimento da mesma testemunha, fixado em
anterior sentença, sobre os mesmos factos; já a questão colocada no requerimento
de interposição do presente recurso se refere à inconsideração de sentença
proferida, pelo mesmo Magistrado, em outro processo, em que foi fixada versão
diversa dos mesmos factos.
Se, à primeira vista, estaríamos perante uma mera divergência de redacção, a
verdade é que, numa análise mais aprofundada, a diferença assinalada revela a
enunciação de duas diferentes dimensões da questão. Na primeira formulação, o
recorrente questiona a conformidade constitucional de uma interpretação do
artigo 410.º, n.º 2, que exclui a possibilidade de o tribunal de recurso poder
cotejar o depoimento de uma testemunha, com outro depoimento, da mesma
testemunha, noutro processo. Enquanto que na segunda, questiona a
constitucionalidade de uma interpretação da mesma norma que considera que o
tribunal de recurso não pode levar em conta a sentença de outro processo,
proferida pelo mesmo magistrado, na qual foi fixada uma versão diversa dos
mesmos factos.
Não pode, ainda, deixar de se salientar que o recorrente dispunha de todas as
condições para formular adequadamente a questão de constitucionalidade, perante
o tribunal recorrido e perante este Tribunal Constitucional, uma vez que a
questão só foi por ele suscitada após a prolação da decisão sumária proferida
pelo relator do Tribunal da Relação de Lisboa, sendo certo que o acórdão
recorrido aderiu integralmente à fundamentação desta decisão.
A falta de coincidência entre a questão de constitucionalidade suscitada perante
o tribunal recorrido e aquela que se pretende ver apreciada no recurso de
constitucionalidade é, só por si, fundamento para não conhecimento do objecto do
recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
III − Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto
do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de
conta.
Lisboa, 27 de Outubro de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos