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Proc. nº 567/99
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. M... e marido (ora reclamados) intentaram no Tribunal Judicial da Comarca da Guimarães, acção declarativa, sob a forma de processo sumária, contra D... e mulher (ora reclamantes), pedindo a condenação dos Réus a ver resolvido o contrato de arrendamento identificado nos autos e, consequentemente, a despejarem o prédio.
2. Por decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, de 21 de Dezembro de 1998, foi a acção julgada procedente e, em consequência foi declarado resolvido o contrato de arrendamento que unia os Autores e os Réus, sendo estes
últimos condenados a despejarem o locado.
3. Inconformados com esta decisão os Réus recorreram para o Tribunal da Relação do Porto tendo apresentado nas suas alegações, entre outras, as seguintes conclusões:
'...8. A matéria de facto provada é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão recorrida,
9. Pois a lei exige que aqueles factos se prolonguem ininterruptamente, no mínimo, por um ano.
10. da matéria de facto provada ignora-se qual o período de tempo de tempo em que se verificaram tais factos.
11. Como a lei exige como fundamento da resolução do contrato de arrendamento que aqueles factos ocorram ininterruptamente no mínimo durante um ano, a matéria de facto provada é manifestamente insuficiente para fundamentar a decisão proferida, pelo que a mesma é nula.
12. Acresce que a ser considerado, o que não se admite nem se concede, que não é necessária a ocorrência dos aludidos factos «ininterruptamente durante, pelo menos, um ano», então o disposto no art. 64º, nº 1, al. a) do RAU é inconstitucional, porque viola o disposto no art. 65º da Constituição da República Portuguesa.'.
4. O Tribunal da Relação do Porto, por decisão de 21 de Junho de 1999, veio a negar provimento ao recurso.
5. Desta decisão foi interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, recurso para o Tribunal Constitucional. Pretendiam os recorrentes, nos termos do respectivo requerimento de interposição, ver apreciada a constitucionalidade do artigo 64º, nº 1, al. i) do RAU, por alegada violação do disposto no art. 65º da Constituição.
6. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso (fls. 87 a 91). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor:
'O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o interposto pelos ora recorrentes, pressupõe, além do mais, que os recorrentes tenham suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua interpretação normativa -, e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso. No que se refere a este segundo pressuposto de admissibilidade do recurso ele implica, necessariamente, que a norma – ou dimensão normativa – cuja constitucionalidade vem questionada tenha constituído verdadeiro fundamento normativo da decisão. Exige-se, em suma, que essa norma – e, consequentemente, o problema da sua constitucionalidade – seja relevante para a decisão da causa
(nesse sentido, entre outros, o Acórdão nº 124/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., pp. 911-912. No mesmo sentido Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina: 1997, pp. 878-879). Dito isto, vejamos se se verificam aqueles pressupostos de que depende o conhecimento do objecto do recurso. Na conclusão 12ª das alegações de recurso apresentadas no Tribunal da Relação do Porto os recorrentes suscitaram efectivamente a inconstitucionalidade do art.
64º, nº 1, al. i) do RAU, por violação do art. 65º da Constituição, quando interpretado no sentido de não ser necessária 'a ocorrência dos factos que justificam a resolução do contrato de arrendamento, ininterruptamente, durante, pelo menos, um ano'. Porém, como vai ver-se, a decisão da causa não dependeu da aplicação daquela norma, com aquele sentido.
É certo que, a dado passo, a decisão recorrida refere expressamente aderir ao entendimento que não exige a verificação ininterrupta da desabitação do prédio por mais de um ano. Nesse sentido, pode ler-se: «A este propósito também podemos afirmar que não exige a lei que «conservar o prédio desabitado por mais de um ano» - primeira parte do preceito em análise - o tenha de ser ininterruptamente, como, sem razão, dizem os recorrentes. É que, sendo este o regime aplicável anteriormente, por força do art. 1093º, al. i) do CC – conservar o prédio desabitado por mais de um ano, consecutivamente – este termo consecutivamente não integra agora o art. 64º, nº 1, al. i) do RAU, razão pela qual – teremos necessariamente de concluir – o legislador não quis que esse circunstancialismo passasse para o actual regime». Porém, logo a seguir, deixa a decisão recorrida igualmente claro que mesmo que fosse outro o entendimento – i.e., mesmo que se entendesse que era necessária a verificação ininterrupta do prazo de um ano – a decisão seria exactamente a mesma. Nesse sentido, refere-se: «Não deixamos de estranhar, todavia, o motivo por que os recorrentes tanto pugnam pela ideia de tornar seguro o resultado da interpretação que fazem da norma do art. 64º, nº 1, al. i), do RAU, isto é, que a resolução do contrato só pode ter lugar se os factos que consubstanciam a falta de residência permanente ocorrerem ininterruptamente e, no mínimo, durante um ano. É que, ficando provado que «desde Novembro de 1996, os RR, ininterruptamente, deixaram de permanecer, tomar as refeições, dormir e receber familiares e amigos no locado», tendo em consideração que a acção entrou em
26.01.98, portanto há mais de um ano, estão verificados também estes dois pressupostos de que os recorrentes fazem depender o êxito da acção. Não podemos, assim, deixar de concluir que os recorrentes deixaram de residir no arrendado, ininterruptamente, desde há mais de um ano (desde Novembro de 1996 até 26.01.1998)». Do que antecede resulta que a dimensão normativa do artigo 64º, nº 1, al. i) do RAU, cuja inconstitucionalidade que vem colocada à consideração do Tribunal, não foi relevante para a decisão da causa, que, como reconhecesse o próprio Tribunal, sempre seria a mesma, mesmo que se confirmasse o juízo de inconstitucionalidade formulado pelos recorrentes. Nestes termos, não sendo a questão de constitucionalidade relevante para a decisão da causa, não pode efectivamente conhecer-se do objecto do recurso'.
7. Inconformada com esta decisão os recorrentes apresentaram, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, alegando, em síntese, que ao contrário do decidido pelo relator, a questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional é relevante para a decisão da causa.
8. Os reclamados, por sua vez, vieram aos autos para manifestarem a sua concordância com a decisão sumária proferida pelo Relator. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. III – Fundamentação
9. O artigo 64º, nº 1, al. i) do RAU, norma cuja constitucionalidade os ora reclamantes pretendiam ver apreciada, tem o seguinte teor:
'Artigo 64º
(Casos de resolução pelo senhorio)
1. O Senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário:
(...) i) Conservar o prédio desabitado por mais de um ano ou, sendo o prédio destinado a habitação, não tiver nele residência permanente, habite ou não outra casa, própria ou alheia;
(...)'.
Sustentaram os Réus (ora reclamantes) ao longo do processo que o «conservar o prédio desabitado por mais de um ano», a que se refere a primeira parte do preceito em análise, teria que se verificar ininterruptamente, para dar lugar à resolução do contrato. Alegaram ainda que a interpretação contrária, no sentido de não exigir a verificação, ininterrupta, dos factos que justificam a resolução, seria inconstitucional por violação do disposto no artigo 65º da Constituição. Sobre este ponto, disse a decisão recorrida, em primeiro lugar: «A este propósito também podemos afirmar que não exige a lei que «conservar o prédio desabitado por mais de um ano» - primeira parte do preceito em análise - o tenha de ser ininterruptamente, como, sem razão, dizem os recorrentes. É que, sendo este o regime aplicável anteriormente, por força do art. 1093º, al. i) do CC – conservar o prédio desabitado por mais de um ano, consecutivamente – este termo consecutivamente não integra agora o art. 64º, nº 1, al. i) do RAU, razão pela qual – teremos necessariamente de concluir – o legislador não quis que esse circunstancialismo passasse para o actual regime». Dessa forma, é certo, aderiu a decisão recorrida ao entendimento que não exige a verificação ininterrupta da desabitação do prédio por mais de um ano e, nessa medida, aplicou o disposto no artigo 64º, nº 1, al. i) do RAU, com o sentido normativo cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada pelos recorrentes. Porém, como se demonstrou já na decisão reclamada, a decisão recorrida não se fica por aqui. É que, imediatamente a seguir, a decisão recorrida deixa igualmente claro que mesmo fosse de optar pelo entendimento do preceito perfilhado pelos réus (ora reclamantes) – considerando necessária a verificação, ininterrupta, do prazo de um ano – o sentido da decisão seria exactamente o mesmo. Isto é, continuaria a ter de considerar-se haver fundamento para a resolução do contrato por parte do senhorio dos termos daquela alínea i) do nº 1 do artigo 64º.
É que, ao contrário do que referem os reclamantes, a decisão recorrida considerou efectivamente estar provado nos autos que os reclamantes deixaram de residir no arrendado, ininterruptamente, por mais de um ano. Nesse sentido pode ler-se na decisão recorrida: «Não deixamos de estranhar, todavia, o motivo por que os recorrentes tanto pugnam pela ideia de tornar seguro o resultado da interpretação que fazem da norma do art. 64º, nº 1, al. i), do RAU, isto é, que a resolução do contrato só pode ter lugar se os factos que consubstanciam a falta de residência permanente ocorrerem ininterruptamente e, no mínimo, durante um ano. É que, ficando provado que «desde Novembro de 1996, os RR, ininterruptamente, deixaram de permanecer, tomar as refeições, dormir e receber familiares e amigos no locado», tendo em consideração que a acção entrou em
26.01.98, portanto há mais de um ano, estão verificados também estes dois pressupostos de que os recorrentes fazem depender o êxito da acção. Não podemos, assim, deixar de concluir que os recorrentes deixaram de residir no arrendado, ininterruptamente, desde há mais de um ano (desde Novembro de 1996 até 26.01.1998)». Em face do teor da decisão recorrida, especialmente da parte que antecede, considerou-se na decisão sumária ora reclamada – e, a nosso ver, bem – que efectivamente não devia conhecer-se do objecto do recurso interposto pelos recorrentes, na medida em que dessa forma a dimensão normativa do artigo 64º, nº
1, al. i) do RAU, cuja inconstitucionalidade vinha colocada à consideração do Tribunal, não havia sido determinante para o sentido da decisão da causa, que, como refere o próprio Tribunal Recorrido, sempre seria o mesmo - considerar verificada a causa de resolução do contrato de arrendamento prevista na alínea i) do nº 1 do art. 64º do RAU - mesmo que se confirmasse o juízo de inconstitucionalidade formulado pelos recorrentes. Assim, mais não há agora do que confirmar, e pelas razões que dela constam, a decisão reclamada.
III - Decisão Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta Lisboa, 4 de Abril de 2000 José de Sousa e Brito Messias Bento Luís Nunes de Almeida