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Processo n.º 115/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A ? Relatório
1 ? O Ministério Público, junto do Tribunal Judicial da Comarca de Cantanhede,
recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), da sentença
proferida, em processo sumário, por aquele Tribunal que condenou o arguido A.,
como autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto
e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, pedindo a apreciação da
questão de inconstitucionalidade do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada
cuja aplicação ao caso concreto foi recusada, com fundamento ?na violação do
princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da
Constituição da República Portuguesa?.
2 ? No julgamento da matéria de facto, a decisão recorrida deu como provado que
o arguido ?ao ser submetido ao exame de pesquisa de álcool no sangue no aparelho
DRAGER 7110 MKIIIP com o n.º de série ARPN-0073 acusou uma TAS de 1,95 g/l? e
que ?realizou contra-prova no aparelho DRAGER 7110 MKIIIP com o n.º de série
ARPN-0074 e acusou uma TAS de 2,02 g/l?.
Ao proceder ao ?enquadramento jurídico-penal? dos factos apurados, a decisão
recorrida sopesou que não restavam dúvidas de que o arguido, com a sua conduta,
?praticou o crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo
artigo 292.º do Código Penal?, pois, ?com efeito conduzia o veículo em via
pública, sendo portador de uma TAS superior a 1,2g/l e sendo certo que agiu de
modo doloso? e que ?haverá que ser considerada para efeitos de incriminação o
resultado do exame inicial e não o resultado da contra-prova contrariamente ao
que expressamente dispõe o artigo 153.º, n.º 6, do Código da Estrada?, por a ?referida
disposição legal enferma[r] de inconstitucionalidade material na medida em que,
como acontece no caso vertente, conforma a apreciação da prova pelo tribunal em
prejuízo do arguido, violando o disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição
e o princípio in róo ró reo que constitui emanação em matéria de prova do
princípio da presunção de inocência plasmado na referida norma constitucional?.
3 ? Alegando no Tribunal Constitucional sobre o objecto do recurso, o Procurador-Geral
Adjunto concluiu do seguinte jeito o seu discurso argumentativo:
?1. A norma do n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, enquanto permite que
seja considerado o resultado da contraprova, ainda que revele uma taxa de álcool
no sangue superior ao exame inicial, não viola o artigo 32.º, n.º 1.
2. A mesma norma, enquanto impõe taxativa e automaticamente que deve ser o
resultado da contraprova a prevalecer, viola o princípio da livre apreciação da
prova, que se extrai dos artigos 2.º e 202.º da Constituição.
3. Termos em que, ainda que com fundamento diferente, deve negar-se provimento
ao recurso?.
4 ? O recorrido não contra-alegou.
B ? Fundamentação
5.1 ? O n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada, que está aqui em causa,
dispõe do seguinte jeito:
? O resultado da contraprova prevalece sobre o resultado do exame inicial?.
O preceito foi introduzido na alteração ao Código da Estrada levada a cabo pela
mão do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, havendo este diploma sido
editado sob a invocação do uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º
53/2004, de 4 de Novembro.
Sistematicamente, o preceito está enquadrado no sistema de fiscalização da
condução sob a influência de álcool conformado pelo artigo 153.º do Código da
Estrada.
Posteriormente à edição daquele n.º 6 do artigo 153.º do Código da Estrada foi o
regime constante deste artigo do Código da Estrada objecto de regulamentação,
levada a cabo pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do
Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de
Maio, o qual revogou o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro que
dispunha sobre a mesma matéria.
De acordo com o disposto no artigo 153.º do Código da Estrada, a pesquisa de
álcool no condutor arguido começa por ser realizada através de exame no ar
expirado efectuado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização
de aparelho aprovado para o efeito e só quando não for possível, após três
tentativas possíveis, o exame através desse método ou as condições físicas em
que o arguido se encontra não lhe permitam a sua realização é que o primeiro
exame é levado a cabo através de análise de sangue.
Por seu lado, regulamentando tal preceito dispõe o artigo 1.º do referido
Regulamento de 2007 que:
?1 ? A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado,
efectuado em analisador qualitativo.
2 ? A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado,
efectuado em analisador quantitativo, ou por análise no sangue.
3 ? A análise de sangue é efectuada quando não for possível realizar o teste em
analisador quantitativo?.
Destes preceitos, entendidos conjugadamente, pode distrair-se que a presença de
álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em
analisador qualitativo. Ou seja, a utilização de analisador qualitativo apenas
tem por função indiciar a presença de álcool no sangue.
Para se saber qual a taxa de álcool no sangue e, assim, se se estará perante uma
situação relevante, criminal ou contra-ordenacionalmente, terá de recorrer-se a
analisador quantitativo ou a análise de sangue.
Constatada a presença de álcool no sangue através de analisador quantitativo,
pode o arguido requerer a contraprova, suportando as despesas por esta
originadas no caso de resultado positivo, sendo essa contraprova realizada,
consoante a vontade do examinando, através de novo exame, a efectuar através de
aparelho aprovado ou de análise de sangue.
É no quadro deste regime que surge o referido n.º 6, dispondo que ?o resultado
da contraprova prevalece sobre o resultado inicial?. É claro que a situação
apenas se coloca em caso de exame inicial feito através de aparelho quantitativo
a que se suceda novo exame de contraprova através de aparelho quantitativo, pois
que sendo o primitivo exame levado a cabo através de exame de sangue não existe
possibilidade de contraprova.
O legislador considerou que, em tal caso, ela não se justificava por ao
resultado desse exame corresponder um elevado grau de certeza científica.
É, aliás, esta ratio que justifica a prescrição constante do n.º 5 do artigo 6.º
do referido Regulamento, nos termos do qual ?o resultado do exame de sangue para
quantificação da taxa de álcool prevalece sobre o resultado do teste de ar
expirado realizado em analisador quantitativo?. ´
O resultado da análise de sangue tem, em tal caso, um nível de certeza
científica, em razão dos métodos científicos utilizados, superior ao conferível
aos obtidos através do outro método científico, o do fornecido pelos aparelhos
de pesquisa através de ar expirado.
5.2 ? Pois bem, a primeira questão que se coloca é a da constitucionalidade
orgânica da norma que está em causa, enquanto dispondo sobre o valor das provas
atendíveis em julgamento por crime de condução de veículo em estado de
embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.
A decisão recorrida não equacionou esta questão. Tal não impede, porém, que o
Tribunal Constitucional a enfrente e a resolva, dado estar apenas vinculado ao
pedido e não, já, aos fundamentos invocados, podendo fazê-lo com base na
violação de normas ou princípios constitucionais diversos dos alegados (art.º 79.º-C
da LTC).
É claro que a norma, nos termos em que se acha enunciada, tanto funciona ou
projecta os seus efeitos nas situações em que a condução sob a influência de
álcool se queda pela prática de uma contra-ordenação grave [artigo 145.º, n.º 1,
alínea l)] ou muito grave [artigo 146.º, alínea j), ambos do Código da Estrada],
como quando ela é susceptível de preencher o tipo penal recortado no artigo 292.º,
n.º 1, do Código Penal.
Mas tendo a virtualidade de alcançar efeitos a nível penal e sendo este domínio
de vigência que está aqui em causa, é quanto a ele que há que resolver a questão.
E colocando-nos neste plano, haverá, todavia, que destrinçar as situações em que
a contraprova foi efectuada através de análise de sangue ou através de aparelho
de pesquisa quantitativa aprovado para o efeito.
Na verdade, quanto àquele tipo de contraprova não poderá desconhecer-se o
disposto, hoje, no referido n.º 5 do artigo 6.º do mencionado Regulamento e a
circunstância de o mesmo haver sido emitido através de Lei da Assembleia da
República.
Deste modo, a questão da inconstitucionalidade orgânica de tal preceito do n.º 6
do artigo 153.º do Código da Estrada apenas se coloca relativamente aos
resultados das contraprovas obtidos através de analisadores quantitativos
aprovados para o efeito e no domínio do processo penal, como é o caso.
Ora, quer se atribua às normas que dispõem sobre as provas atendíveis em
processo criminal e o seu respectivo valor natureza material, quer se lhes
reconheça natureza adjectiva, certo é que as disposições que prevêem os tipos de
prova admissíveis e o seu valor são normas de processo criminal, dado cumprirem
a função instrumental de darem a conhecer ?os factos juridicamente relevantes
para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade
do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis? (cf.
Artigo 124.º do Código de Processo Penal ? C. P. Penal) cuja determinação é
prosseguida pelo processo criminal.
Enquanto norma que dispõe sobre o valor da análise da contraprova por confronto
com o valor do exame inicial (não importando, aqui, saber se com o valor de
prova taxada ou prova legal, como parece ter entendido a decisão recorrida, ou
se com valor de prova sujeita a apreciação judicial segundo as regras de
experiência e livre convicção do julgador), ela é uma norma processual
compreendida no âmbito material do princípio afirmado no artigo 127.º do C. P.
Penal.
Assim sendo, o preceito, na medida em que projecta efeitos a nível da valoração
da prova em processo criminal, e quando referido a contraprova efectuada
mediante analisador quantitativo, apenas poderia ser editado por lei da
Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo, emitido a coberto de
autorização legislativa, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da
Assembleia da República.
Anote-se, porém, que, quando referida a contraprova efectuada com recurso a
análise ao sangue, há-de entender-se que a mesma foi substituída pelo referido n.º
5 do artigo 6.º do referido Regulamento, deixando-se de colocar a questão da
competência para a edição do respectivo critério normativo.
5.3 ? O artigo 1.º da Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, concedeu autorização ao
Governo para ?proceder à revisão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 114/94, de 3 de Maio, com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.ºs
2/98, de 3 de Janeiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e pela Lei n.º 20/2002,
de 21 de Agosto, e ainda a criar um regime especial de processo para as contra-ordenações
emergentes de infracções ao Código da Estrada, seus regulamentos e legislação
complementar?.
E, definindo o sentido da autorização, o artigo 2.º da mesma Lei dispõe que a
autorização visa ?permitir a criação de um regime jurídico em matéria rodoviária
em conformidade com os objectivos definidos no Plano Nacional de Prevenção
Rodoviária, com as normas constantes de instrumentos internacionais a que
Portugal se encontra vinculado e com as recomendações das organizações
internacionais especializadas com vista a proporcionar índices elevados de
segurança rodoviária para os utentes?.
Ora, conquanto possa entender-se que o regime em causa constante do n.º 6 do
artigo 153.º do Código da Estrada cabe no objecto e no sentido da lei de
autorização, certo é que, analisado o artigo 3.º da mesma Lei e tendo em conta
que ?a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina
jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir
por força do exercício dos poderes delegados? (cf., entre outros, o Acórdão n.º
358/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não se vê que o mesmo
caiba em qualquer dos que, aí, são enunciados.
Assim sendo, a norma em causa padece de inconstitucionalidade orgânica.
Aqui chegados, torna-se desnecessário apurar se a mesma afronta os princípios
constitucionais invocados pela decisão recorrida ou pelo Ministério Público.
C ? Decisão
6 ? Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar
organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1,
alínea c), da Constituição da República Portuguesa, o artigo 153.º, n.º 6, do
Código da Estrada, na parte em que a contraprova respeita a crime de condução de
veículo em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de
álcool no ar expirado, efectuado mediante a utilização de aparelho aprovado para
o efeito, e, consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando, ainda
que por razões diferentes, a decisão recorrida.
Lisboa, 28 de Setembro de 2009
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos